A paixão sem a razão é cega;
a razão sem a paixão é inativa.
(...)
É aos escravos, e não aos homens livres,
que se dá um prêmio para os recompensar
por se terem comportado bem.
Espinosa
O poder instituinte é “originário” não porque esteja no passado distante. Na verdade, ele não está no passado histórico ou existe enquanto promessa de um futuro igualmente histórico. O poder instituinte cria história, desfaz outras, em razão de um tempo que é o das rupturas inovadoras. Ele é originário em razão de cada um ser parte dele, porém não enquanto cada um é professor, aluno, filiado a partidos ou sindicatos, igrejas ou associações. Ele é originário porque antecede a todas essas determinações sociais instituídas. E se alguém é, o tempo todo, apenas o que instituíram que ele deveria ser, jamais este compreenderá ou fará parte do poder instituinte originário, ou compreenderá a sua força produtora. O poder instituinte originário torna a todos artistas, mais do que teóricos ou juristas. Ninguém é, por natureza, médico, policial, deputado, presidente, etc. Tais designações são instituídas socialmente. É o poder instituinte que institui a sociedade onde passarão a existir designações e práticas instituídas. Tudo é instituído, menos o poder instituinte. Tudo é produzido, e assim afirma o poder instituinte do qual nasce.Nenhum outro poder antecede o poder instituinte originário, assim como nenhuma vida pode anteceder a vida , a não ser sendo mais viva. Manoel de Barros diz que tudo o que vem primeiro “tem primazia”. O poder instituinte originário é o poder da primazia, e não dos privilégios.
Para a maioria dos pensadores políticos modernos que inspiraram tanto liberais quanto socialistas , o poder político nasce com a renúncia ao direito natural. Mas em Espinosa o direito natural é irrenunciável: ele é o direito que precede o chamado direito do Estado , suas leis e sistemas de representação. O povo que renuncia ao poder de instituir torna-se servo consentido da potesta que o enfraquece e entristece.
O direito natural , em Espinosa, tem outro nome: ética. “Direito natural” não significa a existência meramente biológica ou material. À época em que Espinosa escreveu e viveu, “natureza” era entendida como sinônimo de essência. E a essência de algo é o princípio que a faz ser, existir, agir. Assim compreendida, a natureza implica o corpo e a mente. Outra distinção importante feita por Espinosa é aquela que envolve duas noções: potentia e potesta. Esta última palavra pode ser traduzida por “poder”. Contudo, perde-se completamente o sentido da obra política de Espinosa quando também se traduz potentia por poder.Em latim, potentia também tem por sinônimo jus, ao passo que lei é a tradução de lex. O direito natural não é lei que obriga isto ou aquilo. O direito natural também não é direito à alguma coisa. O direito natural é a própria existência que, por existir, já é direito a si mesma. Ninguém existe por obrigação, mas por uma espécie de necessidade que não se opõe à liberdade. É a lei instituída pelos homens que determina o que é justo ou injusto. Existir, porém , não pode ser algo justo. Se o fosse, haveria a possibilidade de um existir injusto. O existir é. Ele não é justo ou injusto, embora isso não signifique que existir seja indiferente ao justo e ao injusto que as leis determinam. Pois o injusto é o que diminui o direito natural, ou existência, de cada um ; o injusto é o que ameaça a potência de cada um.
A ética não pertence ao campo dos valores dicotômicos, como bem e mal, justo e injusto, lícito e ilícito. A ética é o campo da existência. Uma existência não é justa ou injusta, ela é potente ou impotente. Ser impotente significa: ser menos do que se pode ser.
Segundo Espinosa, o homem deseja mais mandar do que obedecer. Por exemplo, a criança cresce querendo mandar, e somente o aprendizado, e não o mero castigo, a ensina a obedecer. Mas ela não é má por querer mandar , tampouco há mais virtude em obedecer do que em mandar. O viciado obedece ao vício, preterindo o mandar em si.O falastrão obedece sua língua, mas quem sabe guardar silêncio manda em sua boca. O homem livre não é aquele que manda nos outros, o homem livre é , antes, aquele que manda em si mesmo, que comanda a si mesmo, que tem plena posse de si. Mandar é exercer, agir; obedecer é ser passivo. Todos os homens aspiram a tal poder de comandar, embora confundam como conquistá-lo e exercê-lo, pois imaginam que o poder sobre si virá mediante o poder sobre os outros.
