sábado, 21 de junho de 2025

A partida de Perséfone

Segundo a mitologia, Hades é a divindade que habita a região trevosa muito abaixo da superfície da terra. Nesse lugar nenhuma luz entra.

Certa vez,  Hades ouviu risos vindo da superfície. Ele subiu e viu Perséfone... Ela estava com sua mãe , a deusa Ceres. De “ceres” vem “cereal”, pois Ceres é a divindade do plantio e colheita dos cereais. Ceres é filha de Cronos, o Tempo, com Cibele, a divindade  da fertilidade.

E foi em sua neta Perséfone que a fertilidade de Cibele se tornou uma força criativa semelhante àquela que vemos no artista, pois Perséfone é a deusa cuja arte é fazer nascer flores. Perséfone mata outra fome diferente daquela que Ceres mata: Perséfone mata a fome de beleza, de poesia e de cores.

Hades se apaixonou pelas flores e quis levá-las para enfeitar sua noite eterna. Foi uma imensa surpresa, pois ninguém imaginava que pudesse nascer em Hades um desejo por cores.

Num ato condenável, ele raptou  Perséfone para fazê-la morar lá embaixo . Porém, naquele mundo carente de luz , de Perséfone nasciam rosas só com espinhos , sem as pétalas, flores da dor que elas eram.

Enquanto isso, sentindo a falta de Perséfone, Ceres ficou deserta : o grão não mais germinava nela. Havia agora fome de pão e de  beleza, de pão e de poesia, e ninguém sabia qual das duas fomes doía mais: a primeira esvaziava o estômago, a segunda ao coração secava .

Zeus interveio e foi feito então um acordo. Durante parte do ano Perséfone subiria para viver entre nós,  sua chegada nos  trazendo a primavera.  Durante outra parte do ano, uma parte  doída para nós, Perséfone viveria lá embaixo . Desta maneira nasceu o inverno: o período em que Perséfone desce para ir morar com Hades.

 Mas para nos confortar um pouco e minorar a tristeza pela sua ausência, Perséfone criou flores que florescem no inverno. Foi assim que nasceram a Tulipa, a Angélica , o Crisântemo , a Orquídea e o Lírio que, como ensina Manoel de Barros, “brota  de monturos...”

Ontem começou o inverno. Perséfone nos deixou...

Ainda bem que pode nos socorrer e acalentar outra narrativa originária  , uma narrativa de autoria do povo  tupi-guarani, cujo sangue também corre nas nossas veias. Para esse povo, o   ipê  é  a árvore-filha mais potente e perseverante de Pindorama, a Mãe-Terra;  pois o ipê é capaz de florescer o ano inteiro em resistente primavera, mesmo sob o inverno.

“Árvore da Vida”, assim nossos povos originários chamam  o ipê. Nem o inverno , nem os vis predadores armados com  motosserra  impedem o ipê de dizer , florindo,  o que  o poeta Goethe disse em versos: “O céu da teoria é cinza; mas sempre verdejante é a árvore da vida.”


(imagem: “Roots” /“Raízes”, de Frida Kahlo)






 

quinta-feira, 19 de junho de 2025

HOJE, 19/06, CHICO BUARQUE FAZ 81 ANOS

 

Antes de ouvir Chico, eu o li. Antes de ouvi-lo como música, eu o li como poesia que se lê para ampliar nosso pensar e sentir. A primeira vez que li Chico foi na escola, numa época na qual ainda pairava sobre nós a dit4dura.  Eu não tinha mais do que 11 ou 12 anos.

Eu já sabia ler livros : livros de história, de física, de química, de geografia e até livros sobre literatura. Porém, até então eu não havia experimentado toda a potência que pode haver na leitura. E a potência da leitura nada tem a ver com apenas desenvolver mera erudição ou o intelecto.

Foi a poesia presente na canção popular  que, quando criança,  me fez aprender a ler. Ler não apenas a letra, mas o mundo que ela expressa: mundo por descobrir.

Li pela primeira vez Chico numa aula de língua portuguesa dada no antigo primeiro grau. Ao invés daqueles livros tradicionais que, na parte de interpretação de textos,  empregavam os “parnasianos”, a nossa querida professora  resolveu adotar um livro heterodoxo, plural :o livro apresentava  as letras de músicas dos compositores que participaram dos festivais da canção .

