Aprendo com o povo sintaxes tortas.
Manoel de Barros
Ou a manequim do tímido Paulinho.
Lenine
Li recentemente entrevista com o grande Paulinho da Viola, já com mais de 73
anos. Na entrevista, Paulinho da Viola responde a um jornalista
acerca do seu modo de ser. Paulinho é reconhecidamente alguém modesto e simples,
reservado mesmo, por vezes tímido no trato. Porém, ele nada tem de tímido quando se trata de
expressar, extroverter, a poesia através da música. Por outro lado, muitos
cantores e cantoras extrovertidos, que falam pelo cotovelo e atropelam seus
entrevistadores, e que vivem a dar opinião medíocre sobre tudo, tais cantores
extrovertidos são impressionantemente introvertidos, tímidos, quando se trata
de chegar perto, e conquistar, a poesia e a música!
Se levarmos em conta essa autêntica extroversão, Paulinho é
extrovertido: “vertido para” a alma plural e mestiça que lhe vai dentro, dele e
de nós.
Havia uma insinuação nas perguntas que lhe foram feitas: o
jornalista dava a entender que tais características o teriam “atrapalhado” na carreira, digamos
assim. O jornalista insinua que se
Paulinho fosse mais extrovertido talvez ele fosse, por exemplo, uma Ivete
Sangalo ou um Carlinhos Braw (em termos de "sucesso" midiático, propagandístico).Mas se tais “artistas” citados fossem mais
introvertidos eles seriam um Paulinho?
Paulinho, com humor e paciência, como
se espera de um nobre, responde que seu jeito e maneira de ser eram assim, em
parte , pela mesma razão que faz cada um ser o que é : ele assim era devido à
maneira como foi educado. Ele foi educado para ser simples e modesto. Sua
indisfarçável e conhecida timidez não era exatamente devido à presença do
outro. Ao contrário, tal timidez era o esforço que ele fazia para vencer a si mesmo, o seu
ego.
Em um mundo como o atual, no qual
tudo tem que aparecer, ser expansivo como um “boneco de posto” agitando os
braços, mas sem nada a dizer a não ser slogans, personalidades como a de
Paulinho ( assim também eram Cartola e Manoel de Barros), são vistas como
fracas, inseguras, tímidas. Porém, quando ouço e vejo os cantores que fazem
sucesso na mídia comercial alardeando a si mesmos, penso que talvez fosse
melhor, inclusive aos próprios, se mais contidos eles fossem, exercitando mais a modesta hesitação diante da música,
esforçando-se mais para conquistá-la e sê-la. Pois o que tais pessoas propalam ter e ser não se conquista ou compra
como uma roupa , uma tintura de cabelo, uma tatuagem , um terno. Muita propaganda deixa a gente
desconfiado acerca da veracidade do produto, já dizia minha querida avó.
Lendo tal entrevista com o Paulinho
me lembrei de minha infância e juventude suburbanas, lá perto de Madureira. Também
fui criado de forma semelhante: para não ser vanglorioso, rivalizador belicoso e outras coisas que hoje são buscadas pelos
RHs nos candidatos a vagas de “liderança”.
Fui educado assim, para não ser um babaca com ares arrogantes.
Mas não foi exatamente apenas da minha família
que veio tal educação. Essa educação era cultivada no meio em que vivia minha
família. Era um ethos social
suburbano. Aristóteles dizia que aquilo que existe mais , que é mais real e
verdadeiro, existe sempre sob a forma do “sub”. O que é mais real, o que existe
mais do que tudo, o filósofo chamava de substância. A substância é o que existe
dando suporte às instâncias, aos territórios nos quais existem as coisas e pessoas. “Sub” não é exatamente o que é
inferior, “sub” é o que está por baixo dando sustentação, como o alicerce da
casa, como o solo sobre o qual corre o rio, como o caráter que sustenta as
ações visíveis de um homem. O “erro” de Aristóteles foi ter projetado no sub o
modo de ser das coisas que existem “sobre”, foi ter olhado para o que sustenta
com os mesmos olhos com os quais se vê o sustentado, atribuindo-lhe então
aspectos que apenas existem na casa, e não em seu alicerce. Mais longe a esse
respeito foi Espinosa, que também emprega o termo “substância”, porém com outro sentido: nele o sub é onde se encontra a Potência. Em Espinosa, a natureza é sub ( como Natureza Naturante) e sobre ela própria, como natureza naturada (esse "sub" da potência transfiguradora expressa o mesmo que o "pré" das Pré-coisas manoelinas).
