APOLO E DIONISO[1]
Em A visão dionisíaca do mundo, Nietzsche identifica Apolo e Dioniso a
dois processos: o sonho, estado provocado por
Apolo, e a embriaguez, processo despertado por Dioniso.
Todo sonho é um desejo de plasmar
a realidade. O sonho dá uma forma à realidade, mesmo que seja a realidade de
uma utopia. Quem sonha tem os olhos
fechados para a realidade efetiva, pois o olhar que sonha se abre ao que
somente pode ser visto de forma sonhada.
Goethe se refere a esse olhar que sonha como o “olhar solar”: pois é esse olhar
que ilumina paisagens internas, mesmo em meio às trevas externas. Não por
acaso, Apolo é identificado ao sol.
Toda obra de arte apolínia é um sonho que plasma tintas, pedras, metais,
sons...mediante uma forma que figura e dá a ver o que antes o artista
sonhou.
Já Dioniso é a embriaguez: algo que acontece enquanto estamos acordados,
porém despertando outros olhos, até mesmo “olhos lunares” que ao mistério veem
claro .
Se Apolo é o referencial do
artista, Dioniso por sua vez é a própria
vida compreendida como obra de
arte[2]
. Em Apolo ainda há uma oposição entre real e sonho. Se essa distinção se
embaralha, corre-se o risco de surgir o delírio mórbido negador da realidade.
Mas em Dioniso a própria vida se torna obra de arte a ser musicada,
pintada, dançada, poetizada, enfim,
criada[3]
. Como ensina Manoel de Barros, arte é “delírio ôntico”: criação de novos
sentidos para o ser ( “on”). O delírio mórbido, delírio de poder, nega a
pluralidade da vida e do pensar, já o delírio ôntico é potência poética do
pensar enquanto expressão da vida, incluindo a vida plural das ideias.
Nietzsche nomeia Dioniso como a “potência da primavera”, a mesma potência
de Perséfone. Apolo é forma que plasma e dá uma figura, já
Dioniso-Perséfone é potência que faz
brotar , (re)nascer e fulgurar ( como as estrelas-flores que Van Gogh pintou).
A palavra embriaguez em grego se escreve “bacchus” ( é por esse motivo
que os romanos chamam Dioniso de “Baco”).
A embriaguez dionisíaca não é provocada apenas pelo vinho. A embriaguez
dionisíaca é todo processo no qual uma potência fende os limites de uma forma,
produzindo assim uma linha de fuga em relação a cercas, limites, egos.
Embriaguez é um processo que “desabre”, diria Manoel de Barros ( como a
borboleta que desabre a lagarta). Van Gogh é embriagado de tinta, Manoel de Barros é embriagado de poesia, Fernando Pessoa é embriagado de eus, Clarice é embriagada de vida...Somente experimentando uma
embriaguez assim é que se cria verdadeiramente arte.
A primavera embriaga a semente não para ela sonhar que é broto, e sim
para ela se metamorfosear em broto, com a máxima potência que puder. A
embriaguez poética embriaga o poeta não
para ele sonhar com o poema utópico, e sim para ele se metamorfosear em mundo, pois “poesia pode
ser que seja fazer outro mundo”, ensina Manoel de Barros.
Ninguém melhor do que o poeta Baudelaire soube expressar essa embriaguez
dionisíaca, ao dizer: “É preciso embriagar-se...Mas, com quê? Com vinho, poesia
ou virtude , a escolher. Mas embriaguem-se!”
Resumindo : Apolo representa a Forma, ao passo que Dioniso expressa a
Potência. A palavra potência tem a mesma raiz que o termo “possibilidade”.
Assim, toda potência é realidade também, porém é uma realidade potencial ( ou
virtual). Por exemplo, quando está em sua casa e fora do hospital ou
consultório, o médico tem a potência para curar, mesmo que naquele momento ele
não esteja exercendo tal potência; a cantora tem a potência para cantar, mesmo
que se encontre em silêncio e fora do
palco.
Quando o médico está a curar, a potência passa ao ato : a potência é
atualizada, isto é, torna-se atual. Mesmo sendo atualizada , nunca a
potencialidade se esgota totalmente na forma como ela é atualizada : sempre
permanece uma reserva de possibilidade que permite que tal potencialidade seja
atualizada de maneira diferente, sendo
então renovada, reaprendida, reensinada. Não é apenas o que agora é atual que é
real, pois a potência também é real, embora de uma realidade diferente. Toda
realidade atual somente pode ser renovada ,
reinventada e repensada se não perder a ligação de seus fios com o novelo da Potência, tal como os fios
libertários de Ariadne. Por outro lado, toda potencialidade , para não ficar apenas
no nível da idealização ou teoria, precisa se atualizar e se tornar ato efetivo
no mundo.
Assim, o par forma-matéria deve ser complementado e ampliado pela relação
potência-ato ou virtualidade-atualidade. Quando uma teoria é dogmática, ela
tende a realçar a forma em detrimento da matéria-potência-virtualidade. Mas
quanto mais rico, plural e diverso for um pensar, mais ele tende a colocar a
potência-possibilidade-virtualidade em primeiro plano, compreendendo que as
formas são necessárias, embora possam enrijecer se perderem de vista as
potências-virtualidades que as fazem nascer.
O pensador-artista-criador de não importa qual área possui olhos e mãos
para ver e tocar essa potência-virtualidade-possibilidade, para assim pôr em
ato uma obra, um agir e um criar que atualizam essa
potência-virtualidade-possibilidade em realidade concreta que dá sentido novo a
nós mesmos, à sociedade e ao mundo.
[1]
Texto-aula elaborado pelo prof. Elton Luiz.
[2] No
filme “Meu amigo Nietzsche”, o menino vive uma embriaguez assim quando descobre
a potência das ideias que metamorfosearam seu modo de vida: ele se tornou um
artista cuja obra a criar era a si mesmo... Essa embriaguez faz brotar
primaveras, auroras...
[3] Artes como o teatro e a dança têm maior potência dionisíaca do que a pintura e a escultura: nestas, apenas a mão se envolve na produção da obra, ao passo que no teatro e na dança ( na qual a música também está presente) é o corpo inteiro que participa da criação.
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