Tais festivais ainda eram recentes, eu era bem pequeno quando eles aconteceram. Por isso, eu não tinha memória ou vivência deles. Sem dúvida, aquele livro  fazia o que Foucault chama de micropolítica da resistência.

Quando li  “Construção”, de Chico, experimentei pela primeira vez aquilo que Deleuze e Guattari chamam de “desterritorialização”. Desterritorializar-se é fugir de um território habitual,costumeiro, ordinário.Como diz Manoel de Barros, desterritorializar-se é fugir do acostumado de toda cartilha,incluindo as cartilhas que tentam codificar nossa percepção, palavras  e maneiras de pensar e agir. 

Ao ler Chico, eu não apenas me desterritorializava : eu me reterritorializava em um território novo composto de   sensações e afetos que não eram apenas pessoais.

 Essa desterritorialização  me  ampliava para além dos muros da escola: me lançava no mundo,  me inseria no cosmos. Foi a partir dali que me apaixonei por ler, e que compreendi que todo ler também é um “me ler” e “nos ler” ,sobretudo ler o sentido que nunca poderá ser reduzido apenas a livros , muitos menos os de “Moral e Cívica” , a cartilha com a qual os milicos queriam nos adestrar.

Embora eu não entendesse intelectualmente todos os significados imanentes à letra do Chico, algo em mim ali “desabriu” e “horizontou”, como diz Manoel de Barros. E creio que foi ali que começou a nascer em mim, ainda em embrião, o filósofo.


( este livro é apenas uma sugestão)





 



sábado, 14 de junho de 2025

Sobre o "niilismo"

 

Fala-se muito hoje do “niilismo”. Queria trazer outra perspectiva sobre o assunto, em razão da ascensão de certa mentalidade niilista que vem se manifestando sobretudo na política e na religião, no Brasil e no mundo.

“Niilismo” vem de “nihil” ,  expressão que costuma ser traduzida  por “nada”. O niilista, dizem, é aquele que não crê em nada.

Mas  “nihil” também pode ser traduzido por  “nulo”, sentido esse mais adequado para traduzir o comportamento e mentalidade niilistas. Pois o niilista é aquele cujas palavras, ações e visão de mundo são nulos, isto é, não têm autenticidade vital.

O niilista não é um ateu, o niilista é aquele que até pode falar muito em Deus, teológico-politicamente. Mas sua concepção de Deus é nula, pois seu   Deus ,ao invés do  amor, é evocado para vinganças e  ódios.

O niilista não é um deprimido, o niilista  pode ser até muito piadista (como o inelegível propondo a Moraes ser seu vice...), mas sua alegria é nula . É uma “alegria que nasce da tristeza”, como já diagnosticava Espinosa; e Nietzsche chamava de “niilismo reativo” a essa forma de vida triste.  

O niilista não é um apolítico, ele se envolve e faz política, porém sua política é nula:  prega ódio à democracia.

 Um dos antônimos de “nulo” é “fecundo” ou “potente”. O niilista é um infecundo:  no pensar, no agir e no falar.

 O niilista é aquele cujo viver é nulo, mesmo que viva cem anos. E enquanto ele viver, viverá ameaçando anular a vida dos outros...

 Sob a ânsia de  juros e  lucro da mentalidade capitalista , move-se uma pulsão-niilista. Essa pulsão, prima da pulsão de morte, reduz tudo a mera  mercadoria   para preencher  o vazio de nulas vidas com consumos escapistas.

 Mas nada atrai tanto o niilista quanto o ódio e a guerra. Guerra e ódio, a destruição cega, tornam objetiva a nulidade existencial do niilista. Território, petróleo, “ataque preventivo”, Deus...tudo isso é evocado como motivo de guerra pelo niilista. Mas o motivo mesmo é seu  ódio à vida.

 Num mundo conduzido por homens niilistas, o poder se torna máquina de ódio belicista ameaçando anulações recíprocas.

Que Gaia, Pachamama, enfim, a Mãe-Terra com sua Fecundidade e Potência  de Vida  nos protejam desses homens da guerra  ressentidos, vingativos e perigosos para toda a vida no planeta.

 

Obs.: Nietzsche fala ainda do "niilismo ativo ", que nada tem a ver com o niilismo reativo que descrevi. O princípio ao mesmo tempo ético, artístico  e político  do niilismo ativo é: “Só podemos destruir sendo criadores.”


