A filosofia transformada em livros deixou de instigar os homens.
O que nela existe de insólito, de quase insuportável,
se escondeu na vida decente dos sistemas.
Merleau-Ponty
Dia dos professores é ocasião para nos lembrarmos dos mestres que tivemos,
sobretudo aqueles que nos marcaram de forma mais direta, vital, apaixonada.
Nesse sentido, talvez o professor mais decisivo em nossas vidas tenha sido o
primeiro. Não o primeiro que nos alfabetizou na gramática, mas aquele que nos
despertou para a atividade de pensar , para
as “agramáticas” ( diriam Manoel e Deleuze).No meu caso, aquele que me
despertou para a filosofia, que me
despertou para mim mesmo.
Eu
não tinha mais que 11 ou 12 anos. Vivíamos ainda sob a ditadura militar.O
colégio era excelente, bons professores, mas eu sentia que faltava algo.
Aprendíamos regras, normas, padrões,
sintaxes. Os professores que tínhamos
eram excelentes no ensino de tais coisas, que julgávamos ser as únicas coisas
que mereciam ser conhecidas. Eram coisas
“úteis” que nos ajudariam a sermos inteligentes, passar em concursos para o
banco do brasil ou nos tornarmos oficiais das forças armadas, assim diziam
nossos pais. Um mundo somente se revela limitado quando vem algo de fora dele.
Enquanto vivemos em seus limites, não os vemos como limites. Podemos até imaginar, para nos resignarmos , que tais limites são virtudes, ou então uma espécie de roteiro do tipo "as coisas são assim mesmo desde que Deus as fez, e nada pode ser diferente".
Um
dia apareceu uma nova professora de Língua e Literatura. Esta era uma matéria que muitos julgavam “menor”, desimportante, se
comparada com o português e suas regras. Língua e Literatura não se propunha a
ensinar regras. Seu objetivo era outro, mais difuso, indeterminado, aberto...O
objetivo da disciplina era nos fazer exercer a prática de interpretar. Esta
atividade nada tem a ver com decorar regras, tampouco repetir o que o professor
dizia. Interpretar não se faz sem autonomia . Decorar, reproduzir, todos
conhecíamos o que era, embora não soubéssemos bem qual o motivo de se decorar
ou reproduzir....Porém, não sabíamos muito bem o que era interpretar, mas sentíamos
que era algo que nos remetia para além dos livros e cartilhas.
Lembro
agora com nitidez o rosto da professora: ela não tinha mais que 30 anos. Ela era muito diferente dos
outros professores, no vestir, no olhar, no tratar. Ela não usava saia, usava
jeans! Não calçava sapatos, calçava tênis!
Contudo,infelizmente,
não havia muita empatia da turma com ela. Nós entendíamos, ainda que sem
refletir, que um professor “bom” era aquele que “passava” um conteúdo. Ele
devia ser respeitado, até mesmo temido, pois sendo temido a gente podia se
vingar dele pelas costas, zombando de seus defeitos físicos. Mas aquela
professora a gente não sabia muito bem que afeto nutrir por ela. Com ela a
gente era livre. E a gente não entendia muito bem o que era aquilo: ser livre .
Não
eram poucos os alunos que se aproveitavam da liberdade que ela dava para assim se
vingarem, na pessoa dela, do ódio que nutriam pelos outros professores mais
autoritários, diante dos quais , no entanto, praticavam obediência servil. Creio
que não estávamos preparados para aquela professora , nem ela soube nos
preparar para vencer nosso despreparo em sermos livres.
Ela
que me perdoe, pois não lembro o nome dela. Gostaria muito de lembrar, porém
não consigo. O que me lembro bem , o que me marcou para toda a vida, foi o
livro que ela adotou. Foi este livro que verdadeiramente me despertou. Ele me
despertou como nunca antes eu fora.
O
livro consistia quase que totalmente de “textos” a serem interpretados. Não
havia questões de múltipla escolha. As perguntas eram feitas para que nós
respondêssemos à mão. Soube anos depois que o nome disso é “dissertar”. E aqui
vem o principal: os textos a serem interpretados não eram em prosa, eles eram “poesia”.
A professora de português já nos havia feito ler, de forma obrigatória, os poetas
clássicos brasileiros. Confesso que li sem muito me afetar. Parecia-me algo
distante, que existia apenas em livros, como palavras de gente morta.
Não
eram assim os “poemas” do livro da professora nova. Eles eram muito diferentes.
Eram estranhos, é verdade; mas era uma estranheza que parecia vir não apenas
das palavras no papel, tal “estranheza” parecia morar também dentro de mim. Que
lugar era aquele para o qual os poemas me levavam? Esse lugar podia ser tudo,
menos um cemitério de gente morta.
Era
meados da década de 70 . Pouco tempo antes, aconteceram os Festivais da Canção.
O livro em questão apresentava como “poesia” a ser interpretada as letras das
músicas de tais festivais. Estes festivais foram o último respiro da
democracia, um respiro artístico, antes de a ditadura asfixiar tudo. Sem
dúvida, propor aquele livro foi um risco, uma ousadia, uma resistência.
Eu
nunca ouvira tais músicas, pois era muito pequeno quando os festivais
aconteceram, tampouco meus pais os acompanharam em casa, pois tais músicas não
faziam parte do universo musical deles. Enfim, antes de ouvir as músicas, li as
letras. E as li como poesia.
Foi
assim que ouvi falar pela primeira vez de Chico Buarque, Caetano Veloso, Geraldo
Vandré, Edu Lobo... A primeira vez que li “Janelas abertas nº 2”, de Caetano,
dentro de minha cabeça houve um “click”. Quando levantei os olhos do poema e
olhei para a sala, tudo estava diferente, a começar pela professora, pois agora
entendia o que ela queria, porém desentendendo
tudo o que antes eu imaginava que era estudo e teoria. E aquela sala, que eu
julgava tão grande, agora me parecia muito pequena para o tamanho das coisas
que os poemas descreviam. Mas não era um tamanho de importância, era um tamanho
de coisas incabíveis em tudo o que tem forma, limite, grade.
Quando
terminei de ler “Construção”, de Chico Buarque, eu já não era mais o mesmo. Não sabia o que aquelas
palavras diziam, mas como elas me diziam! Foi ali que eu nasci. Com 12 anos, parido não pelo conceito vazio e abstrato, mas pela pop'filosofia.
Ao tentar interpretar o que os poemas diziam,
era a mim mesmo que eu interpretava, disto sei agora. Daquelas músicas eu soube
antes as letras, e não imaginava que havia, para as letras, uma música. De mim
mesmo, desde então, tenho apenas a
música, cuja letra é sempre aquela que escreverei amanhã, inventando-a.
Minha
querida professora cujo nome é o nome de todos os que despertam e educam: não
há palavra que possa agradecer por você me ter dado um amanhã. Talvez seja por
isso que eu não consigo lembrar seu nome, pois memória é passado, e você ,
educação, é futuro, construção de futuro.
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