domingo, 31 de dezembro de 2017

regeneratio3

Na ponta do meu lápis há apenas nascimento.
 Manoel de Barros   
        
Dentro do casulo parece que a lagarta está morta. E, de fato, ela está. Ela não se move, ela está parada: ela é o passado que morre. Para a lagarta, o casulo é um túmulo. Mas algo ali acontece, e para ver esse processo poucos têm os olhos. Pois o que chamamos morte da lagarta, como fim ou término, é apenas o começo do nascer da borboleta. Não é a morte da lagarta que cria o nascer da borboleta. Ao contrário, é o nascer da borboleta que dá à morte da lagarta um outro sentido. O casulo , na verdade, nunca foi um túmulo: ele sempre foi um útero em razão da metamorfose do que  há de nascer. O mundo que a lagarta via   não será o mesmo que a borboleta verá : mudará o mundo porque mudarão, antes, os olhos que o irão ver.


Penso renovar os homens usando borboletas.
Manoel de Barros







sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

a não velhez dos dias


Durante as viagens sem rumo dos andarilhos
eles são instalados na natureza igual se fossem uma aurora.
Manoel de Barros
                                                                                                                                                                                                                                
                                                                                                         
Erguer-se... como se ergue a aurora do seio da noite.

     Homero, Ilíada 
   

“O que é verdadeiramente novo nunca vira sucata” , ensina o poeta  Manoel de Barros. “Sucata”, segundo o poeta, é tudo aquilo que a “velhez venceu”. “Velhez” não é uma vida perto do fim , velhez é uma vida que se perdeu de seu começo, de seu “minadouro”, de sua (re)invenção.
Se 2017 está virando sucata, não era ele verdadeiramente o tempo novo. Se 2018 também vai virar sucata, não acharemos nele o novo que desejamos . Mas onde achar a “não velhez” do tempo, o seu embrião?
Sem fazer alarde ou  promessas,  independente de tecnologias,  a aurora de não importa qual dia nos dá a resposta, sem exigir champanhe ou fogos em troca: uma aurora sempre vem para nos lembrar que todo dia  é dia novo! ( e não apenas 1º de janeiro!) 


       

                                              

     

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

livro: poesia pode ser que seja fazer outro mundo

                                         
         




(trecho do livro a sair em março/2018, pela editora 7letras)



                Poesia pode ser que seja fazer outro mundo
               - Uma homenagem ao centenário de Manoel de Barros -

 Eu sou dois seres.
O primeiro é fruto do amor de João e Alice.
                               O segundo é letral:        
É fruto de uma natureza que pensa por imagens,
Como diria Paul Valéry. 
O primeiro está aqui de unha, roupa, chapéu e vaidades.
O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades frases.
E aceitamos que você empregue o seu amor em nós.
                                                                        (Manoel de Barros, Poemas rupestres)      
           
