Cinco doentes graves estavam numa
enfermaria. A única comunicação da
enfermaria com o mundo exterior era uma
pequena janela. Perto dessa janela cabia apenas uma maca, na qual ficava um dos pacientes a narrar o mundo lá de
fora, mundo este que os outros pacientes não podiam ver. “Daqui vejo o mar ,
até sinto sua brisa. Vocês também
conseguem sentir?”, perguntava aos
outros doentes. Apenas um dizia
não conseguir sentir. Os que sentiam, recriavam um mar na alma e “horizontavam-se” . No dia
seguinte prosseguia o paciente-narrador:
“Daqui posso ver e ouvir crianças
brincando numa pracinha . Vocês também conseguem ouvi-las?” . O mesmo paciente
que não conseguia sentir a brisa também não conseguia ouvir as crianças . Os
outros conseguiam, e algo dentro deles brincava também e regenerava.
Enfim, o paciente da janela passava o
dia a transpor em palavras a vida , de tal modo
que suas palavras viravam remédio
para quem as ouvia: elas eram cura
também.
Certo dia, porém , o paciente da
janela emudeceu. Chamaram a enfermeira. Ela constatou, sem surpresa, que ele
havia morrido. Só então os outros souberam que
o homem da janela era o mais doente entre eles. Agora, cada um queria que a própria maca
fosse colocada perto da janela, aquele lugar “privilegiado” , mas concordaram que
para lá fosse o doente de sensibilidade
embotada. Só lhe fizeram uma exigência: continuar as narrativas. “ Farei melhor que o poeta que aqui estava !”,
gabou-se.
Quando ele olhou pela janela, porém, ficou
mudo...Perguntaram : “o que houve!?” Então, ele disse: “em frente à janela não
há mar, paisagem ou praça. Há apenas um
muro cinza... Um espesso muro
cinza”, repetiu. Ele só conseguia dizer a palavra mais sem vida que existe : aquela que apenas repete o que
está dado. Pois era verdade: sempre houve aquele muro.
O muro cinza simboliza tudo aquilo que nos rouba a visão de
horizontes, horizontes que nos estão fora e dentro, mesmo que ainda em esboço,
virtualmente. Poesia é criar palavras,
sentidos e dizeres que abram linhas de
fuga para a vida com força libertária mais potente do que as marretas.
“É preciso transver o mundo” (Manoel
de Barros).
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