sábado, 10 de dezembro de 2016

o sabiá com trevas


(trecho de livro a sair )


Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Manoel de Barros

No livro Arranjos para assobio, Manoel de Barros define a si mesmo, e aos poetas feito ele, como um sabiá com trevas. Um "sabiá de terreiro", diz ele, que aprendeu a ciscar a terra. Ele canta, ele voa, mas também sabe, com perseverança espinosista, ciscar a terra. Isso faz do poeta um artesão, um experimentador,  um metafísico - sem deixar de ser poeta.
      O sabiá com trevas é um empírico-delirante, um ser atual repleto de virtualidade, um hoje cheio de amanhãs: singular palavra que expressa  infinitos sentidos. 
      O sabiá-poeta é um corpo terreno, corpo de terreiro,  unido a um espírito celestante, cujo canto a vida celebra. Por intermédio do poeta,  o celeste se torna corpo, enquanto o terreno devém chão para o espírito nômade, andaleço.
O sabiá-poeta cisca na terra seu alimento, sobretudo onde há raízes. Grãos de sol é o que ele come - e se ilumina por dentro.  O sabiá-poeta também se desterritorializa: voa fora da asa. Quando retorna e pousa, seja na terra ou na linguagem, seu canto é o meio de reterritorialização em um território novo, como inauguramentos - de vida e de linguagem.
O terreiro não é só um meio físico, extenso. Ele é ,sobretudo,um meio expressivo: chão  da expressão , matéria de poesia . O terreiro do poeta é uma casa estendida, sem paredes ou teto, com portas de entrada que dão para fora, vez que  suas janelas coincidem com uma visão fontana que amplia o horizonte, celestando-nos.
O poeta é um sabiá com trevas. Ele não maldiz as trevas, tampouco as demoniza. Pelo canto o poeta  inventa um mundo, um cosmos, porém a treva ainda lhe acompanha, como ao recém nascido a placenta. O poeta é um caosmos : síntese de caos e cosmos, uma absurdidez . Sua lucidez  é olho divinatório umbilicado  a um inconsciente cósmico.
Somente sendo sabiá com trevas  o poeta  “vê semente germinar e engole céu”, pois “Ninguém é pai de um poema sem morrer”. Sendo o pai, ele morre, para devir  filho do poema que o inventa outro, “Ninguém”.
Sabiá com trevas, o poeta  traz o seu caos, as trevas,  feito uma  morte que seu canto venceu. Por isso,essa treva não é como a de um túmulo ou caverna, mais parece a treva de um útero , seja o de uma fêmea ou o de um monturo, pois começa na treva todo germinar: de gente, de planta, de bicho, de poema. O poeta é a aurora da noite que ele também é.
    A proximidade junto ao caos-trevas não é tão somente física, ela é também mental. Essa proximidade é um "crivo", uma "distância minimamente próxima do caos", como diz Deleuze. O crivo  não é a luz apolínia do  dia já adulto, o crivo é o momento onde a luz pode mais, embora disso não se gabe, faz: tornando-se a claridade ainda em embrião de uma luz-criança ,como a verdez da alvorada de um dia novo. A proximidade-crivo  é  “antesmente verbal”, embora seja dela que nasce o poético sentido, como  “iluminura”.
O poeta nos diz que sua poesia não nasce de inspirações românticas ou de engenharia com letras. Sua poesia surge de iluminuras. A iluminura é uma canção, mas uma canção do ver. O velho Aristóteles já dizia em sua Poética que música e poesia são artes irmãs: elas são irmanadas pelo ritmo. Os ritmos do poeta-sabiá são ritmos de uma canção que se vê, de uma paisagem que se ouve. A luz da iluminura não é apenas para os olhos; ela também o é para os ouvidos, para o tato, para o olfato , para o gosto - sobretudo para este.
     A iluminura é  a síntese disjuntiva Apolo-Dioniso: a iluminura não é totalmente luz, nem totalmente coisa escura. Iluminura é canto de sabiá, é canto de Orfeu a vencer a treva de todos os  Hades, os de fora e os de dentro, os do passado e os do presente, estes tristemente entrevados. Pois sem o canto do poeta, a treva é apenas treva mesmo: caos sem cosmos - cegueira de horizonte e surdez de canto.
É por isso que poesia talvez seja fazer outro mundo.Não desejar ir para outro mundo , aqui ou alhures;  mas fazer outro, aqui e agora, e sermos outros naquilo que inventamos. O sabiá-poeta é  o outro , a diferença e o  crivo das trevas.


                                                (flautista Antônio Rocha)







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