O que vale para um homem vale igualmente para um partido: um partido que não comanda a si mesmo quererá poder para mandar nos outros, subjugando-os. E estes outros partidos também acharão que ter poder é mandar nos outros através do Estado conquistado. Em Espinosa, a lei é um comando, nunca um comandado. Ela é um comando porque expressa um poder originário que a instituiu para ser expressão dele. Se a lei for apenas comando de alguns, destes ela será uma comandada: ela perderá sua atividade e será, ela própria, um padecer de um poder que se colocará acima dela. Além disso, ela será vista apenas como ordem por aqueles que não a comandam. Contudo, se tal acontece, o problema não está na lei em si, mas naqueles que aceitam , sem resistência, serem comandados, submetidos àquilo que os enfraquece.
Espinosa acredita que o poder social nasceu para que os homens mandem em si mesmos sem que esse mando seja opressão ou repressão de uns poucos sobre muitos ou de muitos sobre poucos. Assim, o único poder que possibilita aos homens mandarem em si mesmos, sem que apenas alguns mandem e outros obedeçam, esse único poder é o da lei, da lex. Somente através da lei os homens mandam em si mesmos e , mandando, são livres, de tal maneira que desobedecer a lei é desobedecer a si mesmo através de uma burla feita a todos. Mas a lei, em Espinosa, não é todo o direito, ela é apenas instrumento do Direito, pois o único direito é o natural.
A vida social nasce quando delegamos ao Estado o poder de agir por nós. Mas apenas certas coisas podem ser delegadas, outras são indelegáveis. Nós delegamos ao Estado o poder de agir acerca de tudo aquilo que envolve a sobrevivência do corpo. Todavia, é indelegável o que concerne à existência do espírito, embora as duas existências, a do corpo e a do espírito, estejam interligadas. Delegar não é renunciar.
As pessoas que recebem nosso poder de agir têm, por isso mesmo, o poder social. Contudo, elas também existem e , por existirem, não renunciam ao direito natural, à potência. Mas quando tais pessoas se valem do poder que receberam e, burlando as regras, tiram o máximo proveito para si mesmas, tais pessoas se colocam em uma obscura região que já não é mais a do direito natural, mas que ainda não é o social. Essa região obscura, nem jus e nem lex, é o estado de natureza: este não é natural (potência) ou social ( potesta), ele é pré-social. Nele imperam as paixões tristes.Ele é um querer mandar na própria lei, ou um querer dobrá-la usando a força, seja a força física ou a força da moeda corrompedora.
Por natureza, a criança quer mandar, e nisto não há mal, pois não há mal na natureza. Educada, ela aprende a obedecer a lei , compreendendo esta última como comando dela mesma, de sua natureza. Mas o que caracteriza o estado de natureza é que, nele, um indivíduo sozinho , ou um grupo de indivíduos, imagina que pode desfazer o poder da lei sem evocar a potência da ética. Somente o povo pode, afirmando a si mesmo, desfazer o comando da lei, quando esta já não é mais o seu próprio comado democrático, plural. Quando um ou alguns querem fugir da lei, tal ação configura crime. Mas quando o povo desfaz a lex em nome do seu direito, tal ato é uma afirmação da liberdade. Por esse motivo, a causa da corrupção e outras mazelas não é a natureza, tampouco a sociedade . A causa dessas tristezas e ódios é o furtar-se à natureza , bem como o querer comandar sem ser por intermédio das regras . O direito natural é o campo da potência, a esfera social é o lugar das regras, já o pré-social é a obscura zona da qual alguns se servem para negar ética e regras, jus e lex.Mas quanto mais alguém deseja esconder-se nessa zona, mas este “esconder-se” aparece.
Assim como o direito natural é insuprimível, a não ser destruindo a vida de alguém ou cometendo o genocídio de um povo, também não se pode instituir um campo social imune à possibilidade de alguns viverem no estado de natureza. E é para isso que existe a lex: para a defesa da pluralidade democrática. Ditaduras e fascismos criam apenas indivíduos dóceis ou dissimulados, pois toda ditadura e fascismo crê que o homem é um ser cuja natureza é má. Caberia a um Estado forte corrigir a natureza torta do homem, e extirpar os “incorrigíveis”.
