sexta-feira, 6 de julho de 2018

- o poema de espinosa

Em Espinosa, tudo é luz.
O aumento de potência é um esclarecimento ( es-claro: tornar mais claro);
a diminuição de potência, um assombreamento.
Deleuze

Quando se fala muito claramente,
fala-se muito infinitamente.
Maria Gabriela Llansol

       Segundo Espinosa, o infinito somente pode ser alcançado pelo intelecto. Não quando este conta, mede ou calcula. Tampouco quando ele apenas raciocina ou teoriza. O infinito, Deus, somente pode ser alcançado pelo amor intellectus dei , pelo amor do intelecto a Deus. O intelecto apenas consegue alcançar o infinito quando ele aprende a exercer um tipo muito singular, e raro, de amor. O intelecto também pode amar. Se ele não chega a esse amor, não será um intelecto completo, dele não nascerá um conhecimento como expressão de sua máxima potência.
Eis então a difícil tarefa do intelecto: somente ele é o instrumento para nos fazer compreender Deus (somente ele, e não a imaginação). No entanto, como é difícil ao intelecto amar...O intelecto crê que amar é coisa apenas do corpo e da sensibilidade. E que amar afasta-nos da objetiva verdade.
Mas se o intelecto aprender esse amor que somente ele pode, aprenderá que há  realidades mais verdadeiras do que aquelas que ele alcança apenas com a objetiva verdade. Um intelecto que a esse amor aprende, metamorfoseia-se e se torna mais do que pode compreender todo intelecto que não ama. O intelecto assim transfigurado já não será diferente de um poeta. Não um poeta apenas de versos, mas um poeta do pensamento e das ideias, como foi Espinosa.
     No Iluminismo, é a razão, e tão somente ela, a fonte de Luz, como um sol.Em Espinosa, diferentemente, a Luz é o infinito mesmo, e se assemelha mais ao clarão do relâmpago. A Luz é o próprio Amor, como relâmpago irrefreável que desfaz a noite . A razão científica é o intelecto refletindo a Luz, como um espelho.Um espelho reflete o que nele toca. Refletir é devolver o que se recebeu. A razão devolve o Amor que recebe, pois é graças à Luz que ela conhece: a Luz devolvida ilumina o mundo a conhecer.  É pelo seu poder de refletir que a razão conhece o mundo externo, desde que se faça dia .  
      O intelecto  filosófico alcança o máximo do que ele pode quando não apenas reflete a Luz, e sim a absorve : faz-se nele então dia, mesmo que ao redor seja tudo noite. Ele a absorve para conhecer a si mesmo, e não apenas ao mundo externo: quanto mais translúcido, mais o intelecto se conhece absorvendo a Luz que é Amor lhe esclarecendo, clareando. O Amor assim conhecido lhe está dentro e lhe está fora: é o Todo, é Tudo. Relâmpago Absoluto, no clarão e na velocidade.Todas as coisas que a razão conhece são Luz refletida. Porém, o intelecto filosófico, como instrumento metafísico-poético, absorve a Luz para ser da Luz uma expressão potentemente viva:"figuras de luz e não mais figuras geométricas reveladas pela luz" (Deleuze). Dessa maneira, torna-se o intelecto também Amor, absorvendo-o como Afeto beatitude translúcida a si, desfazendo toda opacidade, embora não se sabendo tudo o que a Luz-Amor pode. O termo "beatitude" deriva de beatus, que significa "riqueza". Não a riqueza de acumular coisas, mas riqueza de absorver o máximo da Luz , para assim fazer dela a rara salus (saúde) conquistada, afirmada . O intelecto somente alcança o infinito quando o encontra primeiro dentro dele, como clarão que deveio Ideia, para assim desabrir-se , no pensar e  no agir.





