No poema “Escova”, Manoel de Barros diz ter visto, quando criança, dois homens
sentados no chão "escovando
osso" . No início, diz o poeta, “achei que eles eram loucos” . Mas ele
olhou bem e viu que não podiam ser loucos aqueles homens. Louco , o mais perigoso, é quem quer impor aos outros o seu “mesmal” . O “mesmal” é a doença de quem
imagina que seu modo de viver é o único normal. Aqueles homens não podiam ser
loucos, pois pareciam ver a novidade onde todos veem o igual. No escovar deles também havia uma artesania semelhante à de Espinosa a polir
lentes com cuidado: eles queriam livrar
o osso da craca e poeira que nele grudaram .
O poeta descobriu então que aqueles homens eram arqueólogos. Eles
queriam ressuscitar no osso o mundo no qual ele foi parte de um esqueleto sob
músculo e pele. E mais do que isso: eles desejavam reviver o sentido que estava no osso , pois nada faz
sentido sozinho: o osso foi parte
de um esqueleto que era parte de um ser vivente, igualmente parte singular de um mundo que
ainda vivia , como sentido a descobrir, no osso. E os próprios arqueólogos eram
partes de um conhecer explorador que ressignificava o sentido daquele osso
metamorfoseando-o em signo de um mundo. Sem esse ressignificar explorador o conhecimento se torna apenas adestramento para os significados que o poder
nos quer impor. Para eles o osso era
mais do que osso: era também o fragmento de uma história , a nossa história, que a vida
ainda está a escrever, com ideias e corpos. Enquanto viver em nós aquele
impulso inventor de mundos , não seremos
o epílogo de tal história: a faremos perseverar como a
mais necessária lição que devemos ensinar
às crianças, para que a vida pensante
não se extinga. Ao ver os arqueólogos , o poeta
compreendeu qual seria seu destino: escovar as palavras, retirar delas a idiotia,
a ignorância, o preconceito, o clichê e
as banalidades que nelas colocaram as mentes obtusas, de tal maneira que seria também uma “ecologia
mental” o que o poeta faria ao escovar
das palavras tais sujeiras e craca. Ao escovar as palavras, o poeta não acha “Verdades” , “Ordens” ou “Mandamentos”; ele
acha a poesia como sentido primeiro, não
conformista, das coisas : “A poesia está guardada nas palavras, é tudo o que sei”
(Manoel de Barros).
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