sexta-feira, 14 de outubro de 2016

para aquela que me despertou

                                           
A filosofia transformada em livros deixou de instigar os homens. 
O que nela existe de insólito, de quase insuportável, 
se escondeu na vida decente dos sistemas.
Merleau-Ponty

Dia dos professores é ocasião para nos lembrarmos dos mestres que tivemos, sobretudo aqueles que nos marcaram de forma mais direta, vital, apaixonada. Nesse sentido, talvez o professor mais decisivo em nossas vidas tenha sido o primeiro. Não o primeiro que nos alfabetizou na gramática, mas aquele que nos despertou para a  atividade de pensar , para as “agramáticas” ( diriam Manoel e Deleuze).No meu caso, aquele que me despertou  para a filosofia, que me despertou para  mim mesmo.
Eu não tinha mais  que 11 ou 12 anos. Vivíamos ainda sob a ditadura militar.O colégio era excelente, bons professores, mas eu sentia que faltava algo. Aprendíamos  regras, normas, padrões, sintaxes.  Os professores que tínhamos eram excelentes no ensino de tais coisas, que julgávamos ser as únicas coisas que mereciam ser conhecidas. Eram  coisas “úteis” que nos ajudariam a sermos inteligentes, passar em concursos para o banco do brasil ou nos tornarmos oficiais das forças armadas, assim diziam nossos pais. Um mundo somente se revela limitado quando vem algo de fora dele. Enquanto vivemos em seus limites, não os vemos como limites. Podemos até imaginar, para nos resignarmos , que tais limites são virtudes, ou então uma espécie de roteiro do tipo "as coisas são assim mesmo desde que Deus as fez, e nada pode ser diferente".
Um dia apareceu uma nova professora de Língua e Literatura. Esta era uma matéria  que muitos julgavam “menor”, desimportante, se comparada com o português e suas regras. Língua e Literatura não se propunha a ensinar regras. Seu objetivo era outro, mais difuso, indeterminado, aberto...O objetivo da disciplina era nos fazer exercer a prática de interpretar. Esta atividade nada tem a ver com decorar regras, tampouco repetir o que o professor dizia. Interpretar não se faz sem autonomia . Decorar, reproduzir, todos conhecíamos o que era, embora não soubéssemos bem qual o motivo de se decorar ou reproduzir....Porém, não sabíamos muito bem o que era interpretar, mas sentíamos que era algo que nos remetia para além dos livros e cartilhas.
Lembro agora com nitidez o rosto da professora: ela não tinha mais  que 30 anos. Ela era muito diferente dos outros professores, no vestir, no olhar, no tratar. Ela não usava saia, usava jeans! Não calçava sapatos, calçava tênis!
Contudo,infelizmente, não havia muita empatia da turma com ela. Nós entendíamos, ainda que sem refletir, que um professor “bom” era aquele que “passava” um conteúdo. Ele devia ser respeitado, até mesmo temido, pois sendo temido a gente podia se vingar dele pelas costas, zombando de seus defeitos físicos. Mas aquela professora a gente não sabia muito bem que afeto nutrir por ela. Com ela a gente era livre. E a gente não entendia muito bem o que era aquilo: ser livre .
Não eram poucos os alunos que se aproveitavam da liberdade que ela dava para assim se vingarem, na pessoa dela, do ódio que nutriam pelos outros professores mais autoritários, diante dos quais , no entanto, praticavam obediência servil. Creio que não estávamos preparados para aquela professora , nem ela soube nos preparar para vencer nosso despreparo em sermos livres.
Ela que me perdoe, pois não lembro o nome dela. Gostaria muito de lembrar, porém não consigo. O que me lembro bem , o que me marcou para toda a vida, foi o livro que ela adotou. Foi este livro que verdadeiramente me despertou. Ele me despertou como nunca antes eu fora.
O livro consistia quase que totalmente de “textos” a serem interpretados. Não havia questões de múltipla escolha. As perguntas eram feitas para que nós respondêssemos à mão. Soube anos depois que o nome disso é “dissertar”. E aqui vem o principal: os textos a serem interpretados não eram em prosa, eles eram “poesia”. A professora de português já nos havia  feito ler, de forma obrigatória, os poetas clássicos brasileiros. Confesso que li sem muito me afetar. Parecia-me algo distante, que existia apenas em livros, como  palavras de gente morta.
Não eram assim os “poemas” do livro da professora nova. Eles eram muito diferentes. Eram estranhos, é verdade; mas era uma estranheza que parecia vir não apenas das palavras no papel, tal “estranheza” parecia morar também dentro de mim. Que lugar era aquele para o qual os poemas me levavam? Esse lugar podia ser tudo, menos um cemitério de gente morta.
Era meados da década de 70 . Pouco tempo antes, aconteceram os Festivais da Canção. O livro em questão apresentava como “poesia” a ser interpretada as letras das músicas de tais festivais. Estes festivais foram o último respiro da democracia, um respiro artístico, antes de a ditadura asfixiar tudo. Sem dúvida, propor aquele livro foi um risco, uma ousadia, uma resistência.
Eu nunca ouvira tais músicas, pois era muito pequeno quando os festivais aconteceram, tampouco meus pais os acompanharam em casa, pois tais músicas não faziam parte do universo musical deles. Enfim, antes de ouvir as músicas, li as letras. E as li como poesia.
Foi assim que ouvi falar pela primeira vez de Chico Buarque, Caetano Veloso, Geraldo Vandré, Edu Lobo... A primeira vez que li “Janelas abertas nº 2”, de Caetano, dentro de minha cabeça houve um “click”. Quando levantei os olhos do poema e olhei para a sala, tudo estava diferente, a começar pela professora, pois agora entendia o que ela queria,  porém desentendendo tudo o que antes eu imaginava que era estudo e teoria. E aquela sala, que eu julgava tão grande, agora me parecia muito pequena para o tamanho das coisas que os poemas descreviam. Mas não era um tamanho de importância, era um tamanho de coisas incabíveis em tudo o que tem forma, limite, grade.
Quando terminei de ler “Construção”, de Chico Buarque, eu já não  era mais o mesmo. Não sabia o que aquelas palavras diziam, mas como elas me diziam! Foi ali que eu nasci. Com 12 anos, parido não pelo conceito vazio e abstrato, mas pela pop'filosofia.
 Ao tentar interpretar o que os poemas diziam, era a mim mesmo que eu interpretava, disto sei agora. Daquelas músicas eu soube antes as letras, e não imaginava que havia, para as letras, uma música. De mim mesmo, desde então,  tenho apenas a música, cuja letra é sempre aquela que escreverei amanhã, inventando-a.
Minha querida professora cujo nome é o nome de todos os que despertam e educam: não há palavra que possa agradecer por você me ter dado um amanhã. Talvez seja por isso que eu não consigo lembrar seu nome, pois memória é passado, e você , educação, é futuro, construção de futuro.







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