(O clarão de Espinosa)



quinta-feira, 5 de julho de 2018

lhasa


"O depois sempre acrescenta alguma coisa ao antes."(Bergson)






a razão, o irracional e a arte


No mito, Teseu representa a racionalidade simbolizada pelo homem como padrão. Teseu  teme o imprevisto  e evita todo caminho que não seja reto. Teseu quer a tudo dominar com régua e compasso . Teseu queria  matar o Minotauro, este híbrido de animal e homem. Teseu sabe que poderia vencer o Minotauro  se o encontrasse em céu aberto, sob a luz do sol da Razão. Mais do que ao Minotauro , Teseu teme o  labirinto onde o Minotauro mora. Pois para entrar no labirinto  Teseu teria que  deixar fora  sua  arma preferida : a lógica. Teseu é a razão falocrática; Minotauro ,  as pulsões do inconsciente.
Então, Teseu pede auxílio a  Ariadne. Em grego, Ariadne significa “aranha”. A teia da aranha é uma espécie de labirinto .Ariadne é uma produtora de labirintos. É por isso que ela o conhece bem, pois conhecer uma coisa é ser capaz de produzi-la, sem ficar apenas a  teorizá-la. Artista, ela conhece como se produz um labirinto, e sabe que para vencer um labirinto é preciso um fio, uma linha. Não uma linha que se traça com  régua, mas uma linha que se desprende de um novelo,  permanecendo  ligada a este, tal como o raio à fonte de luz, os atos ao seu autor, o rio à sua nascente. “Novelo” significa: "novo elo". Um novelo é feitos de elos, de “linhas de fuga”, e não de  linhas retas que começam e terminam em pontos, em egos.É com o fio de Ariadne, fio do afeto,  que Teseu, desperto, entra no labirinto e mata o irracional enquanto este dorme. Porém, Teseu  logo  abandona Ariadne quando consegue lograr seus intentos neuróticos. Ariadne quase morreu... É Dioniso quem resgata Ariadne do próprio labirinto em que ela, triste, se prendeu.



domingo, 1 de julho de 2018

ser um poeta, mesmo com a bola


“É preciso proteger os fortes dos fracos.” Essa frase do Nietzsche  se aplica a várias coisas, inclusive ao futebol . Na bola, o forte é  mais do que mero atleta, sendo também  criativo, artístico, pensador. O criativo respeita as regras, mas não se limita a elas,  pois ele exerce  uma potência singular  :  sua arte de jogar/pensar. Por isso , ele também sabe  inventar o improvável que não está previsto na “regra acostumada”,  sem fazer de sua invenção  uma burla ou infração. Quando o Leônidas da Silva inventou a “bicicleta”, o juiz parou sem saber o que fazer, pois Leônidas “inventou um comportamento” apoiado apenas naquilo que “pode um corpo”, como já dizia Espinosa.  Em geral, o craque-criativo-pensador sofre violências e agressões. Do ponto de vista meramente físico, o jogador que entra violentamente no craque, imaginando que assim o vence, só aparentemente o violento-brigão é forte. Do ponto de vista do futebol, o mero violento  é fraco. Forte é o pensador-criador, e é por isso que ele precisa ser protegido. Quando se aplica o cartão amarelo ou vermelho para  proteger o forte, é porque se quer proteger igualmente o futebol enquanto prática mais do que meramente de força física. Talvez tal cuidado pudesse nos inspirar na  política: proteger os fortes (os que têm ideias fortalecedoras das regras democráticas), dos fracos (os que têm apenas a força do dinheiro, da mídia ou da mera promessa de violência bruta mesmo...). Nosso voto será nossa sentença: proteger o forte ou o fraco?
Baudelaire dizia: “seja sempre poeta, mesmo em prosa”. Mesmo sem ler Baudelaire, Leônidas da Silva aprendeu a lição: “sendo um poeta, mesmo com a bola”.

