terça-feira, 20 de maio de 2025

A escolha de Ulisses

                                                      A ESCOLHA DE ULISSES[1]

 

Na Odisseia, de Homero, há um acontecimento considerado um dos principais da narrativa: quando Ulisses se encontra com a deusa Calipso[2]. Antes desse encontro, Ulisses passou por inúmeras aventuras perigosas e degradantes que quase o enlouqueceram e trouxeram o fim de sua vida. Até mesmo no Hades, o “Reino dos Mortos”, Ulisses foi parar:  embora Ulisses estivesse ainda vivo , no entanto ela parecia um morto, de tão acabado e derrotado que estava, por dentro e por fora.

Ao conseguir fugir do Hades, Ulisses vagou no mar como um náufrago, até alcançar, exausto, a ilha de Calipso.   Esse encontro de Ulisses com Calipso é, como já dissemos, um dos pontos decisivos da história, com temas que podem ser contextualizados para as questões que vivemos hoje. Aqui, porém, nos interessa um dilema ético pelo qual Ulisses passará, dilema esse que obrigará Ulisses a realizar um dos principais atos que caracteriza a ética: Ulisses terá que fazer uma escolha. Uma escolha é sempre feita diante de um campo de possibilidades. Quem faz algo obrigado, não escolhe. Mas toda escolha pressupõe a liberdade, e é por isso que a escolha pode pesar tanto, já que escolhendo uma possibilidade abandonamos inúmeras outras possibilidades que não escolhemos.

Esse tema da escolha é um dos principiais do existencialismo, e está presente nos livros de Simone de Beauvoir , Sartre e Camus, por exemplo. Para esses autores, nenhum de nós tem uma “essência” imutável: nós somos o que escolhemos ser. Mesmo quando achamos que não escolhemos, estamos escolhendo: escolhemos não escolher... Para esses autores, portanto,  não existe neutralidade. A pessoa ética é aquela que não só escolhe, como também assume a responsabilidade de suas escolhas. Ela não se esconde, não se ausenta e nem se resume a ficar culpando os outros por aquilo que lhe acontece. Para esses autores, o preço da liberdade é a angústia diante dessa verdade: somos nós que devemos escolher o que somos e seremos, e assumirmos essa escolha. Num primeiro momento, isso pode doer ( assim como pode doer passar da adolescência para a vida adulta) , mas é somente sendo responsáveis por nossas escolhas é que podemos ser livres, isto é, crescermos enquanto pessoas.

Voltando à narrativa. Após cuidar de Ulisses, e querendo retê-lo para todo o sempre, Calipso lhe fez uma proposta: conceder-lhe a imortalidade. Calipso disse: “ficando comigo aqui em minha ilha você se tornará imortal e divino,  dará adeus à dor, à frustação, à decepção, ao sofrimento, enfim, ficará liberto da morte, do tempo e da saudade”.

Ulisses , porém, recusou a oferta... Entre se tornar divino ou viver a condição humana, por mais contraditória e errante que seja essa condição, ele escolheu a humanidade, o que implicava retornar ao oceano e à sua viagem, perseverar no rumo, enfrentar os perigos, suplantar as tempestades  e sempre mirar o horizonte até nele surgir sua Ítaca, sua terra natal, na qual o esperava o motivo  de sua saudade: sua companheira Penélope.

No livro O que é a filosofia? , Deleuze & Guattari retomam essa narrativa e argumentam da seguinte forma:  “Penélope” representa para Ulisses o mesmo que o Afeto potencializador representa   para o pensador de não importa qual área[3]. Não somente as ideias nos servem de orientação, também são como “bússolas” os Afetos[4] que dão sentido a uma vida.  

Antes de reencontrar Ulisses, “Penélope” é assediada pelos “pretendentes” que a querem ilegitimamente: alguns a querem comprar, outros a ameaçam violentar e tê-la   à força. Mas Penélope não se põe à venda e resiste às ameaças dos comerciantes e usurpadores das Ideias.

Os “pretendentes” representam aqueles  que consideram que tudo pode ser obtido de forma fácil e sem esforço. Os pretendentes também simbolizam aqueles que acham que tudo tem um preço, sobretudo em dinheiro, incluindo as pessoas. Ou seja, os pretendentes têm a pretensão de obter coisas para as quais não se preparou, não se cultivou e nem se dedicou. Por isso, querem obter as coisas por meio da força ou da trapaça, passando por cima dos valores, das regras, enfim, das pessoas. 

