Quando eu era criança, bem criança, meus pais eram pobres, porém podiam me dar de presente carrinhos simples . Eu recebia tais brinquedos e os guardava, feliz e agradecido. Mas esses brinquedos e outros não me faziam falta, pois eu gostava era de brincar com as próprias coisas, retirando delas os sentidos acostumados . Por exemplo, gostava de pegar o chinelo de meu pai e fazer de carrinho. Como carrinho lúdico, ao chinelo não faltava nada, pois estava em meus olhos a fonte de vê-lo outra coisa diferente desta que todos viam. Nunca me fizeram falta os brinquedos, enquanto eu soube brincar com o sentido.
Quando eu era criança , portanto, havia o carrinho de brinquedo e o brinquedo que eu inventava com a própria realidade. Brincar com o carrinho de plástico era bom, mas brincar com o chinelo feito carrinho era mais do que brincar: era ato poético-político, ainda que inocente.
Hoje, penso que ser educador ou artista é retornar àquele lúdico alegre e inocentemente subversivo, para assim reinventar novo sentido para esse real dado. Com alegria espinosista e peraltagem manoelina, quem sabe subverter aquilo que os pouco imaginativos chamam de mundo objetivo , tristemente acostumado.
Já crescido, achei este poema do Jorge de Lima me mostrando que eu não estava sozinho:
Já crescido, achei este poema do Jorge de Lima me mostrando que eu não estava sozinho:
O mundo do menino impossível
(Jorge de Lima)
Fim da tarde, boquinha da noite
com as primeiras estrelas
e os derradeiros sinos.
Entre as estrelas e lá detrás da igreja
surge a lua cheia
para chorar com os poetas.
E vão dormir as duas coisas novas desse mundo:
o sol e os meninos.
Mas ainda vela
o menino impossível
aí do lado
enquanto todas as crianças mansas
dormem
acalentadas
por Mãe-negra Noite.
O menino impossível
que destruiu
os brinquedos perfeitos
que os vovós lhe deram:
o urso de Nürnberg,
o velho barbado jagoeslavo,
as poupées de Paris aux
cheveux crêpes,
o carrinho português
feito de folha-de-flandres,
a caixa de música checoeslovaca,
o polichinelo italiano
made in England,
o trem de ferro de U. S. A.
e o macaco brasileiro
de Buenos Aires
moviendo da cola y la cabeza.
O menino impossível
que destruiu até
os soldados de chumbo de Moscou
e furou os olhos de um Papai Noel,
brinca com sabugos de milho,
caixas vazias,
tacos de pau,
pedrinhas brancas do rio...
“Faz de conta que os sabugos
são bois...”
“Faz de conta...”
“Faz de conta...”
E os sabugos de milho
mugem como bois de verdade...
e os tacos que deveriam ser
soldadinhos de chumbo são
cangaceiros de chapéus de couro...
E as pedrinhas balem!
Coitadinhas das ovelhas mansas
longe das mães
presas nos currais de papelão!
É boquinha da noite
no mundo que o menino impossível
povoou sozinho!
A mamãe cochila.
O papai cabeceia.
O relógio badala.
E vem descendo
uma noite encantada
da lâmpada que expira
lentamente
na parede da sala...
O menino pousa a testa
e sonha dentro da noite quieta
da lâmpada apagada
com o mundo maravilhoso
que ele tirou do nada...
Chô! Chô! Pavão!
Sai de cima do telhado
Deixa o menino dormir
Seu soninho sossegado!
Seu soninho sossegado!
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