( Neste livro há um capítulo escrito por mim dedicado ao poeta)
Trecho:
Manoel de Barros: um sabiá com trevas
O
não-filosófico está talvez mais no coração da filosofia que a própria
filosofia,
e significa que a filosofia não pode
contentar-se
em ser
compreendida somente de maneira filosófica ou conceitual.
Mais
importante do que o pensamento é o que “dá a pensar”;
mais
importante do que o filósofo é o poeta.
Gilles
Deleuze
1. Introdução: não se pode passar
régua em Manoel
No
dia 6 de setembro de 2016 o Centro de Artes Uff prestou uma bela e mais do que
merecida homenagem ao centenário de Manoel de Barros. O evento fez parte do
Festival Nacional de Cultura Popular – Interculturalidades, organizado pela
Uff. Fiquei honrado e feliz por ter sido convidado a participar da homenagem, juntamente
com Douglas Queiroz Marçal (assessor de Cultura e de Comunicação da Fundação
Manoel de Barros), Luiz Henrique Barbosa (pesquisador da obra do poeta), Mário Chagas (poeta), Gabraz Sanna (diretor do filme
“Língua de Brincar”) e ainda o neto do poeta, Thiago Barros.
A
mesa que nos reuniu teve por título um verso do Manoel: “Na ponta do meu lápis
há apenas nascimento”[2]. Quanta beleza e
generosidade nessa frase! Não por acaso, “generoso”, “gerar” e “gente” procedem
de uma mesma raiz: “gen”, que significa exatamente “nascer”. O poeta-generoso faz
nascer ideias, afetos, percepções, comportamentos, empoemamentos...lá mesmo onde
tudo parecia entregue, “acostumado”[3]. Esse “fazer nascimento” é
uma forma de resistência que irradia de seus poemas e vem se alojar naquilo que
em nós “pede um pouco de possível, para não sufocar”, como dizia Foucault. Há
uma inocência nesse resistir, pois se resiste brincativamente[4]. Creio ser esse fazer
nascimento a essência do que em Manoel é uma original “empoética” , como
prática lúdica, ética, política e clínica de empoemar-se (sobre a qual falaremos
mais adiante[5]).
Como
definir Manoel de Barros? Essa pergunta suscita outra: por que querer
defini-lo? Manoel de Barros é definível? Creio que a dificuldade de se
classificar Manoel, pôr nele uma etiqueta, deve-se ao fato de que sua poesia,
como poucas, pouquíssimas, é uma aproximação com as fontes[6].
O próprio Manoel é grato às suas fontes. A fonte é a origem que renova[7]. Ser grato às fontes é devir fonte. A fonte também é uma visão,
uma visão fontana[8].
A visão fontana faz nascimento no ato de ver, pois “é pelo olho que o homem
floresce”.[9] O mundo que os olhos da
lagarta veem não é o mesmo que verão os olhos da borboleta: os mundos mudarão
porque mudarão, antes, os olhos, diferentes olhos terão florescido.
Há
estudos feitos no âmbito da teoria literária que tentam esquadrinhar a obra do
poeta, buscando afinidades e filiações, simpatias e pertencimentos. Há razão
nesses estudos, não há o que questionar. Porém, basta ler o poeta para perceber
que nele há um estilo ainda não catalogado, ainda não visto, como passarinho
cuja espécie carece ainda de nome. Há em Manoel uma verdez[10],
uma não velhez : a “velhez
não tem embrião”[11]. Para
saber e experimentar essa não velhez basta
lê-lo...Porém, há ainda aqueles que dizem ser Manoel uma fórmula, que há uma
fórmula-Manoel , como se o poeta se repetisse. Reduzem sua poética a algumas
ideias-imagens que se repetem. Com isso, parecem querer não achar motivo ou
razão para perdurar, e renovar, tanto encantamento que muitos encontram em Manoel,
sejam eruditos ou não, letrados ou gente simples, jovens, crianças ou idosos.
Contudo,
já li não sei quantas vezes um mesmo poema do Manoel. Cada vez que o leio se
produz em mim um empoemamento completamente diferente do empoemamento que
tivera ao lê-lo anteriormente. É sobre este verbo que é preciso ter a atenção:
o empoemar. A obra de Manoel é uma empoética. Não se lê Manoel sem empoemar-se.
Mas o que significa empoemar-se? É possível definir esse afeto-metamorfose? O
mesmo acontece quando se pergunta acerca do que significa o tempo, o infinito,
o desejo, o inconsciente, o absoluto, o sentido... Pode-se dar uma resposta que encerre o
problema? Ou ainda: o que significa pensar? Quem se satisfaz com uma resposta
que de-fina, dá fim, a essas questões?
Manoel
traz uma questão ainda mais nova, que talvez sempre permaneça como a prova de
que em seus versos há um “embrião”, desde que em nós também se ache uma verdez.
A novidade manoelina não diz respeito à diferença sempre debatida entre a
poesia e o poético, mas entre o poético e o empoético.
[3] “Não use o traço acostumado”,
verso do poema “As lições de R.Q.”, Livro
sobre nada.
[4] “Nossa linguagem não tinha função
explicativa, mas só brincativa”, versos do livro/poema Escritos em verbal de ave.
[5] Para saber mais sobre essa “empoética”,
remetemos ao estudo que fizemos: Manoel
de Barros : a poética do deslimite .
[7] “Aprendimentos”, Memórias inventadas. - as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo:
Planeta, 2010.
[8] “Canção do ver”, Poemas rupestres, p. 11.
[9] “A volta (voz interior)”,Livro de pré-coisas, p. 68.
[10] “Resta
sempre uma verdez primal em cada palavra”, verso do poema “Pedras
aprendem silêncio nele”, Gramática
expositiva do chão – poesia quase toda, p. 342.
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