                                                                                                   
- Inventar aumenta o mundo

"Poesia pode ser que seja fazer outro mundo" é um verso do próprio Manoel[1].  Mil sentidos podem ser extraídos dele,  inesgotável é sua riqueza. Acreditamos que a ênfase deve ser colocada no “fazer”, no produzir, e não no mundo enquanto produto ou coisa pronta, tangível, reconhecível, etiquetável, prestes a virar propriedade de um dono. Sempre haverá mundo para a poesia fazer, a poesia mais necessária é prática de fazer outros mundos: mundos políticos, psíquicos, oníricos, semióticos, desejantes, enfim, mundos por fazer, sempre múltiplos. É da invenção fazedora de mundos que o poeta deseja ser o dono, não do mundo: "quem inventa é dono daquilo que inventa, quem descreve não é dono daquilo que descreve"[2], diz o poeta.
Se estivesse vivo, Manoel de Barros completaria 100 anos em 2016.  Mais precisamente, no dia 19 de dezembro. Esse número tão expressivo parece contrastar com a imagem que o poeta imprimiu à sua obra. Não são as datas e a passagem do tempo que o interessam, mas “as origens que renovam”[4]. Quanto mais o tempo passa, mais a obra de Manoel de Barros parece nos encantar como seus inauguramentos, seus exercícios de ser criança: “Quem é quando criança a natureza nos mistura com suas árvores, com as suas águas, com o olho azul do céu. Por tudo isso que eu não gostasse de botar data na existência”[5].
Este livro nasceu de evento-homenagem ao poeta acontecido em outubro de 2016, na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Tal como no evento, quisemos fazer um livro-homenagem também plural, transdisciplinar, reunindo filósofos, poetas, pesquisadores, enfim, profissionais que encontraram na obra do poeta um caminho para a invenção de ideias. Manoel foi para nós um intercessor. Um intercessor não nasce da intercessão de opiniões idênticas ou semelhantes, mas do produzir singularmente uma área de afeto onde não se diz mais "eu" ou "outro": ousa-se dizer "nós", mesmo que ainda em balbucio ou gaguejando. O intercessor-Manoel nos colocou em estado de embrião, como forma em rascunho, no limite de nós mesmos, desabrindo-nos. Somente dessa maneira pudemos, com Manoel, ousar um “afloramento de falas”.
É de se notar, hoje, a variedade de campos envolvidos nas produções acadêmicas que tomam o poeta como tema. Além da Teoria Literária, há estudos em Filosofia, Dança, Geografia, Psicologia, Pedagogia, Museologia, Teatro…Essa pluralidade expressa a riqueza de uma poética que ainda se oferece por descobrir, exigindo um rico trabalho de diálogo interdisciplinar em sua hermenêutica. Mas Manoel é arisco: a expressão reta não o apanha...
O livro deseja contribuir para a divulgação de um pensador originalíssimo de nossa cultura, com influência crescente nas mais diversas áreas da vida brasileira. Apesar do reconhecimento midiático, a poética de Manoel ainda é relativamente pouco conhecida e estudada, e falar dela também é, sem dúvida, pensar nossa sociedade, nossa linguagem e as formas plurais mediante as quais produzimos conhecimento. Esta é a originalidade do poeta: uma simplicidade sem pose, uma simplicidade múltipla, pois toda autêntica simplicidade é vária, com-plexa: múltiplas coisas estão dobradas e implicadas nela.



"Por coisas singulares entendo coisas que são finitas e têm existência determinada. E se vários indivíduos concorrem em uma ação de forma que todos juntos são causas de um efeito, considero-os todos, nesta medida, como uma coisa singular".(Espinosa, Ética, Segunda Parte, definição VII)






[1] Encontros: Manoel de Barros (org. Adalberto Müller), Rio de Janeiro: Azougue, 2010, p. 68.
[2] Entrevista concedida ao jornalista José Castello e publicada no site Jornal de Poesia, em 30/05/2005.
[3] Encontros: Manoel de Barros, p. 135.
[4] Poema “Aprendimentos” , Memórias inventadas – as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Editora Planeta, 2010, p. 109.
[5] Manoel de Barros, Memórias inventadas: as infâncias de Manoel de Barros, p. 113.                                   

mendive-espinosa

Um corpo bebe outro corpo
Um corpo come outro corpo
Um corpo sorve outro corpo          
Um corpo pare outro corpo
Um corpo fere outro corpo
Um corpo ama outro corpo
Um corpo odeia outro corpo
Um corpo se une a outro corpo
Um corpo se afasta de outro corpo
Um corpo entra em outro corpo
Um corpo sai de outro corpo
Um corpo afeta outro corpo
Um corpo é afetado por outro corpo.

E todos os corpos são um só Corpo,
expresso diferentemente em cada corpo.
Porém este Corpo Único não é O Corpo
pairando acima dos corpos.
Se assim  fosse não seria corpo 
este Corpo Um do múltiplo,
seria ideia  incorpórea do corpo:
pura abstração,corpo morto. 

Não existe  o Corpo Infinitamente Uno
a não ser expresso nos uns singularmente únicos;
não existe a multiplicidade de corpos únicos
a não ser como expressões singulares do Corpo Uno.


o corpo verde da planta
o corpo pardo do bicho
o corpo amarelo do sol
o corpo branco da água
o corpo negro da terra
meu corpo e o teu
são cores únicas da Una Cor
expressa diferentemente em cada uma.





O mito da criação, Mendive

domingo, 24 de dezembro de 2017

intermezzo

Entre um segundo e outro do dia,
unindo-os para a cotidiana travessia,
é aí que se vive o verdadeiro ano novo.

Em nossas mãos, enquanto avançamos,
ao invés de champanhe ou fogos,
a água, o pão e o sonho.  