 

 Ulisses derrota os pretendentes mediante uma prova que não é teórica, e sim feita mediante ações, isto é, uma prova ética.  Ulisses reapareceu em Ítaca disfarçado de velhinho. No seu próprio lar, ele viu os pretendentes assediando Penélope. Quando viram Ulisses-velhinho, os pretendentes riram de forma zombeteira, imaginando que aquele velhinho caquético era mais um pretendente...Então, Ulisses propôs uma “prova”: ganharia a mão de Penélope aquele que conseguisse dobrar o arco de Ulisses. Achando que a prova seria fácil, o arco foi passando pelas mãos de cada pretendente, mas sem que nenhum deles conseguisse dobrá-lo. Até que o arco chegou às mãos do velhinho, e todos os pretendentes debocharam novamente. Porém, para surpresa de todos, o velhinho conseguiu dobrar facilmente o arco. Ulisses então desfez o feitiço e se mostrou aos pretendentes, os enfrentando e derrotando.

A palavra “virtu”, da qual nasce “virtude”, designa originariamente a força que nasce da corda do arco quando é tensionada, para assim lançar a flecha longe. Virtu designa uma força potencial, portanto. De maneira análoga, as virtudes são forças, ou potencialidades, que dotam a alma da capacidade de “lançar longe suas ações”, como flechas. Diferente das provas teóricas que apenas mensuram a inteligência, as provas éticas são sempre concretas, acontecem em uma situação direta, e revelam se aquele que é posto à prova possui ou não a virtude que diz ter, se é ou não corajoso, se é ou não justo, se é ou não empático, se é ou não generoso, se é ou não amigo de verdade, enfim, se é autêntico no que diz e faz ou apenas um pretencioso que finge ser o que não é e quer as coisas sem perseverança e esforço. Enquanto as provas teóricas medem a inteligência individual de uma pessoa, as provas éticas aferem o comportamento de alguém em sociedade e na sua relação com os outros. 

Além dessa dimensão ética, Ulisses também vence os pretendentes por expressar, mais do que todos, um Afeto Potente por Penélope, Afeto esse que a Ideia também sente pelo Pensador de forma recíproca.

Enquanto estava no oceano e em perigo, esse Afeto foi, para Ulisses, sua bússola, seu leme, sua coragem...sendo também seu porto , sua terra natal e  o “fio”, como o de Ariadne , que o liga a Penélope.

Foi esse fio que o trouxe de volta ( Penélope também é tecelã-bordadeira...). Enquanto o livro Ilíada  fala da guerra e do desejo de Aquiles de morrer jovem em pleno campo de batalha, para assim conquistar a imortalidade, a Odisseia é o poema que narra a perseverança de Ulisses na sobrevivência. E sua escolha é o arquétipo de toda escolha ética[5].

É um desejo de vida que o move , um desejo de agenciamentos que potencializem  a vida. Vista dessa perspectiva, a “escolha” de Ulisses não foi bem uma escolha, ela foi , na verdade, a afirmação de uma necessidade[6] idêntica à liberdade que se fez  prática.

Penélope simboliza a alma que resiste ao assédio dos “pretendentes” que tentam comprá-la.  Recordar vem de “re-córdis”: “trazer ao coração”. Foi a recordação de Penélope, fazendo dela a força de sua coragem ( “coragem”: “força do coração”), foi essa recordação que levou Ulisses a escolher a humanidade e retornar à sua terra natal , para isso se lançando em nova viagem, desta vez não temendo as tempestades, pois Ulisses agora sabia aonde ir: de volta a si mesmo, ele que se perdeu de si.

A humanidade não é o “Homem”, a humanidade é um valor que somente existe se for criado por nossas escolhas éticas e políticas, pois escolher a humanidade também precisa ser uma escolha coletiva.

Apesar das tempestades, é sempre em direção à humanidade que precisamos ir. Ela é, ao mesmo tempo, a bússola, o leme, a viagem e o porto : a terra natal onde reside/resiste nossa Penélope-Psiquê.

 

 



[1] Texto elaborado pelo prof. Elton Luiz.

[2] Além disso, essa passagem da Odisseia é considerada a primeira a colocar questões éticas, influenciando depois os filósofos gregos que se debruçaram sobre o assunto, como Platão e Aristóteles.

[3] Como dizem Waldisa Rússio e Tereza Scheiner: “É preciso pensar o museu.” E pensar o museu é mais do que apenas ter habilidade em questões técnicas. Para pensar o museu são necessários ideias e afetos.

[4] No texto-aula “O que é um Afeto” explico um pouco mais sobre esse tema. De certo modo, o tema do Afeto liga a Ética à Estética. Vale a pena ler o artigo que já deixei no classroom e recomendei, cujo título é:  "Museologia, ética e estética".

[5] Sartre, por exemplo, faz da escolha a expressão de nossa liberdade.

[6] Essa identificação entre necessidade e liberdade está presente na Ética de Espinosa. 

 










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