quinta-feira, 2 de março de 2017

o pantanal de Madureira


Aprendo com o povo sintaxes tortas.
Manoel de Barros

Ou a manequim do tímido Paulinho.
Lenine

Li recentemente entrevista com o  grande Paulinho da Viola, já com mais de 73 anos. Na entrevista, Paulinho da Viola responde  a um  jornalista acerca do seu modo de ser. Paulinho é reconhecidamente alguém modesto e simples, reservado mesmo, por vezes tímido no trato. Porém,  ele nada tem de tímido quando se trata de expressar, extroverter, a poesia através da música. Por outro lado, muitos cantores e cantoras extrovertidos, que falam pelo cotovelo e atropelam seus entrevistadores, e que vivem a dar opinião medíocre sobre tudo, tais cantores extrovertidos são impressionantemente introvertidos, tímidos, quando se trata de chegar perto, e conquistar, a poesia e a música!
Se levarmos em conta essa  autêntica extroversão, Paulinho é extrovertido: “vertido para” a alma plural e mestiça que lhe vai dentro, dele e de nós.
Havia uma insinuação  nas perguntas que lhe foram feitas: o jornalista dava a entender   que tais características  o teriam “atrapalhado” na carreira, digamos assim. O jornalista insinua  que se Paulinho fosse mais extrovertido talvez ele fosse, por exemplo, uma Ivete Sangalo ou um Carlinhos Braw (em termos de "sucesso" midiático, propagandístico).Mas se tais “artistas” citados fossem mais introvertidos eles seriam um Paulinho? 
Paulinho, com humor e paciência, como se espera de um nobre, responde que seu jeito e maneira de ser eram assim, em parte , pela mesma razão  que faz  cada um ser o que é : ele assim era devido à maneira como foi educado. Ele foi educado para ser simples e modesto. Sua indisfarçável e conhecida timidez não era exatamente devido à presença do outro. Ao contrário, tal timidez era o esforço  que ele fazia para vencer a si mesmo, o seu ego.
Em um mundo como o atual, no qual tudo tem que aparecer, ser expansivo como um “boneco de posto” agitando os braços, mas sem nada a dizer a não ser slogans, personalidades como a de Paulinho ( assim também eram Cartola e Manoel de Barros), são vistas como fracas, inseguras, tímidas. Porém, quando ouço e vejo os cantores que fazem sucesso na mídia comercial alardeando a si mesmos, penso que talvez fosse melhor, inclusive aos próprios, se mais contidos eles fossem, exercitando  mais a modesta hesitação diante da música, esforçando-se mais para conquistá-la e sê-la. Pois o que tais pessoas  propalam ter e ser não se conquista ou compra como uma roupa , uma tintura de cabelo, uma tatuagem ,  um terno. Muita propaganda deixa a gente desconfiado acerca da veracidade do  produto, já dizia minha querida avó.
Lendo tal entrevista com o Paulinho me lembrei de minha infância e juventude suburbanas, lá perto de Madureira. Também fui criado de forma semelhante: para não ser vanglorioso, rivalizador belicoso  e outras coisas que hoje são buscadas pelos RHs nos candidatos a vagas  de “liderança”. Fui educado assim, para não ser um babaca com ares arrogantes.
 Mas não foi exatamente apenas da minha família que veio tal educação. Essa educação era cultivada no meio em que vivia minha família. Era um ethos social suburbano. Aristóteles dizia que aquilo que existe mais , que é mais real e verdadeiro, existe sempre sob a forma do “sub”. O que é mais real, o que existe mais do que tudo,  o filósofo chamava de substância. A substância é o que existe dando suporte às instâncias, aos territórios nos quais existem as coisas  e pessoas. “Sub” não é exatamente o que é inferior, “sub” é o que está por baixo dando sustentação, como o alicerce da casa, como o solo sobre o qual corre o rio, como o caráter que sustenta as ações visíveis de um homem. O “erro” de Aristóteles foi ter projetado no sub o modo de ser das coisas que existem “sobre”, foi ter olhado para o que sustenta com os mesmos olhos com os quais se vê o sustentado, atribuindo-lhe então aspectos que apenas existem na casa, e não em seu alicerce. Mais longe a esse respeito foi Espinosa, que também emprega o termo “substância”, porém com outro sentido: nele o sub é onde se encontra a  Potência. Em Espinosa, a natureza é sub ( como Natureza Naturante) e sobre ela própria, como natureza naturada  (esse "sub" da potência transfiguradora expressa o mesmo que o "pré" das Pré-coisas manoelinas).
