Aprender é ter por guia luzes que conduzem à Luz.
Para
compreender , porém, é preciso padecer
e
ser conduzido à Luz através da obscuridade.
Etienne Gilson
Queria que minha voz
tivesse um formato de canto.
Manoel de Barros
O vídeo mostra um fluxo de lava se
lançando ao mar. O fluxo passa entre sólidas rochas que um dia já foram lavas.
Hoje, essas rochas se acumulam, camadas sobre camadas, formando estratos,
segmentos. Um fluxo não tem segmentos, tampouco estratos. Um fluxo se expressa
em velocidade e lentidão, avanços e paradas. Um fluxo nunca vai para trás, para
o passado. Um fluxo vai para a frente com o máximo de força que tiver. Tornar-se
rocha não é o destino do fluxo-lava, tornar-se rocha é seu passado. A rocha
sólida é um testemunho da lava que já foi: a rocha é a lava que já não é mais.
Os fluxos são sempre primeiros, eles
têm "primazia", diria Manoel. Já se começa a redescobrir o que já sabia Lucrécio
há séculos : o universo é um rio, um fluxo. E mesmo o mito já dizia: a Via
Láctea, o “caminho leitoso”, é um fluxo de leite que jorrou dos seios amorosos
de uma deusa.
Mas ninguém pode viver nos fluxos, podemos
desejar apenas nos aproximar o mais possível deles. Somente os vulcões expelem
tais inícios, mas ao preço de se explodirem eles mesmos.
Deleuze e Guattari nos falam da existência dos fluxos e dos
estratos, do liso e do estriado. Tudo é composto de fluxo e de estratos. Os
estratos são mais visíveis , já os fluxos são imperceptíveis, embora também
reais.
A linguagem possui seus estratos
gramaticais, porém o fluxo do sentido constitui uma agramática poético-filosófica.
É danosa a estratificação da vida
mental em id, ego e superego, pois nos leva a imaginar que o id, o
inconsciente, é também um estrato, como o são o ego e o superego. O inconsciente
não é um estrato contíguo ao estrato ego, ele é um fluxo sem contiguidade, dado
que suas margens se fazem e desfazem. Gênero masculino e feminino, e outros,
são estratos; porém fluxo é a sexualidade (nenhum dos estratos é dono dela).
Os estratos podem se opor
dialeticamente, e lutarem pela supremacia sobre o outro. No entanto, todo fluxo
é indivisível, nunca ele se opõe a ele mesmo. Os estratos constituem poder ( potestas), anseiam por “empoderamentos”; porém de potência (potentia) são feitos os fluxos. Mas os
fluxos não são evidentes, é preciso achá-los, por vezes inventá-los, se força
tivermos para não nos deixarmos reduzir a um estrato.
Porém, é preciso cautela e cuidado nesses
processos, advertem Deleuze e Guattari. Não por acaso, o anel de Espinosa
trazia a inscrição latina : “caute”, cautela, cuidado . O anel era parte da mão
que pacientemente polia “as lentes”, os "instrumentos da visão".
Segundo Deleuze e Guattari, é preciso manter algum estrato quando nos
aproximamos dos fluxos. É preciso manter vivo o ego quando fazemos a viagem ao
inconsciente. E de tal viagem o eu retornará outro: menos ego e mais
devir-outro.
O melhor exemplo é a própria natureza que oferece, por intermédio da vida
de um pequeno pássaro: o tordo. Este passarinho possui três espécies de canto.
Os dois primeiros servem aos estratos biológicos para a conservação de sua vida
própria. São cantos que ele emite quando
quer obter um território e conquistar uma fêmea. São cantos belos. Aparecem
rivais de estratos diferentes, há então duelos, medições de força. Vencerá quem
mais poder tiver. O território assim obtido é um estrato. Porém, esse
passarinho emite ainda um terceiro misterioso canto. Ele o emite em dois
momentos do dia: o vespertino e o matutino, o crepúsculo e a aurora. Ele o
canta "atoamente",sozinho, sem disputas, sem rivais. Ele se põe então em certo galho elevado
de sua árvore. O galho se torna o limite de seu território-estrato. O galho devém o estrato mais próximo de perigosos fluxos. Pois, cantando, o pássaro
pode ser achado pela soturna coruja, que sempre cobiça predá-lo. Não obstante,
entrega-se o pássaro ao misterioso e vivo canto.
Esse último estrato não pode ser vencido por
voo físico realizado por tangíveis asas, vez que apenas o canto pode ir além
dele, em um “voar fora da asa”. Não é um canto belo, é um canto sublime. Na estética,
o belo é um afeto pela forma, pelo limite, ao passo que o sublime é um
afetar-se por aquilo que não tem limites. É, por isso, um canto de limiares.
Não é um canto entrecortado, segmentado, como o são os outros dois cantos. É um
canto contínuo, sem intervalos, onde o pássaro parece alcançar os seus limites canoros.
Ele canta para o fluxo luminoso do sol que, em retorno, o ilumina.
Nenhum comentário:
Postar um comentário