                 


sábado, 23 de dezembro de 2017

pascalino

quando a mente  quer abarcar o infinito,
olha para cima, para baixo e para os lados,
e só vê abismos... 
             
então, arranco seus olhos vazios dos meus,
e tateando recolho-me ao corpo do coração,
que me recebe e aceita como sou de fato,
sem "razões" ou "por quês",
como ao ovo recebe o ninho com cuidado.






quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

artigo sobre Espinosa/Revista Trágica



http://www.tragica.org/lastedition/




(trecho do artigo)


1.Introdução: os afetos e a imaginação          
Quem não tem instrumentos de pensar,
inventa.
Manoel de Barros

Segundo Spinoza, são três os afetos originários: o desejo, a alegria e a tristeza.[1] Esses afetos estão na origem, todos os outros afetos derivam deles. Eles estão na origem não porque remetam ao passado, ao que passou, e sim em razão de que eles são a origem do que somos agora, enquanto duramos, com nossa mente envolvendo um corpo. Eles não se originam de nós, somos nós que nos originamos deles. Originar-se, aqui, não significa um ir para fora e separar-se, significa um estar envolvido, ao mesmo tempo que um envolver, pois não podemos existir a não ser envolvidos pelo viver. Desses três afetos se originam outros dois: o ódio e o amor.
Desejo, alegria e tristeza não são estados da alma, são o existir mesmo. A alegria é uma passagem [transitio] a uma perfeição maior, a tristeza é uma passagem a uma perfeição menor.[2] A perfeição é o existir mesmo, ela é o desejo. A perfeição não é um modelo a alcançar, da perfeição não há modelos. A perfeição não é algo externo a se desejar, senão a própria origem do desejo. O desejo é a existência mesma, existência esta que uma essência ou ideia envolve. Por aqui se vê que é impossível escrever sobre Spinoza sem que logo surja este verbo: o envolver.
A tristeza nunca vem do desejo mesmo, ela pode vir, e vem, de algo externo que envolve o desejo. Mas esse algo externo não deve ser visto apenas como a coisa que existe lá, no mundo objetivo. A tristeza é um afeto que acompanha o desejo, mesmo estando ausente o ser que a causou. A tristeza não se mantém pela presença do objeto, ela se mantém na diminuição do desejo, ela é a passagem a essa diminuição, e não o próprio estado. É por isso que é difícil apreender essa tristeza de que fala Spinoza, pois ela não é apenas um estado da alma, não é somente psicológica. Ela é uma passagem a uma perfeição menor. A perfeição só é sentida como menor quando conseguimos compreender a perfeição, a sua ideia adequada, para assim conhecer as variações dela mesma: para se saber se um grau de azul é mais intenso do que outro, ou menos intenso, é preciso, antes, formar uma ideia adequada do azul. Um grau de azul pode ser qualificado como mais ou menos azul em comparação com outros graus da mesma cor, mas primeiro é preciso existir o azul, que é plenamente ele mesmo sem precisar ser comparado com outra cor.
 Mesmo na tristeza há uma perfeição, uma existência, e é a partir da compreensão desta que a tristeza pode ser vencida. Aquele que está em uma perfeição menor, porém carece   da capacidade de fazer uma ideia adequada da perfeição, isto é, da existência e do desejo, pode imaginar que está em uma existência perfeita, desde que o circundem coisas, posses, propriedades, bens.[3] Ou seja, a perfeição será avaliada de acordo com coisas externas.
A alegria é a passagem a uma perfeição maior. Ela é a passagem a essa perfeição, e não a própria perfeição. A alegria e a tristeza são afetos nascidos no encontro do desejo com as coisas externas. Elas são, por isso, paixões: paixões alegres ou tristes. O amor, nesse nível, é a imaginação de que nossa alegria tem por causa algo externo. O ódio, ao contrário, é a imaginação de que nossa tristeza tem por causa algo externo. Quando sentimos alegria, esse afeto vem acompanhado, envolvido, pela ideia da existência do ser que nos causou tal afeto. O amor é a imaginação-desejo de que devemos nos unir a ele. A tristeza, por sua vez, é envolvida pela ideia-imagem do ser externo que imaginamos ser sua causa. Tanto a alegria quanto a tristeza, embora imaginações, podem levar-nos a ações, e não apenas imaginá-las. De tal modo que me esforçarei para fazer o bem a quem amo, e mal a quem sinto ódio. Esse agir não é bem um agir, ele é um reagir, pois minha ação será explicada por aquilo que imagino, e não pelo que compreendo. 



