Por mais longe que a razão nos leve,
leva-nos mais longe o coração.
Goethe
Poeta é ser que vê semente germinar.
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A criança, o andarilho e o passarinho têm o dom de ser poesia.
Manoel de Barros
Não se descobre nenhuma verdade,
não se aprende nada,
se não por decifração e interpretação.
Gilles Deleuze
Não se descobre nenhuma verdade,
não se aprende nada,
se não por decifração e interpretação.
Gilles Deleuze
Na Grécia antiga, quando duas pessoas por algum motivo eram obrigadas a se separar, e desejando manter o elo, a aliança, elas pegavam então um pedaço de madeira, um galho de oliveira, e o fendiam em duas partes. Cada um ficava com uma parte: esta era guardada como testemunho daquela aliança. Mesmo transcorridos anos, o pedaço de madeira era mantido e preservado. Ele se transformava em posse coletiva, passando a pertencer então a um grupo, a uma comunidade. Se alguém de determinada comunidade desejasse saber se havia alguma aliança entre ele e uma diferente pessoa de outra comunidade, cada um mostrava o pedaço de madeira que portava. Havendo a composição de tais partes, novamente era celebrado o encontro, a amizade, a aliança, que assim vencia o tempo e o espaço, além de possibilitar um futuro.
Esse encontro ou composição das partes era chamado de “symbolos”. “Sym” significa “união”; e “bolos” é, em grego, “partes”. Símbolo: união ou composição das partes. Simbólico é tudo aquilo cujo sentido somente nasce em um encontro, pois o simbólico nunca existe como algo em si, como um fim em si. O simbólico celebra encontros, afirma composições. O simbólico é fruto de uma prática, mais do que de uma teoria: ele une prática à teoria, ideia à ação.Ele é o agente de relações: sua identidade é agenciar diferenças. O simbólico é de natureza social, embora ele pressuponha relações entre os indivíduos.
Mais do que ser a representante ou a representação de um referente, toda palavra é uma parte que somente se completa quando se lhe une uma alma que a lê ou escuta. Sozinha, a alma também é uma parte incompleta: a outra parte é o sentido que a amplia, sentido este que ela mesma inventa, pondo-o na palavra, na tinta, no som.Dessa maneira, a alma inventa a si própria, encontrando-se naquilo que ela cria.
A linguagem é simbólica porque, antes de tudo, ela une o homem ao homem, e depois une o homem ao cosmos. O rio, a planta, a semente, o céu, o vento, o horizonte, o passarinho, o andarilho, a criança...também podem ser símbolos ou partes que completam o homem, e é isso que nos ensina poeticamente Manoel de Barros, desde que o homem se veja e se compreenda como parte que completa o rio, o horizonte, a semente, a criança...isto é, desde que ele se veja formando um todo com esses seres, um todo poético, de tal modo que ele aprenda a se compor com o universo, o de fora e o de dentro dele mesmo. Nesse sentido da palavra, simbólico não se confunde ou se reduz ao mero “metafórico” por oposição ao conceitual, pois mesmo os conceitos possuem uma natureza simbólica, na medida em que eles são elos que nos agenciam com o conhecimento enquanto prática humana, social.
Tudo pode ser simbólico, desde que o vejamos como uma porta, uma janela, uma passagem, um elo, um agente, e não como coisa em si, fechada nela mesma (como se possuísse uma identidade fixa, imutável, imaculada).Em uma exposição, por exemplo, os objetos não valem apenas pela sua natureza tangível, material, mensurável: eles também são símbolos. Enquanto tal, eles comunicam. Comunicar é tornar comum um sentido que não pertence exclusivamente àquele que produz a exposição ou àquele que a visita, já que o sentido nasce do elo entre essas partes em relação. Por ser símbolo, um símbolo cultural, um objeto exposto também existe para despertar, e unir, o conhecer e o sentir, para assim potencializar nosso agir sobre o mundo.
“Dia-bólico” significa: a parte separada do todo, a parte dividida. O diabólico é o que nos separa, isola, divide. O diabólico é a ausência de composição, de elo. O diabólico faz cada coisa existir isolada, imaginando-se um todo à parte .O diabólico destrói as pontes, cerra as janelas, interdita as portas, apaga as sendas, fecha os olhos, obstrui o coração.
No mito, foi algo diabólico que ,com violência, reduziu o poeta Orfeu a pedaços; mas foi a sua reconstrução simbólica , realizada por seu filho Museu, poeta como o pai, que o tornou vivo novamente, como objeto de conhecimento e afeto. Dioniso foi diabolicamente despedaçado pelas Fúrias. Contudo, Zeus recriou Dioniso fazendo-o renascer de uma parte que é sempre símbolo de vida: o coração.
O simbólico nasce quando as partes são compostas: cada uma se aumenta na outra em razão de um todo que as amplia. O diabólico , por sua vez, não é a divisão da madeira em duas partes, mas a imaginação de cada parte de que nunca foi antes uma madeira comum com outra parte, com outra diferença. Assim, diabólico é cada parte se considerar o próprio todo, e obrigar a outra parte a se submeter a essa verdade. Estabelece-se então uma guerra por domínio, por reconhecimento, por poder.
Em uma visão diabólica do mundo (que também pode ser uma visão cientificista, objetivista, "técnica", enfim) o rio não é mais então símbolo ou elo ( como parte de um parque natural, por exemplo), ele é apenas rio, coisa, objeto. Assim também já não são mais símbolos, símbolos poéticos, o horizonte, o passarinho, a folha, o bicho, o chão e o céu...pois já não é mais para si o homem um símbolo. Diabólicos se tornam então seu conhecimento, seus instrumentos e até mesmo sua razão.
Referências:
DAVALLON, Jean. L’exposition à l’ouvre: stratégies de comunication et médiation symbolique. Paris:L’Harmattan,1999.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Editora NAU, 2002.
SOUZA, Eudoro de. Mitologia. Brasília: Editora Universidade de Brasília, S/D.
SOUZA, Elton Luiz Leite de. Manoel de Barros: a poética do deslimite. Rio de Janeiro: 7letras/FAPERJ, 2010.
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