(Imagem: “O núcleo da vida ou A criação”/ de Frida Kahlo)






quinta-feira, 12 de junho de 2025

A singularidade

 

                                A SINGULARIDADE EM KIERKEGAARD[1]

 

O homem seria infinitamente grande,

  se a criança fosse seu mestre.

     Kierkegaard

                                                   

Certas poesias suscitam cores. Quando as lemos, vemos cores, cores que tingem a alma que as lê e se afeta. Há poesia também na prosa. Há coisas que apenas se pode dizer através da poesia, mesmo que sob a veste da prosa. Os textos do filósofo Kierkegaard suscitam uma experiência poética na qual nossos olhos, nossos olhos do espírito, são inundados por uma intensidade expressa por uma cor: o vermelho. Este vermelho, no entanto, não nos cega, ele nos faz ver. Ele nos faz ver claramente o que somente se pode ver quando ultrapassamos a luz clara da razão. Ele nos faz ver a paixão. Não a paixão meramente passional que nos torna passivos, mas a paixão libertária de um pensamento apaixonado. Somente apaixonado, e apaixonando-se, que o pensamento vence o abstrato dos conceitos mortos, “puros”, estéreis. Somente sob a paixão que lhe é própria que o pensamento também pode nos fazer apaixonar por ele. E o que é um pensamento apaixonado e apaixonante? O pensamento somente pode conquistar essa condição quando descobre e vive a sua singularidade. O que é o singular? O singular é o único.

O singular, o único, tem a cor vermelha, mais o vermelho da brasa do que o vermelho do sangue; ou melhor, a brasa é seu sangue. Segundo Kierkegaard, tornar-se singular implica descobrir a força constitutiva do “estar perante”. O singular não é o que existe só , como “um todo à parte”; o singular é o que existe perante. Existir perante é afirmar a relação, o encontro. É somente existindo perante que o singular encontra e afirma o seu ser próprio.

A singularidade é o inverso do ego. Este nega todo existir perante, dado que imagina existir apenas em si mesmo. O ego nega o outro. No entanto, ele alucina um outro, um outro que ele imagina ser. O ego está sempre querendo ser um outro. O outro que se reflete em um espelho, sobretudo o espelho das coisas. Para fugir de si mesmo, o ego se aliena   nas coisas que ele consome, veste, dirige, compra, vende. O ego está sempre querendo ser um outro, outro este que lhe falta, outro este que lhe trará a coisa que ele deseja, e pela qual ele anseia ter, consumir, mostrar, ostentar, invejar. Paradoxalmente, o ego quer ser a imagem que lhe mostra um espelho qualquer. Ele quer ser um reflexo, um reflexo do mundo que o cerca, e sobre o qual ele se extroverte. A televisão, a novela, a propaganda...fornecem ao ego o outro que ele deve desejar ser, para assim fugir de si mesmo, para assim aceitar e se conformar com a vida que a televisão, a novela e a propaganda lhe oferecem. Ele quer ter outros dentes, mais brancos; ele quer ter outros cabelos, mais lisos; ele quer ter mais amigos, que ele crê ter sendo outro, mesmo que apenas finja ser nas páginas virtuais cheias de sorridentes amigos.

Mas esse querer ser outro encobre o vazio de ser ele mesmo. O ego deseja o automóvel, deseja a casa, deseja a bugiganga tecnológica, deseja a fama, deseja o reconhecimento, deseja o poder, deseja o título....ele deseja essas coisas como um outro que lhe fará ser ele mesmo. É se cercando de coisas que ele imagina se pôr diante dele mesmo, de tal modo que ele reduz o próprio outro ser humano  à coisa. Essa inautenticidade conduz o ego ao desespero. Em Kierkegaard,  o desespero caracteriza um tipo de vida cercada de coisas, coisas estas que cercam um vazio. Esse vazio enseja a dissimulação, o fingimento, o cálculo, o cinismo, a ironia, a inveja, enfim, a angústia como sintoma de uma vida inautêntica.

Afirmar a autenticidade passa pelo “pôr-se diante de”. O “pôr-se diante de” implica em vencer em nós o esconder-se , o dissimular-se. A autenticidade passa pelo colocar-se diante da diferença, como diferença. É o “pôr-se diante de” que singulariza, uma vez que nos faz compor com o outro.