( foto: Leônidas e sua “bicicleta”)





sexta-feira, 29 de junho de 2018

a mensagem


No mito, Hermes é o “deus mensageiro”: é ele que leva as mensagens. Mas as mensagens que Hermes carregava não eram feitas apenas de palavras , pelo seguinte motivo :  quando era ainda criança , Dioniso, o  deus das artes ,   foi  vítima do  ódio e da vingança  , sendo despedaçado pelos seus perseguidores. Hermes então recolheu e guardou o coração de Dioniso, antes que os vingativos e ressentidos o esmagassem. Por isso, Hermes só  transporta mensagens que aceitem ter um coração dentro. Suas mensagens não trazem apenas  meras informações utilitárias, mas sentidos libertários que educam, sensibilizando. Nunca elas se prestam ao ódio ou ao preconceito, e sim à  gentileza e ao cuidado, mesmo quando criticam. Vencendo a barreira da prosa, tais mensagens também se expressam no verso e no canto. Elas também podem ser ditas em gestos ou em obras, desde que sejam para defender e potencializar a vida, para assim resistir e  lutar contra tudo aquilo que quer despedaçá-la. São mensagens assim  que o poeta deseja também escrever, quando diz: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento” (Manoel de Barros)

                                                                                                                                             
(foto: em protesto contra a violência sofrida  de bandidos e policiais, moradores da Maré resistem por meio de um gesto-mensagem: plantam flores , vida, nos buracos das balas)



sábado, 23 de junho de 2018

as imitagens...


Às vezes começa-se a brincar de pensar, 
e eis que inesperadamente o brinquedo é que começa a brincar conosco.
 Clarice  Lispector

Segundo Manoel de Barros,  toda invenção é um  exercício de  “imitagem” , ao modo de um camaleão: “Inventar comportamento” , diz o poeta,  “é ir imitando  os camaleões sendo pedra sendo lata sendo lesma” , pois  “os comparamentos matam a comunhão”.  Singularizar-se não é colocar-se como  um todo à parte,  egoicamente,  mas aprender uma forma de comunhão por imitagem, como parte de um agenciamento. A imitagem não nasce de um comparar-se para medir-se com o outro, na pretensão de ser maior ; tampouco a imitagem  é  um tornar-se mera cópia de um Modelo ou Padrão. A imitagem é a produção de uma variação por contágio , como nos ensina  a pequena menina, em sua  fabricação brincativa de um estilo . Em toda imitagem há uma   aprendizagem não escolar de uma diferença que se afirma compondo-se, em liberdade. Em sua imitagem, é a menina, e não o quadro, a obra de maior arte.
Na mito, as “Musas” são filhas de Zeus, o deus da Justiça,  e Mnemósyne, a deusa da Memória. “Museu” vem de “Musa”. Em grego, “Musa” significa  “conhecimento”. Não um conhecimento de coisa ou objeto, mas conhecimento de algo que se fez e que não pode ser esquecido. As Musas nasceram para celebrar e co-memorar ( “criar memória”) um feito de Zeus: ele derrotou as forças da barbárie que ameaçavam a comunidade . As Musas,  deusas das artes,  nasceram para nos fazer lembrar que se pode vencer a barbárie.



quinta-feira, 21 de junho de 2018

quando a palavra não basta

Quando pensava e falava, havia um ponto , um ponto enigmático, em que Heráclito parava de exercer o logos, e chorava. Nada mais dizia, apenas chorava.Então, os adultos se afastavam,  apenas as crianças ficavam perto dele.

Demócrito, por sua vez, interrompia seu filosofar com  estouros de riso.Não havia deboche ou ironia no seu rir, apenas alegria.

Sócrates punha um ponto final em seu filosofar sempre com longos silêncios meditativos, olhando para o nada.

Platão cessava seu discurso e se dirigia ao quadro para desenhar retas e formas geométricas,  dizendo  confiar mais nelas do que nas palavras.

