O NOUS E O LOGOS[1]
O poeta Homero e o filósofo Platão não se expressam mediante a mesma
língua grega. O grego clássico de Platão já não é mais o mesmo grego com o qual
Homero escreveu. O grego de Homero era uma língua umbilicalmente ligada ao
sensível , suas cores e nuances , ao
passo que o grego clássico de Platão se torna uma língua representativa de
realidades mais abstratas, que apenas a razão pode alcançar.
Por exemplo, em Homero há pelo menos quatro palavras para designar o ato
de ver. E o ver em Homero também era acompanhado do thymós, isto é, de um afeto
que se expressava também nos olhos, na maneira de ver. Em Platão, desaparecem
essas nuances cognitivo-afetivas, permanecendo apenas um ver intelectualizado
enquanto “theoria[2]” (
base do conhecimento “teorético” em contraposição ao agir prático-ético).
Em Homero, Psiquê[3]
nunca se separa do corpo, a não ser em duas ocasiões : no desmaio, quando ela
sai e retorna ao corpo após um breve momento, e na morte, quando ela abandona
definitivamente o corpo. Quando o corpo se fere gravemente, a alma luta para
não se esvair pela abertura da ferida,
tal como o ar de um balão perfurado. Não
por acaso, a alma também é Pneuma: sopro ou hálito vital[4].
Mas enquanto estamos vivos, alma e corpo formam uma unidade inseparável.
É Platão quem separa alma e corpo, e dá a cada um uma pátria diferente.
Enquanto a pátria do corpo é o mundo sensível da matéria e do devir, a alma
nesse mundo é uma mera cativa que somente se liberta quando morre e retorna à
sua Ítaca[5]
Celeste.
Segundo Homero, a alma possui duas
“partes”: o Nous e o Thymós. Enquanto o Nous é uma parte que vê as imagens, o
Thymós está ligado ao afeto. O Nous não entra em contato com o conceito, pois
conceito não é imagem. Quando a filosofia surgir, quem apreenderá
o conceito será o Logos ou Razão. Contudo, o Nous não desaparece com o
surgimento da filosofia: ao contrário, ele se tornará o “olho da alma” que intui[6]
diretamente a realidade. Fiel à sua origem, o Nous nunca deixa o pensar poético
que se expressa por imagens – ou por “iluminuras” , dirá o poeta Manoel de
Barros.
Não há uma localização específica para o thymós, porém ele aparece
frequentemente associado ao coração , ao passo que o Nous tem sede na cabeça,
uma cabeça pensativa que pensa por imagens ( não como as imagens da imaginação).
Em Homero , como em todo pensar poético, Nous e thymós andam juntos , de tal
modo que também há pensamentos no coração , assim como afetos
pensáveis-sentidos , tal como em Fernando Pessoa, que dizia sentir não com a sensibilidade e sim
com o pensamento.
Logos é o “pastor do ser”[7]:
ele recolhe diferenças individuais e as
unifica na identidade do conceito. Nous não é um pastor, ele é como um pintor:
ele pinta a singularidade de cada realidade que intui.
O mundo espiritual ( mundo do Pneuma-hálito vital, sopro da vida) não é
apenas razão, ele também é pensamento ( Nous) e thymós ( afeto).
[1]
Este texto é um comentário ao capítulo 1 (
“O homem na concepção de Homero”) do livro A cultura grega e as origens
do pensamento europeu, de Bruno Snell ( São Paulo, Editora Perspectiva,
2012).
[2]
Mas o mito sobre o nascimento da “theoria” não se confunde com a
ideia de “teorético” tal como está em Platão e, sobretudo, Aristóteles.
[3]
Lembrando que há várias interpretações acerca do mito de Psiquê ( e não apenas
a de Homero).
[4]
Segundo Snell, p. 9.
[5] Na
Odisseia, de Homero, Ítaca era a terra natal para a qual Ulisses queria retornar.
[6]
Enquanto o Logos é discursivo, ou a “boca da razão”, o Nous é intuitivo e
“silencioso”, dirá Plotino. O Nous é os “olhos do pensamento”.
[7]
Esta ideia de que o Logos é o “pastor do ser” foi desenvolvida por
Heidegger. Assim como o pastor reúne
diferentes ovelhas para formar um rebanho , o Logos emprega o conceito para
reunir e dar identidade única a diferentes indivíduos compreendidos sob o
conceito. Por exemplo, a experiência me mostra várias cadeiras diferentes:
algumas são de madeira, outras de ferro. Porém o conceito de cadeira abstrai
essas diferenças para representar apenas a forma-cadeira enquanto princípio de
identidade que reúne o diverso e o unifica.
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