Pôr-se diante dos pais nos singulariza no âmbito da família. Pôr-se diante dos amigos nos singulariza no afeto particular da amizade. Pôr-se diante da sociedade nos torna cidadãos. Mas só nos tornamos filhos autênticos, amigos autênticos e cidadãos autênticos quando nos colocamos diante de, e não “no lugar de”. Colocar-se diante de é afirmar o não-eu como elemento constituinte da nossa própria diferença, e que nos livra de querer ser um eu que vive à parte, à parte da comunidade, à parte de si mesmo. A amizade possui uma “medida” maior do que a família, já que a família é limitada pelo sangue e a amizade não o é. Não posso criar laços sanguíneos com um estranho, mas posso criar laços de amizade. Há uma indeterminação na amizade que não existe na família. Por isso a amizade me amplia mais, ela me aproxima mais da minha singularidade, pois aproximar-se de nossa singularidade não é estreitar-se, mas ampliar-se, sempre através de um agenciamento, de uma relação. Mais ampla do que as relações de amizade são as relações sociais. Nestas, outras virtudes preponderam além da amizade, como a virtude da justiça, a virtude do conhecimento, etc. Assim, não é um mesmo “pôr-se diante de” o colocar-se diante da família, dos amigos e da sociedade. Mas não há como pôr-se diante da sociedade e colocar-se atrás da família, como se esta fosse uma cerca em descontinuidade com o social, como se fosse um mundo à parte. Por outro lado, colocar-se diante dos amigos não implica em colocar-se contra as virtudes que me colocam diante da sociedade. Ampliar-se não significa negar um circuito de menor amplitude. Desse modo, o colocar-se diante da sociedade nos amplia mais do que o colocar-se diante dos amigos, embora estes nos ampliem também. O colocar-se diante da amizade nos amplia mais do que o colocar-se diante da família. Ampliar-se significa: conquistar a autenticidade da nossa singularidade. Uma família que alimenta o edipianismo apenas produz édipos egóicos, que terão dificuldades em se relacionar e produzir a autonomia que compõe a vida social. Uma amizade não autêntica engendra descontinuidades em relação às relações políticas e sociais, de tal modo que se confundirá o amigo com aquele de quem se espera um tratamento de burla às regras, como se houvesse uma antinomia entre a esfera da amizade e a amplitude política do social. Assim, colocar-se diante do social é perceber como política as relações que chamamos de familiares e de amizade. Ampliar-se como singularidade é aumentar a capacidade de compreensão; logo, de ação. Quanto mais egóico é um ser, mais ele reduzirá as relações políticas àquelas de menor amplitude, as relações familiares, desvirtuando, no entanto, a natureza destas ( “déspota” significa, em grego, “pai”).

Quanto maior a amplitude, maior a liberdade que ela implica. As relações sociais têm como base a liberdade. Mas a liberdade não é fazer o que o ego quer , tampouco é a liberdade um mero subordinar-se  à lei; liberdade é um pôr-se diante, inclusive um pôr-se diante das leis.

Quanto maior for a amplitude daquilo em relação ao qual nos colocamos diante, maior é a nossa singularidade, porém menor será a determinação, o limite. Nada é mais sem medida do que o infinito. É colocando-se diante do infinito que podemos conquistar um maior grau de autenticidade, de singularidade. O infinito é o mais indeterminado, e este mais indeterminado é o que, no entanto, mais pode nos singularizar e nos libertar do desespero de uma vida refém do limite das coisas, inclusive o limite, estreito limite, das opiniões que hoje governam o mundo.

Pôr-se diante do absoluto amplia todos os nossos outros pôr-se diante de, uma vez que nos faz sentir mais viva a nossa singularidade. Não há como nos pormos diante de nós mesmos a não ser nos pondo diante de um outro, de uma diferença. O absoluto é um outro do qual somos uma parte singular, viva. Ampliar-se é fazer parte do que é sem medida. E este sem medida não está fora das medidas e as negas. Diferentemente, ele é imanente a tudo aquilo que é autêntico e que se afirma afirmando a relação, o encontro, o agenciamento.

O infinito não tem medida. Porém, é ele que mais nos singulariza quando , com ousadia e paixão, colocamo-nos perante ele.