[1] Para o que se segue: Ética, Terceira Parte, “Definição dos afetos”. Empregaremos aqui a edição bilíngue, trad. Tomaz Tadeu, Editora Autêntica, 2013 (3ª edição).
[2] “Digo passagem porque a alegria não é a própria perfeição” (Spinoza, Ética, “Definição dos afetos”, nº 3: A tristeza, explicação). No original latino, o termo “transitio” não está em itálico, apenas na tradução.
[3] No Tratado da correção do intelecto, por exemplo, são a essas coisas que Spinoza identifica como motores da opinião e da mera imaginação. 

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

ter o que dizer...

Segundo o filósofo Kierkegaard, toda autêntica fala é sempre uma "comunicação indireta", na medida em que ela não deve ser apenas nosso ego a falar, pois  em nossa fala, se ela tem de fato algo a dizer,  deve estar a fala de outrem , a qual ouvimos ou lemos, com a qual aprendemos. Toda fala que possibilita outras falas suscita variações na apreensão singular de seu sentido. Por isso, tais falas nunca pedem ou vigiam para serem reproduzidas como se fossem textos imaculados. Mas não é essa outra fala   que deve falar na nossa fala, apagando-a; devemos ser nós mesmos a falar nossa fala, agenciados com a fala de outrem, da qual a nossa será uma expressão, uma variação, e não uma simples xérox. Somente assim, em comunicação indireta, temos realmente o que dizer, e não mera opinião. E aquele para o qual falamos ou escrevemos, leitor ou aluno,  pode também ir àquele a partir  do qual falamos, para assim ele mesmo construir sua fala, mesmo que divirja da nossa. Toda fala que diz algo autêntico nasceu de um ouvir ativo que aprendeu a ouvir a fala do outro, mesmo que não entenda tudo,seja esse outro um livro, um filme, um poema, uma criança, um louco, o cosmos... ou mesmo o silêncio.



domingo, 17 de dezembro de 2017

o nascimento do poema

Segundo a mitologia, assim nasceu a poesia: certa divindade que seguia um cortejo de Dioniso enamorou-se de uma ninfa, porém esta fugiu. O apaixonado a perseguiu, mas a ninfa escondeu-se num lago, metamorfoseando-se em cinco caniços de bambu, para assim não ser achada. Desistindo de procurá-la, aquele que a desejava sentiu que precisava pôr para fora  o que sentia. Então, ele pegou os cinco caniços e os amarrou unidos, sem saber que eles eram a metamorfose dela. Ele começou a soprar no interior dos caniços, e estranhamente sentiu que naquele sopro reencontrou o que parecia perdido . Assim nasceu a flauta. Pondo no sopro o afeto, falou cantando o que queria dizer à ninfa, e assim nasceu o primeiro poema. “Sopro” em grego é “pneuma”; em latim, “spiritus”, “espírito”. Poesia é o espírito cantando, não importa se canta a dor ou a alegria, o trágico ou o lírico.




sábado, 16 de dezembro de 2017

voar fora da asa

poesia é voar fora da asa.
Manoel de Barros

chegamos perto da metafísica. E voltamos.
Manoel de Barros


Quando vemos  os pássaros voando, sobretudo aqueles de grandes asas que planam  bem acima do chão, parece que  é fácil fazer o que fazem. Eles planam calmos, estoicamente sobre os acontecimentos. Parecem imóveis, não batem mais as asas, porém voam em espirais concentradas, pois aprenderam a se compor com o vento.
Desde pequenos, foi caindo do ninho que aprenderam o salto. Foi tombando que depois subiram. Mas o voar não nasce do tombo, pois o tombo nada mais é do que o efeito de um se alçar que ainda não é senhor de si, que descrê de si mesmo, que ainda não aprendeu-se, inventando-se livre, não obstante os riscos.
Não é fácil conquistar um meio, para assim mover-se nele, ampliando o poder de agir próprio. Sobretudo quando esse meio parece invisível, sendo  realidade que pés e mãos não tocam, apenas o pensar e o sentir o sabem deles próximo.

Assim é também o pensamento: é com o tombo empírico que aprendem a voar/pensar os metafísicos. Estes não têm a pressa ou o desespero dos que migram pragmaticamente , tampouco  voam em formação uniformemente objetiva  como os que buscam outras terras para serem os donos. 
Os que voam conquistando um meio infinito   se desterritoralizam  do chão conhecido e se reterritorializam no voo que inventam , e no qual perseveram.  Eles voam sobre o território físico conquistando o meio intangível sempre aberto. Por vezes, atravessam as nuvens e bebem o rascunho da chuva antes de ela ser fluxo, que amanhã , apenas amanhã, descerá à  terra, tornando-se mar e rio.