Manoel de Barros ensina que poesia é “delírio ôntico”. A palavra
“delírio” tem por raiz “lira”. Originariamente, lira é o instrumento tocado
pelo poeta Orfeu. Ele não apenas tocava a lira, como também cantava.
Cantar é esculpir o sopro da voz, tornando escultor nosso
Pneuma. Quem canta, partilha seu Pneuma, seu sopro vital, não apenas com o
outro ser humano que o ouve, mas com todos os seres vivos, incluindo as
plantas . Quem canta com o Pneuma, pois nem todo canto
traz o Pneuma, também se liga ao cosmos inteiro.
“Lira” também era o nome dos sulcos paralelos feitos na terra para neles serem lançadas as
sementes, pois os sulcos lembram as paralelas cordas da lira. Assim, de-lirar é
: “lançar a semente fora da lira”. E semente que cai fora do sulco não germina.
Mas quando nasce no pensador-criador uma ideia-semente nova, ele precisa
criar também um novo sulco na terra, como uma nova sinapse que enriquece e
amplia o cérebro.
“Ôntico” vem da palavra grega “on”: “ser”. Dessa maneira, “delírio
ôntico” é criação poética de novos e diferentes
sentidos para o ser, incluindo o ser que desejamos ser.
O contrário do delírio ôntico é o delírio mórbido, delírio de poder,
caracterizado pela palavra lançada fora de todo sulco, palavra que cai no árido
deserto de ideias. Não é uma palavra que germina, é uma palavra morta de
sentido, como todas aquelas que saem da boca de um fascista, palavras a serviço
da destruição e morte.
Na obra Fedro, Platão dizia que a loucura é toda forma de comportamento
que rompe com o “acostumado”, diria Manoel de Barros, de um viver padronizado
instituído por um grupo.
Mas há duas formas de loucura, dizia Platão. A primeira delas é quando se
rompe com os padrões comportamentais de um determinado grupo, porém indo
acabar recluso em uma realidade
inferior, passando a se assemelhar mais aos
bichos do que aos seres humanos. Dessa
forma de loucura vêm os crimes, as desumanidades, as barbáreis...
E há a forma de loucura divina ( a palavra “divino” tem por sentido
originário “luz fulgurosa”, como a do relâmpago). Nessa forma de loucura, alça-se a uma realidade superior, realidade
essa somente alcançável em quem vê nascer em suas costas as asas de Eros, as
asas do Amor.
Essa loucura divina tem quatro níveis , cada um deles representado pelas
divindades Apolo, Dioniso, as Musas e o
par Afrodite-Eros.
Apolo expressa o que Manoel de Barros chama de “transver”: um ver que vai
além do meramente dado; Dioniso é a potência libertária de inventar caminhos,
linhas de fuga: “O andarilho abastece de pernas as distâncias”(Manoel de
Barros); as Musas são os aprendizados e saberes que vêm das artes; e o par
Afrodite-Eros expressa a semeadora, Afrodite, e a semente , Eros-Amor: semente que
liberta tudo aquilo onde germina e desabrocha ( em Lucrécio, por exemplo, Vênus-Afrodite é quem guarda e semeia as
sementes de tudo o que tem vida e brota).
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