Aristóteles , após ordenar as palavras, levava seus discípulos para verem a ordem  que preside o mundo: recolhia sementes, peixes, estrelas-do-mar, arraias, incontáveis animais e os punha em ordem, como se fosse um silogismo.

Os estoicos diziam que as palavras são apenas a metade do sentido: a outra metade é o agir, e assim eles ensinavam fazendo, agindo, não temendo a confusão do mundo.

Espinosa afirmava que há um  momento em que a palavra não conduz mais: é preciso então estender a mão e conduzir quem está perdido.

Nietzsche escrevia caminhando. Ele escrevia  seguindo trilhas que subiam , nunca as que desciam , para que no texto o sentido também se elevasse. 


Wittgenstein escrevia e parava. E o restante do que  queria dizer ele o fazia cuidando de jardins:  adubava, podava, colhia e oferecia , de graça, aquilo que cuidou e fez nascer. 


poema-concreto de Décio Pignatari



sábado, 16 de junho de 2018

a metafísica


                              O QUE SIGNIFICA METAFÍSICA?[1]

A metafísica é a disciplina mais nobre da filosofia. Ela é a mais digna, a mais elevada, a mais afastada dos interesses meramente utilitários ou pragmáticos. A palavra metafísica é composta de duas outras palavras que se agenciaram: meta e physis. Erradamente se traduz “meta” por “além”. Isso pode levar a imaginar que a busca pela metafísica seria como uma viagem de desterro, um ir para longe, para o alto e distante. Às vezes perguntamos a  alguém: “qual é sua meta?” . Isso pode significar: “o que você quer alcançar? O que você deseja?” .Se alguém perguntasse à semente qual é sua meta, ela responderia dizendo que sua meta é ser uma  árvore, uma árvore que dê frutos e sementes. Se alguém indagasse às letras qual é sua meta, talvez elas respondessem: minha meta é ser palavra poética no papel ou na boca de alguém que canta. É pouco provável que letras tivessem como meta tornarem-se palavras mentirosas, que negassem a si mesmas, privadas de dignidade. Em metafísica, dignidade é a virtude do que é verdadeiro, autêntico.
A meta de uma semente de abacateiro é tornar-se uma árvore: o abacateiro. Mas a árvore que a semente será já existe na semente, como a sua razão de ser ou finalidade. Essa árvore que existe na semente está além da mera existência material da semente, porém não lhe está fora, distante. Essa árvore enquanto meta da semente é sua essência. A árvore, enquanto essência, já está na semente, mas não enquanto matéria. Essa essência é a forma. A forma é a causa de a semente se tornar árvore. Uma semente de abacateiro não se torna um abacateiro devido ao acaso: há uma razão de ser. Por isso, a semente tem na forma a sua finalidade de existir. A essência-árvore é a causa de a semente se tornar árvore. Contudo, não é uma causa que age de fora, tal como um cinzel moldando o mármore. A essência é uma causa que age dentro, no ser mesmo da semente, e dá inteligibilidade à sua existência individual de semente. É a  essência-árvore que dá vida à semente. Essa essência ou forma existe metafisicamente na semente.
Assim, meta não é o que está além no sentido de algo a ser alcançado. “Meta” também é um movimento de alcançar o que precisa ser criado. Meta-físico não é o que está além do físico , como o céu está além do chão. O meta é o que dá sentido ao físico, o organiza, o faz ter uma forma, um aspecto, um querer. Uma realidade metafísica não é uma realidade distante e além, ela é uma realidade diferente da realidade física, e não está além ou aquém desta, mas junto, embora diferente.
