sábado, 29 de março de 2025

Sophia

 

                                                                                                              

O não-filosófico está talvez mais no coração da filosofia que a própria filosofia,

 e significa que a filosofia não pode contentar-se

em ser compreendida somente de maneira filosófica ou conceitual. 

Gilles Deleuze

 

Mais importante do que o pensamento é o que “dá a pensar”;

mais importante do que o filósofo é o poeta. 

Gilles Deleuze


Serás menos escravo do amanhã,

se te tornares dono do presente.

Sêneca

                                   


Dar uma definição rápida do que significa a filosofia não é tarefa fácil. Oriunda do grego, a palavra “filosofia” nasceu da reunião de duas outras palavras: “philo” e “sophia”. “Philo” significa tanto “amor” como “amizade”. Isso quer dizer que a filosofia não é prática apenas  intelectual ou racional, pois ela se nutre também de uma dimensão afetiva, expressa exatamente pelo termo “philo”. 

Deleuze afirma, por exemplo, que a filosofia não é apenas Conceito, ela também é Afeto (este termo não significa a mesma coisa que o mero sentimento   ). Espinosa ensina, por sua vez, que a filosofia é prática que se faz na Alegria. Já Epicuro menciona o Prazer ( não o prazer fugaz com isto ou aquilo, mas o Prazer de Existir). Outros, como Kierkegaard, Heidegger e Sartre, enfatizam o afeto da Angústia. Há ainda Aristóteles, para quem a filosofia começa na Admiração. Nunca, absolutamente nunca, algum filósofo ensinou que a filosofia pode nascer do ódio, da covardia, do medo ou da intolerância[1]. Ao contrário, a filosofia é um esforço para se tentar vencer essas “sombras”, como diria Jung, ou essas “tristezas”, nas palavras de Espinosa. E é antes de tudo naquele que filosofa que a vitória deve anunciar-se primeiro, em suas palavras e, sobretudo, em suas ações.

O filósofo não é apenas aquele que domina a prática teórica e metodológica de definir conceitos, ele também é aquele que se afeta pelo que “dá a pensar”, e o que dá a pensar nem sempre pode ser explicado por conceitos. Nem sempre o que dá a pensar já está pensado e definido em livros e teorias. Um filme, uma música, um gesto, uma paisagem, um poema, um acontecimento...também dão o que pensar, ou podem dar o que pensar. Mas nada dá tanto a pensar do que a própria vida.

“Sophia” significa “sabedoria”. Assim, uma definição simples e geral da filosofia seria: “amor ou amizade pela sabedoria”, “afeto pela sabedoria”. Visto dessa maneira, o filósofo não é apenas amigo da sabedoria, ele não é apenas um intelectual, ele também é um ser que, como diz Espinosa, cultiva uma paixão alegre  .  O filósofo se mostra filósofo não apenas falando ou escrevendo, ele deve mostrar-se filósofo igualmente, e sobretudo, agindo. Segundo Cícero, o mero sofista busca a retórica das palavras, almejando persuasão; já o filósofo/sábio se exercita em outra retórica: a das ações, cujo objetivo é a compreensão.

Para Espinosa ,  aquilo que o filósofo ama, a Sophia-Sabedoria, não pode ser posse exclusiva, ninguém dela pode ser o “dono”, como  as coisas que geram cobiças, rivalidades, ciúmes. Por isso, o filósofo se alegra quanto mais ele partilha aquilo que ele ama, generosamente.

Segundo ainda Espinosa, a partilha da Sophia-Sabedoria gera a virtude da “fortitudo”, que em português se diz  “fortaleza”. A fortitudo-fortaleza protege e  fortalece cada um que faz dela  ninho e escudo. Não por acaso, na língua banto de nossos ancestrais “fortitudo” é “quilombo”, lugar de  luta e resistência ante  as tiranias .

 “Sophia” não é só teoria, fórmulas, razões. Ela também é Vida, Arte, Poesia. São a essas coisas que o filósofo dedica Afeto. Para Deleuze, não há filosofia sem um modo de viver filosófico, sem um modo de vida. Um modo de vida filosófico não significa uma vida erudita mergulhada em livros, nem um tipo de vida que, para ser vivida, necessita de um título filosófico auferido pela academia.

Além disso, há uma diferença entre a filosofia e o filosofar. Heidegger, por exemplo, afirmava que a filosofia existe desde a Grécia. Porém, o filosofar, enquanto pensar, inaugurou-se na aurora da filosofia, entre os pré-socráticos. Nestes pensadores, o pensar foi exercido de forma múltipla, mais intuitiva do que sistemática.  Depois adveio o seu ocaso com Platão e, desde então, “velou-se”. Para a prática do pensar retornar, pensava o filósofo alemão, é preciso reviver a experiência da “origem”, como a viveram os pré-socráticos, e compreender que o pensar somente se anuncia em uma linguagem que nasça da experiência do Ser como Criação, Poesia. O Pensar é experiência com a aurora dele mesmo.