Então, sub-urbano não era , ao menos àquela época, algo inferior à urbanidade da zona sul. Sub-urbano é o que dava sustentação existencial às nossas existências urbanas. A base desse sub não eram exatamente valores familiares ou religiosos; a essência desse “sub” eram valores ético-políticos, valores estes que se tornavam reais pelas nossas práticas. A tomada de partido por tais valores antecedia as escolhas partidárias, e nos protegia dos sectarismos que envolvem as escolhas partidárias quando estas não são precedidas por um afeto por tudo aquilo que é sub, pois tal sub, exatamente por ser sub, nunca pode ser objeto de culto e poder.
Mais do que no espaço privado das casas, onde reina o “meu”, era no espaço de vizinhança que se aprendia  o afeto pelo comum, como prática das comunhões. Lembro-me das  trocas feitas entre minha mãe e suas vizinhas, no caso de alguma estar carecendo de algum produto em sua casa. Eram na verdade ofertas, “dons”. Por vezes era o feijão que se doava, e por ele se recebia amizade. Noutras ocasiões  éramos nós que recebíamos o açúcar que em nossa casa faltava, e em troca contradoávamos amizade. Tudo era oportunidade para reforçar a amizade como virtude sub-civilizatória, que sustenta a civilização , a família e as relações. Lá não se precisava de creche: as famílias recebiam os filhos umas das outras, quando havia necessidade.  
Essa “Madureira” em que cresci era mais do que um espaço físico, assim como é mais do que um pedaço de terra alagado o pantanal de que fala Manoel de Barros. Ele mesmo diz que o chão do pantanal ele também encontrou em Paris, Nova Iorque, São Paulo. Essa “Madureira” também a encontro onde haja esse sub-urbano nos espaços urbanos. Além disso, nem todos que nasceram em Madureira trazem essa “Madureira”, nem todos que nasceram no Pantanal são habitados pelo Pantanal poético. Por outro lado, mesmo quem não nasceu fisicamente no Pantanal ou em Madureira pode, no entanto, os eleger como Terra Natal . Os que têm a mesma terra natal se dizem con-terrâneos: vizinhos na mesma terra. Entre conterrâneos não há hierarquias, há tão somente a afirmação da mesma horizontalidade enquanto espaço do afeto. O Pantanal e Madureira são vizinhos, assim nos ensinou, brincativamente,  a Império Serrano.
Por intermédio de sua educação formal e escolar, centradas em “cartilhas e gramáticas”, os espaços urbanos são o território do qual nascem e são cultivados engenheiros, soldados, policiais, professores, funcionários públicos, pais, filhos , mães...Mas o sub é a terra onde nascem pensadores e poetas, seres que são , antes de tudo, da natureza, da substância. É em contágio com essa substância que eles vivem, produzem, sonham, doam e contradoam o feijão que alimenta o espírito.
Essa Madureira não está totalmente fora e nem totalmente dentro, ela é uma irradiação, um refrão, um ritornelo, enfim,   um mundo próprio  sem o qual  ficam, poetas e pensadores,  sem ar. E é a partir dessa terra que eles cantam e fazem cantar, como na avenida do samba o povo.
Quando me desterritorializo para alcançar essa Madureira politicamente poetizada, este é meu desejo-sonho: ao abrir a porta da minha casa, ver o Paulinho como meu vizinho; ao abrir minha  janela, ver  na janela vizinha Manoel nos horizontando.








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