Toda realidade metafísica é incorpórea. Porém, nem tudo o que é imaterial é metafísico. Por exemplo, posso imaginar que estou a correr em uma praia, embora eu esteja na verdade aqui sentado no sofá de casa. Essa imagem ou fantasia não existe por si mesma, ela existe em minha mente apenas. Ela não tem autonomia. Essa imaginação pode ser apenas o efeito de meu enfado de estar em casa. Tal fantasiar existe apenas enquanto realidade psicológica. As realidades psicológicas existem em razão das vivências de um ego. É sempre o ego , ou algo que sobre ele age, que explica o surgir de uma imagem ou imaginação. O mesmo aconteceria se eu , ao invés de imaginar , me lembrasse da ocasião em que estive em uma praia e corri sobre sua areia. Coisa diferente, no entanto, é se indagar acerca do que é o eu, ou do que é a imaginação ou do que é a mente. Para tais coisas, seria preciso formar ideias. E ainda mais: indagar acerca do que é uma ideia! A metafísica não se encerra nos produtos da mente, ela indaga acerca do que é a mente e também sobre o que existe fora dela.
A metafísica conheceu ou conhece duas maneiras de se expressar. A primeira delas se confunde com sua origem grega, ao passo que a outra nasce e traduz a posição moderna, mais próxima de nós no tempo. Entre os gregos, a metafísica nascia de uma experiência. Não a experiência com algo já visto, mas experiência com algo que põe no limite todo ver. Não era uma experiência meramente teórica ou conceitual. O motor dessa experiência era um afeto: a admiração ou o espanto. Não o espanto ou admiração diante de um fenômeno natural ou fato grandioso , tampouco espanto ou admiração diante de um prédio enorme ou um artefato técnico feito pelo homem. O espanto era em relação à existência. Não exatamente com a  própria existência daquele que se admira  ou com a existência  de algo externo que se vê ou percebe. O espanto e admiração eram em relação à existência inteira, toda, imensurável, infinita, absoluta. Era uma admiração por aquilo que não se podia abarcar, com o olho ou com o pensamento, mas que  estimulava o olho e o pensamento, mais do que as cores , para aquele, e mais do que teorias, para este. Esse espanto ou admiração eram afetos afirmativos, expansivos, confiantes, que faziam a vida própria transbordar para fora e ir além (“meta”).
Essa admiração pelo infinito  vinha sem aviso, sem preparação ou estudos em livros. Ela nascia de um certo desapego ao habitual e familiar, para que o grego pudesse se  familiarizar com o mais estranho e inaudito. Era uma espécie de acordar de um sono, sono este ao qual a doxa  chama de realidade. Esse despertar não se fazia apenas com o espírito, pois dele também participava o corpo, através de um olhar que se metamorfoseava em uma visão fontana, diria o poeta. Era o inaugurar do ver no ato mesmo de ver, e isso depois de tanto olhar sem ver. Nesse olhar o conhecimento e a poesia ainda estavam unidos no mesmo jorro indistinto da vida ,  e esta convidava o pensamento  a ser o seu destino, livremente.
Enquanto a metafísica grega se apoiava no ponto de exclamação, será o ponto de interrogação a motivação da metafísica moderna. A metafísica moderna pode ser expressa em uma pergunta: “por que existe o ser e não, antes, o nada?”. A metafísica moderna introduz algo impensável para o grego: o nada. Quando Parmênides, por exemplo, fala em não-ser, este não é o "nada", e sim ignorância do Ser.
Enquanto no mundo grego a metafísica constituiu o acabamento ou fundamentação das ciências, no mundo moderno haverá radical cisão entre a ciência e a metafísica. A ciência moderna se debruça sobre fatos ou fenômenos: ela não indaga sobre o ser, ela procede mediante recortes que lhe darão seus respectivos objetos. Assim, a física não estuda o ser, mas os objetos físicos. A química não estuda o ser, e sim os objetos químicos. Para um cientista, pensar o nada é loucura...além de perda de tempo. E mais perda de tempo ainda é pensar o Ser...
O mundo grego desconheceu o que é isso: o nada. Segundo Heidegger, a ciência é um esquecimento do ser, ela se inscreve  ainda dentro da história da metafísica, mas como seu epílogo, como o lugar de um esquecimento daquilo que tornou o humano humano: a indagação ,sem fins utilitários, acerca do sentido da existência. Para Heidegger, está vedado para nós para todo sempre aquilo que os gregos experimentaram e chamaram de existência. Não sabemos mais o que é isso, ficamos apenas com a letra e nos fugiu o espírito.