Então, sub-urbano não era , ao menos
àquela época, algo inferior à urbanidade da zona sul. Sub-urbano é o que dava
sustentação existencial às nossas existências urbanas. A base desse sub não
eram exatamente valores familiares ou religiosos; a essência desse “sub” eram valores
ético-políticos, valores estes que se tornavam reais pelas nossas práticas. A
tomada de partido por tais valores antecedia as escolhas partidárias, e nos
protegia dos sectarismos que envolvem as escolhas partidárias quando estas não
são precedidas por um afeto por tudo aquilo que é sub, pois tal sub, exatamente
por ser sub, nunca pode ser objeto de culto e poder.
Mais do que no espaço privado das
casas, onde reina o “meu”, era no espaço de vizinhança que se aprendia o afeto pelo comum, como prática das comunhões.
Lembro-me das trocas feitas entre minha
mãe e suas vizinhas, no caso de alguma estar carecendo de algum produto em sua
casa. Eram na verdade ofertas, “dons”. Por vezes era o feijão que se doava, e por ele
se recebia amizade. Noutras ocasiões éramos nós que recebíamos o açúcar que em nossa casa
faltava, e em troca contradoávamos amizade. Tudo era oportunidade para reforçar
a amizade como virtude sub-civilizatória, que sustenta a civilização , a
família e as relações. Lá não se precisava de creche: as famílias recebiam os
filhos umas das outras, quando havia necessidade.
Essa “Madureira” em que cresci era
mais do que um espaço físico, assim como é mais do que um pedaço de terra
alagado o pantanal de que fala Manoel de Barros. Ele mesmo diz que o chão do
pantanal ele também encontrou em Paris, Nova Iorque, São Paulo. Essa “Madureira”
também a encontro onde haja esse sub-urbano nos espaços urbanos. Além disso,
nem todos que nasceram em Madureira trazem essa “Madureira”, nem todos que
nasceram no Pantanal são habitados pelo Pantanal poético. Por outro lado, mesmo
quem não nasceu fisicamente no Pantanal ou em Madureira pode, no entanto, os
eleger como Terra Natal . Os que têm
a mesma terra natal se dizem con-terrâneos: vizinhos na mesma terra. Entre
conterrâneos não há hierarquias, há tão somente a afirmação da mesma
horizontalidade enquanto espaço do afeto. O Pantanal e Madureira são vizinhos,
assim nos ensinou, brincativamente, a
Império Serrano.
Por intermédio de sua educação formal
e escolar, centradas em “cartilhas e gramáticas”, os espaços urbanos são o
território do qual nascem e são cultivados engenheiros, soldados, policiais,
professores, funcionários públicos, pais, filhos , mães...Mas o sub é a terra
onde nascem pensadores e poetas, seres que são , antes de tudo, da natureza, da
substância. É em contágio com essa substância que eles vivem, produzem, sonham,
doam e contradoam o feijão que alimenta o espírito.
Essa Madureira não está totalmente
fora e nem totalmente dentro, ela é uma irradiação, um refrão, um ritornelo,
enfim, um mundo próprio sem o qual ficam, poetas e pensadores, sem ar. E é a partir dessa terra que eles
cantam e fazem cantar, como na avenida do samba o povo.
Quando me desterritorializo para
alcançar essa Madureira politicamente poetizada, este é meu desejo-sonho: ao
abrir a porta da minha casa, ver o Paulinho como meu vizinho; ao abrir minha janela, ver na janela vizinha Manoel nos horizontando.
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