Uma imagem contendo edifício, mesa, relógio, janela

Descrição gerada automaticamente

  (tirei esta foto de uma exposição sobre os “Heterônimos de Fernando Pessoa”,  no Paço Imperial )



[1] Texto-aula elaborado pelo prof. Elton Luiz.

sexta-feira, 6 de junho de 2025

a visão fontana 2

 

Segundo  Manoel de Barros,  poeta não é exatamente quem faz rimas e versos, poeta é quem possui e exerce uma  visão fontana, uma visão que é fonte para a gente potencializar ainda mais o nosso ver.

“Fontana” é a qualidade de tudo o que é fonte, seja fonte de água ou de ideias, e “fontanejar” é a maneira que toda fonte tem de sair de si e se doar, generosamente : “A cisterna contém, a fonte transborda” (Blake).

 A visão fontana não é uma visão que constata o meramente dado; ao contrário, ela é uma visão que vê , antes, o sentido enquanto  alma viva das coisas, sobretudo daquelas que ainda não existem e precisam ser ousadas, criadas, aprendidas e ensinadas.

As águas que nela  fontanejam a  fonte as sorve do chão. Porém, antes de estarem sob o chão,  essas mesmas   águas já estiveram, outrora, no céu  : elas foram gotículas suspensas no alto da atmosfera , e depois caíram  como chuva que entrou pelos poros da Mãe-Terra. É de uma fonte assim que também fala Nietzsche: “Onde quer que estejas, cava profundamente; a teus pés está a nascente.”

Essas mesmas águas fontanas  também  já circularam no interior dos animais, como sangue e suor ; elas foram igualmente  fluxo de primavera quando a neve no pico das  montanhas   derreteu; essas águas fontanas  já foram orvalho nas flores, seiva nos troncos e ,nos frutos, o doce sumo; elas já foram lágrimas de dor, lágrimas de alegria; e envolvendo e protegendo o feto, essas mesmas águas já foram líquido vital  no interior da placenta.

Um dia tais águas fontanas sustentaram a Terra, como nos faz crer Tales, o pensador originário; e Cristo fez delas vinho, o sangue de toda festa; e é nesse fluxo de vida sem limites  que nada e mergulha, livre, a indomável Moby Dick.

E todos, insetos e humanos, flores e animais, até mesmo a Terra, todos bebem dessas águas fontanas para se manterem vivos.

É esse fluxo que se metamorfoseia e enche de vida tudo ( como a Natureza Naturante de que fala Espinosa) ,  é essa Vida transbordante  que o poeta vê e sente , primeiro nele, para fazer com que a palavra por ele fontaneje e seja como água fértil para os que têm sede de vida potente.

Enfim, como também ensina o pensador-escritor argentino Julio  Cortázar: “Há um estado de intuição para o qual a realidade, seja ela qual for, só pode ser formulada poeticamente, segundo modos poemáticos;  e isso porque a realidade, seja ela qual for, só se revela poeticamente”.

 

( perdoem-me citar a mim mesmo...rs... é que o texto da postagem é parte deste livro que escrevi: na cena  da capa, apesar do maciço obstáculo , a vida fontaneja pela fenda ...)




 



quinta-feira, 5 de junho de 2025

a chave-mestra

 

                                                          A CHAVE-MESTRA[1]

 

(Este texto é um comentário ao Prelúdio 51 de A gaia ciência. Nietzsche afirma que seu leitor deveria ter “bons maxilares e estômago”, mais do que mera inteligência analítica e memória. Pois “meus textos, dizia ele, é para serem digeridos”, isto é, absorvidos e incorporados àquilo que em nós é vivo, artístico, singular)

 

 

 

Onde quer que estejas, cava profundamente;

a teus pés está a nascente.  

(Nietzsche, “A gaia ciência”).

 

Uma chave específica abre apenas a porta na qual está a fechadura que tem a forma dela. Porém, nenhuma outra porta diferente ela consegue abrir, todas estão fechadas para ela. O cientista abre apenas uma porta: a chave do físico, por exemplo, abre somente o universo físico, sua chave não consegue abrir o universo psíquico; já a chave que tem o químico abre apenas o universo químico, não serve para abrir outras realidades diferentes da química.

O mesmo acontece com o filósofo que se torna especialista em apenas uma parte da filosofia: se ele fizer da lógica sua chave exclusiva, por exemplo, apenas a porta da lógica ele conseguirá abrir; se for a chave da estética a que ele exclusivamente usa, somente essa porta específica abrirá para ele, permanecendo as demais cerradas, inacessíveis, trancadas.