[1] Texto elaborado pelo Prof. Elton Luiz como complemento às aulas.


                          

(Haroldo de Campos)


sexta-feira, 15 de junho de 2018

o pote e o poeta


No poema "Aventura", o personagem é um pote que Manoel de Barros encontra jogado fora de "barriga vazia para cima", “encostado  à natureza”. Nesse estado de abandono, o pote continha apenas o vazio.  Talvez o pote já  tenha guardado  um dia algo muito desejável, e que com avidez  os homens devoraram.Enquanto durou esse conteúdo , o pote foi amado – ou  imaginou que o  fosse. Depois de lhe tirarem tudo , ele   foi então  abandonado pelos mesmos homens que  dele se alimentaram.  “Inútil”,  o pote já não servia para nada, a não ser para metamorfoses, pois é isto que a natureza produz em tudo aquilo que, ao encostar nela, sofre um contágio, uma comunhão: "depois desse desmanche em natureza, as latas podem até namorar com as borboletas", pressagiou o poeta. Mas assim ele se foi: pensando no triste fim daquele pote...
Tempos depois, o poeta teve que passar pelo mesmo lugar ermo.Lembrou do pote e preparou-se para ver de novo aquela imagem do sofrimento. Porém, nesse intervalo de tempo , sem que o poeta soubesse,um passarinho passou voando “atoamente” sobre o pote e cuspiu uma semente em seu ventre vazio. Ali já havia areia e cisco  que a natureza depositou."As chuvas e os ventos deram à gravidez do pote forças de parir". E onde antes crescia o vazio,  agora um vivo poema aflorou: nasceu do  ventre  um pé de rosas .E repleto ficou o pote com a beleza que se oferta sem nada pedir em troca.



(Vaso com Zinnias e Geraniums, 1886 - van Gogh)


quarta-feira, 13 de junho de 2018

dos animais e dos homens


Quem vê a imensa baleia a nadar imagina que a natureza a fez para tal comportamento desde sempre.Quem vê o morcego a voar imagina que ele sempre teve asas.Porém, como começou a nadar a primeira baleia? Se o primeiro nado foi invenção, não havia um nado anterior, um “Modelo”, para imitar.Talvez esse nado inaugural se assemelhasse mais a um ousar e arriscar para conquistar um novo meio , afirmando uma força vital que não aceita derrota antecipada: o primeiro nadar nasceu de não se deixar afogar.O mesmo se aplica ao voo do morcego: o que hoje é voo sem receio, primeiro foi salto sem ainda ter asas. E mesmo no voo mais perfeito do morcego de hoje, ainda existe esse salto ousado como sua causa.O primeiro voar foi vitória sobre o medo de cair : cada voo de agora também celebra aquela inaugural vitória . Para os que sufocam neste mundo de agora, que se arroga “o fim da história”, o devir da vida mostra que a conquista de novo meio não se faz sem ousar crer nos “inauguramentos”, e fazê-los. Já os “adaptados” ao “viver acostumado” da época vigente ignoram o “inventar comportamento” que a vida, para sobrevivermos, quer de nós agora: na invenção de novos meios de “horizontamentos”, tal como para os morcegos foram as asas; e criação de novos órgãos exploratórios que achem/inventem novo ar respirável, para o corpo e para a alma.

"Não é o forte quem se adapta e o fraco quem sucumbe. Ao contrário, é o fraco que se adapta: o forte ou muda o meio ou sucumbe”.
 Nietzsche, Anti-Darwin .


“Poesia é inventar comportamento”, “Poesia pode ser que seja fazer outro mundo”
Manoel de Barros