A filosofia é uma disciplina com sua história, metodologias, temas. O filosofar é uma ação feita não apenas pelo filósofo. Por exemplo, quando alguém, em uma situação cotidiana, emite um juízo acerca da beleza ou ausência de beleza de uma canção que ele ouve no rádio de seu carro, sem que saiba ele está filosofando ou tentando filosofar, pensar, uma vez que ele está emitindo um juízo de gosto. O gosto é um tema da Estética. Se outro homem ao ler o jornal lamenta a ausência de caráter dos políticos, tal homem também está a filosofar, pois ele indaga acerca do caráter. Em grego, “caráter” se diz “ethos”. A ética, enquanto disciplina filosófica, tem na ideia de caráter o seu grande tema (de Aristóteles a Kant, passando por Espinosa). Em geral, quando o senso comum imagina o que é a filosofia, ele costuma identificá-la apenas com uma parte dela: a metafísica. Mas linguagem, justiça, poder, potência, amor, desejo , Deus ( enquanto objeto da teologia racional ou natural)...são temas que podem suscitar o indagar filosófico.

Sócrates inaugura a atitude filosófica indo debater na praça, em meio ao povo, esses temas. Sócrates buscava , com a filosofia, mudar a propensão dos homens em não questionarem suas opiniões ( esse não questionar-se está na base do que Sartre designa “consciência irrefletida”). Para lutar contra inimigo, pensava Sócrates, é preciso ir enfrentá-lo onde ele mora: a praça. Sócrates é o acorrentado que se liberta, sai da caverna e depois retorna para tentar fazer com que os outros acorrentados tomem consciência de que estão acorrentados e retirem o grilhão com a própria mão, pois o tomar de consciência,  enquanto prática de autonomização, é ação que um outro não pode fazer por nós. O parteiro ajuda no ato de parir, mas a consciência que nasce pertence àquele a quem ele auxiliou a nascer.

 De Platão a Deleuze, o inimigo do pensamento é a opinião, a doxa. É Platão que, de certa maneira, afasta a filosofia das praças, reservando o filosofar exclusivamente para aqueles que também soubessem medir, contar, enfim, matematizar. Sabe-se que  Platão afixou à entrada da Academia a seguinte ordem: “não entre aqui quem não for geômetra, mas  também não entre aqui quem só for geômetra”. Esse isolamento da filosofia em relação ao filosofar nasceu exatamente com esse nome: Academia . Este foi o lugar construído por Platão para ser o templo de uma nova divindade: a  Deusa-Razão. Muitos séculos depois, Nietzsche chamará essa Deusa-Razão de um Ídolo construído por Platão para se proteger da multiplicidade, da contradição, da mudança, enfim , da Vida. Nietzsche inclusive opta por filosofar através de uma linguagem não acadêmica, mais próxima da alegoria poética do que da sistemática conceitual. Não obstante, ele não é menos filósofo do que o sistemático e conceitual Kant. Em O crepúsculo dos ídolos, Nietzsche afirma que o filósofo autêntico sempre tem na mão um “martelo”, que é a crítica que ele deve endereçar a “esses Ídolos” . Segundo Francis Bacon, a quem Nietzsche toma de empréstimo o termo, Ídolo é algo que, no âmbito do conhecimento,  ao invés de fazer o homem pensar, leva-o apenas a cultuar ou adorar. O culto ou a adoração são justificáveis no campo religioso, porém se tornam danosos quando trazidos para a prática do pensamento filosófico, que sempre tem de ser crítico e livre. “Crítica” provém do termo grego “krisis”: capacidade de julgar, discernir ou avaliar.

Sophia também pode ser um nome próprio. "Sophia", ou "Sofia", é o belo nome que muitos pais escolhem para chamarem a quem trazem à vida. Por outro lado, “Teoria” é tão abstrato que alguém vivo não se deixa chamar assim, tampouco pode ser o nome de alguém “Razão” ou “Ciência”. Não dá para imaginar alguém se chamando “Razão”! (embora muitos imaginam encarná-la e serem donos exclusivos dela...).

 Tal como uma pessoa , a sabedoria só atende se for chamada pelo seu nome. Se alguém a chamar apenas de "razão" ou "ciência" ela não atenderá, ela não virará seu rosto para quem assim a chamar, mesmo que grite, mesmo que, com poder, ordene. Mas assim como uma pessoa é mais do que seu nome, a sabedoria é mais do que sabedoria, ela também é generosidade, coragem, modéstia, invenção.



[1] Talvez as únicas exceções sejam o “Polemos” , de Heráclito, e o “Ódio”, tema encontrado em Empédocles. Dito de maneira simples, o  “Polemos” é a unidade indissociável e complementar do par “Construir-Destruir”, enquanto que o “Ódio” é, em Empédocles, o par complementar ao Amor. Mas tais “afetos” nada têm de “humano, demasiado humano”, uma vez que são forças cósmicas. Inclusive, há certa  “inocência” no “Destruir” como um dos polos do “Polemos”, como a criança que destrói o castelo de areia após construí-lo por brincadeira inocente ( ou “brincatividade”, como diz o poeta Manoel de Barros). Talvez inspirado nisso, Nietzsche tenha dito : “Só podemos destruir sendo  criadores” ( Gaia ciência, aforismo 58).



Imagem: Deleuze & Guattari ( e o livro que escreveram juntos). A expressão "Nós, os bruxos" é uma referência ao que disse e sentiu  um escritor ao ler Espinosa: "era como se eu subisse na vassoura de uma bruxa", isto é, a vassoura da bruxa como meio para desterritorializações e linhas de fuga  horizontadoras de mundos. 






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