quarta-feira, 12 de março de 2025

Pensamento e Afeto

                                                        O NOUS E O LOGOS[1]

 

O poeta Homero e o filósofo Platão não se expressam mediante a mesma língua grega. O grego clássico de Platão já não é mais o mesmo grego com o qual Homero escreveu. O grego de Homero era uma língua umbilicalmente ligada ao sensível , suas cores e  nuances , ao passo que o grego clássico de Platão se torna uma língua representativa de realidades mais abstratas, que apenas a razão pode alcançar.

Por exemplo, em Homero há pelo menos quatro palavras para designar o ato de ver. E o ver em Homero também era acompanhado do thymós, isto é, de um afeto que se expressava também nos olhos, na maneira de ver. Em Platão, desaparecem essas nuances cognitivo-afetivas, permanecendo apenas um ver intelectualizado enquanto “theoria[2]” ( base do conhecimento “teorético” em contraposição ao agir prático-ético).

Em Homero, Psiquê[3] nunca se separa do corpo, a não ser em duas ocasiões : no desmaio, quando ela sai e retorna ao corpo após um breve momento, e na morte, quando ela abandona definitivamente o corpo. Quando o corpo se fere gravemente, a alma luta para não se esvair  pela abertura da ferida, tal como o ar de um  balão perfurado. Não por acaso, a alma também é Pneuma: sopro ou hálito vital[4]. 

Mas enquanto estamos vivos, alma e corpo formam uma unidade inseparável. É Platão quem separa alma e corpo, e dá a cada um uma pátria diferente. Enquanto a pátria do corpo é o mundo sensível da matéria e do devir, a alma nesse mundo é uma mera cativa que somente se liberta quando morre e retorna à sua Ítaca[5] Celeste.

Segundo Homero, a alma possui  duas “partes”: o Nous e o Thymós. Enquanto o Nous é uma parte que vê as imagens, o Thymós está ligado ao afeto. O Nous não entra em contato com o conceito, pois conceito não é imagem. Quando a filosofia surgir, quem  apreenderá  o conceito será o Logos ou Razão. Contudo, o Nous não desaparece com o surgimento da filosofia: ao contrário, ele se tornará o “olho da alma” que intui[6] diretamente a realidade. Fiel à sua origem, o Nous nunca deixa o pensar poético que se expressa por imagens – ou por “iluminuras” , dirá o poeta Manoel de Barros.

Não há uma localização específica para o thymós, porém ele aparece frequentemente associado ao coração , ao passo que o Nous tem sede na cabeça, uma cabeça pensativa que pensa por imagens ( não como as imagens da imaginação). Em Homero , como em todo pensar poético, Nous e thymós andam juntos , de tal modo que também há pensamentos no coração , assim como afetos pensáveis-sentidos , tal como em Fernando Pessoa,  que dizia sentir não com a sensibilidade e sim com o pensamento.

Logos é o “pastor do ser”[7]: ele recolhe diferenças individuais  e as unifica na identidade do conceito. Nous não é um pastor, ele é como um pintor: ele pinta a singularidade de cada realidade que intui.

O mundo espiritual ( mundo do Pneuma-hálito vital, sopro da vida) não é apenas razão, ele também é pensamento ( Nous) e thymós ( afeto).

 




[1] Este texto é um comentário ao capítulo 1 ( “O homem na concepção de Homero”) do livro A cultura grega e as origens do pensamento europeu, de Bruno Snell ( São Paulo, Editora Perspectiva, 2012). 

[2] Mas o mito  sobre o nascimento da “theoria” não se confunde com a ideia de “teorético” tal como está em Platão e, sobretudo, Aristóteles.

[3] Lembrando que há várias interpretações acerca do mito de Psiquê ( e não apenas a de Homero).

[4] Segundo Snell, p. 9.

[5] Na Odisseia, de Homero, Ítaca era a terra natal para a qual Ulisses  queria retornar.

[6] Enquanto o Logos é discursivo, ou a “boca da razão”, o Nous é intuitivo e “silencioso”, dirá Plotino. O Nous é os “olhos do pensamento”.  

[7] Esta ideia de que o Logos é o “pastor do ser” foi desenvolvida por Heidegger.  Assim como o pastor reúne diferentes ovelhas para formar um rebanho , o Logos emprega o conceito para reunir e dar identidade única a diferentes indivíduos compreendidos sob o conceito. Por exemplo, a experiência me mostra várias cadeiras diferentes: algumas são de madeira, outras de ferro. Porém o conceito de cadeira abstrai essas diferenças para representar apenas a forma-cadeira enquanto princípio de identidade que reúne o diverso e o unifica.





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