E o pior acontece quando um filósofo reduz toda a filosofia àquela porta que ele consegue abrir, reduzindo a filosofia a apenas um aspecto dela (como aqueles que, de forma reducionista, consideram que a filosofia é, antes de tudo, uma lógica ou uma epistemologia[2]...). A especialização não é um problema em si, ela apenas se torna uma limitação quando se quer fazer dela a norma para a filosofia.

Por isso, o autêntico filósofo é aquele que deve ter, antes de tudo, uma chave-mestra. Uma chave-mestra é aquela que abre todas as portas. Não só abre todas as portas, mas as compreende como entradas singulares para uma mesma casa onde o pensar mora, um pensar umbilicado à vida. Uma casa cujo piso é a terra e seus horizontes, e o teto é o céu com suas infinitas estrelas.

A chave-mestra abre todas as portas não em razão de que aquele que a tem sabe sobre uma área específica mais do que o especialista que possui apenas a chave que abre uma determinada porta. Na verdade, a chave-mestra abre todas as portas porque as conecta como partes de uma mesma realidade que se abre não apenas à Razão, mas também ao Afeto.

 



[1] Texto-aula elaborado pelo prof. Elton Luiz.

[2] A esse respeito, vale a pena consultar a letra “W” do Abecedário de Gilles Deleuze.








sexta-feira, 30 de maio de 2025

A semente

 

O filósofo Leibniz dizia que se a gente prender uma semente na mão, com o tempo ela apodrece. Mas se a gente plantar a semente, cuidar e cultivar, dela nascerá uma árvore. Da árvore plantada nascerão incontáveis frutos: dentro de cada um, uma nova semente.

Se a gente plantar essas novas sementes, delas nascerão outras árvores, cada uma com inumeráveis frutos, cada fruto grávido de novas sementes.

Naquela primeira semente havia virtualmente uma floresta inteira, uma floresta-potência, assim como num simples recém-nascido   vive potencialmente   a humanidade enquanto valor vital que precisa ser cuidado e alimentado para florescer.

Pois humanidade não é uma quantidade numérica como   rebanhos, mas uma potencialidade inseparável de nossa singularidade, e   que se cultiva com educação, afeto e liberdade.

Para uma potencialidade florescer, da semente ou de uma criança, é preciso um exercício de cuidado e um espaço aberto livre de estreitezas. Quem descobre tal floresta dentro de si não aceita viver limitado por cercas: como diz Manoel de Barros,  mundos por criar desabrem dentro e saltam para fora , frutificam.

Dentro de uma ideia emancipadora    há sempre outras ideias, infinitas ideias, pois toda ideia emancipadora   é plural e múltipla, já nos ensinava Espinosa.

Educadores plantam ideias-sementes, obscurantistas se armam com motosserras ( como aquela que Milei , o ídolo da mídia corporativa brasileira, presenteou a Trump, acumpliciando-os).

 Ao falar da semente descobrindo-se floresta, Leibniz se refere simbolicamente à educação e ao seu papel crítico, criativo e emancipador.  Dentro da semente não está a floresta com suas árvores já prontas e individuadas, pois a floresta que existe dentro da semente é uma floresta em rascunho, uma floresta-embrião, que somente nasce se a semente for plantada em terra fértil e horizontada.

 Essa floresta-potência é a riqueza multivariada da vida que nasce de si mesma e frutifica perseverantemente, ao mesmo tempo singular e plural.

 

“Poeta é ser que vê semente germinar.

Nas fendas do insignificante ele procura grãos de sol.” (Manoel de Barros).

 

“O grande segredo do regime  aut0ritário consiste em enganar os homens, travestindo o medo com o nome de religião , com o que se quer sujeitá-los; de modo que eles combatem por sua servidão como se se tratasse de sua salvação.” (Espinosa)

 

( imagem: “O semeador”, de Van Gogh, que pinta o sol como a semente luminosa  da qual , erguendo-se do horizonte, um novo dia brota)























 

quinta-feira, 22 de maio de 2025

urdidura & trama

 

Quem deseja tecer deve partir de uma “urdidura”. Não importa se são tecidos, textos, ideias ou ações que desejamos tecer: é sempre de uma urdidura que se parte.

“Urdidura” vem do termo latino “ordo” (em português: “ordem”). Como ensina Espinosa em sua “Ética”: em tudo há “ordo”, porém “ordo” não é tudo.