Para Espinosa, a natureza humana não é torta ou reta: ela é. Além disso, a questão fundamental não é defender os contratos, mas sim garantir que eles possam ser suspensos, caso o direito natural de todos corra risco. O direito natural corre risco quando um grupo pretende destruir o instituído pondo-se no lugar da pluralidade instituinte.Apenas um indivíduo, ou um grupo de indivíduos, não têm poder para suspender o instituído pela multiplicidade instituinte. Somente a potência instituinte tem esse poder. Por outro lado, não é por um contrato que a sociedade nasce, ela nasce por uma delegação de um comando, e não pela obrigação de obedecer a contratos.
Os contratos jurídicos são precedidos por um contrato social, assim professam os filósofos políticos clássicos. Ora, todo contrato envolve, no mínimo, duas partes, separando-as. Espinosa recusa esse modelo contratualista como fundador do liame social. Pois se a sociedade nascesse de um contrato, de um lado se encontraria o povo enquanto multiplicidade heterogênea, e do outro estaria o Estado (o "Um"). Mas como poderia haver contrato entre o povo e aquilo que nasce por delegação dele? Não pode o mais potente se submeter ao menos potente. Mais potente, em Espinosa, é quem é mais direito.
Um partido, um juiz, um presidente, um deputado, etc. recebem um poder que somente pode existir em razão da potência ou direito natural do povo ( embora a palavra "povo" não traduza muito bem a multiplicidade instituinte que constitui a multitudo). Quando o direito instituído perde sua relação com o direito natural ( que é, inclusive, o único direito de fato ), Espinosa afirma que é preciso, nesse caso, fazer retornar o poder àqueles que , ontologicamente, o possuem : o povo. O povo não é uma classe, o povo é uma multiplicidade heterogênea. Aqueles que mais ambicionam existir como um todo à parte, seja sob a capa de um partido ou de uma instituição do Estado, estes sempre temem a multiplicidade, e contra ela sempre acham justificativas para evitar que o poder volte à potência que o gerou.
Em certas situações onde dois ou mais grupos querem existir à parte, pondo em risco o existir plural de todos, nessas situações, preconiza Espinosa, é preciso desfazer a potesta instituída. Porém não a serviço de um grupo ou outro, mas a serviço do povo, para que novamente se ordene, planeje, proponha-se, através de ideias , e não da força, outras maneiras de instituir nova potesta por intermédio de meios legais, incluindo eleições gerais. Pois o poder nunca é posse ou um fim em si, ele é produção de meios que favoreçam a existência. Não há direito natural que possa existir sem uma sociedade, embora toda sociedade exista em razão de um direito natural que não deixa com que ela se feche ou se autodestrua em virtude de bandidos e corruptos.
Quando uma sociedade perde o vínculo com a ética, isto é, com o direito natural enquanto afirmação da heterogeneidade, quando isso acontece grupos em confronto arvorarão para si uma razão exclusiva, em guerra civil com a razão do outro grupo .Mas a razão nunca briga consigo mesma, apenas paixões brigam entre si, sobretudo as paixões tristes do ódio e da vingança E mais violento será o confronto quanto mais todas as cores possíveis forem reduzidas ao preto e branco, ao sim e não, ao pró ou contra.
Para Espinosa, existe uma alegria passional que tem por contrário um ódio igualmente passional. Contudo, existe ainda uma alegria ativa que não tem contrário, pois é afirmação da própria vida múltipla. Do mesmo modo, existe uma democracia representativa que tem por contrário tiranias e fascismos de toda ordem. Mas existe ainda uma democracia originária, voz e expressão da multiplicidade ontologicamente existente. Essa democracia originária não é representativa: ela não pode separar-se de si mesma para, em outro plano distante de si, colocar-se como representante de si mesma. Essa democracia originária não é representativa, ela é produtiva: ela produz , sobretudo, os meios que impedem que ela seja negada, dividida em duas partes ou enfraquecida. A democracia originária produz tão somente uma coisa: democracia, pois a democracia é, ao mesmo tempo, produtora e produto dela mesma.
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