domingo, 9 de julho de 2017

rascunho de voo

Poesia é voar fora da asa.
Manoel de Barros

Quando estão dentro d’água e olham para fora, os peixes não sabem que o mundo de fora é infinitamente maior que o mundo deles. Eles veem o mundo de fora através do limite do mundo no qual  vivem.
Porém, esse limite não é neutro ou transparente: a lâmina d’água altera o que está fora, mas os peixes não sabem disso, e vivem mais a imaginar que veem do que de fato a ver sem imaginar. A maioria dos peixes tem medo e se afasta de tal limite, embora  os acompanhe, sem que eles saibam, a limitada imaginação.
Alguns peixes com pretensão de dominar os outros peixes, e temendo que tal curiosidade pelo que está fora abale a ordem do cardume, contam histórias acerca do que seria tal mundo de fora, e lá põem, sofrendo eternos castigos, os que morreram não tendo sido obedientes às leis e costumes do cardume ( "todo peixe bom", dizem eles, obedece à norma do cardume, desde tempos imemoriais) . Tudo o que esses peixes-governantes contam é inventado, porém torna-se verdadeiro pela ignorância que se ignora.
Mas há aqueles peixes aos quais  cardumes não aprisionam. Eles são estranhos, é verdade: suas nadadeiras são um pouco maiores do que a de todos. Os peixes de nadadeira "normal" dizem que tal diferença é um castigo.
Porém, às vezes alguns desses estranhos tomam impulso com a energia que desviaram da adaptação àquela vida em cardume.E vão ao perigo com a maior força que podem:avançam até o limite daquele mundo do cardume e , sem medo, atravessam  a fronteira  daquele mundo conhecido:  saltam para fora d'água, desterritorializam-se ...
E as nadadeiras inábeis ao nadar homogêneo, ali se mostram em sua autêntica arte: a de serem o instrumento de potencialização da exploração de um novo meio, voando. Elas se tornam asas em rascunho, inauguramento de voo.






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