Quem canta
ora duas vezes.
Santo Agostinho
Schiller
Descanse tranquilo onde cantam.
Os maus não cantam. Schiller
De
repente, o namorado a olha. Ele fica vidrado, parece contemplar uma obra de
arte perfeita. Não era um quadro, uma peça, um filme ou uma ópera o que ele via.
Era mais do que isso, e parece ser a isto que aquelas artes buscam imitar. Era
a vida. Não a vida teorizada ou romantizada. Era a vida, uma vida não apenas
física, não apenas espiritual, mas a união dessas coisas, bem ali, aqui, e não
acolá ou além. Ela se volta e vê o amado
a vê-la. Ela se assusta com a expressão que vê, e pergunta: “-O que foi!?”. Ele quase salta da cama e lhe roga:
-Repete o que você estava fazendo, faz de novo!
-
Mas o que eu estava fazendo? Não estava fazendo nada....
-
Você estava se penteando, se olhando, cantarolando...
-
Ah...era isso? Nem notei....Era assim?
A
mulher tenta repetir o que fizera. Porém , agora eram apenas um arremedo os gestos,
uma cópia somente: a cópia de um modelo que se perdeu, junto com aquele tempo idêntico à canção. O
homem se limita a dizer que não era assim que ela estava fazendo, que era
diferente....Por mais que ela tentasse, o que foi não volta....
Ela
não conseguia reproduzir de forma calculada, encenada, prevista, o que acontecera
de maneira espontânea, não posada. Contudo, não estava no passado o que se
perdera. Estava ali naquele presente, em todo presente que passa. Era uma relação
com o presente que presentemente se pensava. A ilusão está em achar que o
presente que se vive de tal forma espontânea é aquele que passou e foi se
esconder na memória. E que se evocarmos bem esse fantasma, teremos de novo a
carne, o osso e o espírito do que foi vivo. Contudo, o que o homem vivera não
foi o que se pode evocar como lembrança. O que ele quer é reencontrar aquele
presente que parecia não passar, e que está mais na percepção, essa janela do
espírito, do que na memória, que é seu porão.
Ela
vivera o que se pode chamar de graça. A
graça é o que se recebe sem fazer pedidos e imploramentos. A graça vem quando
menos se espera, e vem de graça, sem preço; de tal forma que recebê-la não
constitui empréstimo, tampouco dívida. Porém, não se recebe a graça sem
achar-se em gratidão. Quem mais é grato mais graça acha nas coisas que o
mercado diz serem inúteis e não valerem nada. Nunca a
graça vem quando estamos no palácio ou no pódio. Na verdade, a graça nunca vem,
ela sempre está: ela é essa experiência espontânea, inocente, de não mais
julgar, medir, contar, objetificar, criticar. A graça é “fazer o nada aparecer”,
diz Manoel de Barros. Não o nada de coisa alguma, mas o nada que não é nenhuma
coisa, que não é coisa.
Quem
vive a graça sabe que a vive, embora não possa conhecê-la enquanto a vive. Pois conhecer é fazer de um acontecimento
um objeto, é sair do acontecimento enquanto
todo indiviso. E quem vê a graça não sabe como agir sobre ela, pois lhe falta a
memória daquilo, falta-lhe o conceito, embora não lhe falte o ser. De algo novo
não se tem a memória. Na memória está o já visto e vivido, o já experimentado.
A graça é a novidade que se dá sem avisar, celestando
o ínfimo.
A
graça é a própria vida que acontece em nós a despeito de nós não a vermos.
Afastar-se da graça constitui a desgraça. Esta não é exatamente o infortúnio do
fato trágico, tampouco a desgraça mais danosa é a perda da saúde ou das posses. A
pior das desgraças é uma vida mecânica, pragmática, uma vida que se afastou de
si própria, e que só vê graça em piadas ou no mero cômico a zombar dos
outros.
Conquistar essa graça espontânea requer o abandono de toda ideia de conquista; alcançar essa graça pede que se ceguem os olhos e se cale a boca para tudo aquilo que se via e se falava como certeza e plano de vida. Quem se acha na graça se encontra, e sempre cantarola uma canção, por mais simples que ela seja. Não precisa cantar a canção inteira, basta apenas o refrão.
Conquistar essa graça espontânea requer o abandono de toda ideia de conquista; alcançar essa graça pede que se ceguem os olhos e se cale a boca para tudo aquilo que se via e se falava como certeza e plano de vida. Quem se acha na graça se encontra, e sempre cantarola uma canção, por mais simples que ela seja. Não precisa cantar a canção inteira, basta apenas o refrão.
(mitologia: As três Graças) |
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