Toda urdidura é feita de fios dispostos retamente, como um destino, e disso já sabiam as mitológicas Moiras, que urdiam o destino dos seres humanos de maneira férrea, aparentemente inescapável, como as barras retas de uma prisão.  Mas apenas uma urdidura não forma um tecido de vida: é preciso a “trama”.

A trama nasce de um fio que passa transversalmente pela urdidura: a trama acrescenta ao férreo destino a invenção de fugas, de “linhas de fuga”.

Toda urdidura é sempre igual: reta e determinada. Porém, há múltiplas formas de se fiar uma trama. Não há trama sem uma urdidura, isso é certo; porém não há tecido, de pano ou social, sem a invenção de tramas.

Da “Moira Social” que o urdiu louco, Arthur Bispo do Rosário reencontrou sua transversal, seu “Fio de Ariadne”, e assim tramou sua lucidez como fuga da normalidade reta dos que pensam igual.

Embora toda trama parta de uma urdidura, nenhuma urdidura pode determinar que trama se inventará a partir dela.

A gramática é urdidura, porém trama é a poesia; a lógica é urdidura, mas pensar é trama; família é urdidura, amor é trama; Estado é urdidura, sociedade é trama; código jurídico é urdidura, justiça é trama; sistema político é urdidura, democracia é trama.

 

“A reta é uma curva que não sonha.” (Manoel de Barros)

 

“Não há linha reta, nem nas coisas e nem na linguagem.” (Deleuze)

 

“Quero descrever o voo de um pássaro

escrevendo com a pena de uma asa.” (Guimarães Rosa)


“A opinião de que a arte não deve ter nada com a política já é em si mesma uma atitude política.” ( George Orwell / livro: Por que escrevo)


 "Atravessamos tudo como a linha atravessa um tecido: formando imagens." ( Rilke)



(imagem : Bispo do Rosário / foto de Walter Firmo.  Aberto, horizontado, o “Manto” de Bispo do Rosário se torna   asas de uma borboleta nascida de uma trama-metamorfose)




 



terça-feira, 20 de maio de 2025

A escolha de Ulisses

                                                      A ESCOLHA DE ULISSES[1]

 

Na Odisseia, de Homero, há um acontecimento considerado um dos principais da narrativa: quando Ulisses se encontra com a deusa Calipso[2]. Antes desse encontro, Ulisses passou por inúmeras aventuras perigosas e degradantes que quase o enlouqueceram e trouxeram o fim de sua vida. Até mesmo no Hades, o “Reino dos Mortos”, Ulisses foi parar:  embora Ulisses estivesse ainda vivo , no entanto ela parecia um morto, de tão acabado e derrotado que estava, por dentro e por fora.

Ao conseguir fugir do Hades, Ulisses vagou no mar como um náufrago, até alcançar, exausto, a ilha de Calipso.   Esse encontro de Ulisses com Calipso é, como já dissemos, um dos pontos decisivos da história, com temas que podem ser contextualizados para as questões que vivemos hoje. Aqui, porém, nos interessa um dilema ético pelo qual Ulisses passará, dilema esse que obrigará Ulisses a realizar um dos principais atos que caracteriza a ética: Ulisses terá que fazer uma escolha. Uma escolha é sempre feita diante de um campo de possibilidades. Quem faz algo obrigado, não escolhe. Mas toda escolha pressupõe a liberdade, e é por isso que a escolha pode pesar tanto, já que escolhendo uma possibilidade abandonamos inúmeras outras possibilidades que não escolhemos.

Esse tema da escolha é um dos principiais do existencialismo, e está presente nos livros de Simone de Beauvoir , Sartre e Camus, por exemplo. Para esses autores, nenhum de nós tem uma “essência” imutável: nós somos o que escolhemos ser. Mesmo quando achamos que não escolhemos, estamos escolhendo: escolhemos não escolher... Para esses autores, portanto,  não existe neutralidade. A pessoa ética é aquela que não só escolhe, como também assume a responsabilidade de suas escolhas. Ela não se esconde, não se ausenta e nem se resume a ficar culpando os outros por aquilo que lhe acontece. Para esses autores, o preço da liberdade é a angústia diante dessa verdade: somos nós que devemos escolher o que somos e seremos, e assumirmos essa escolha. Num primeiro momento, isso pode doer ( assim como pode doer passar da adolescência para a vida adulta) , mas é somente sendo responsáveis por nossas escolhas é que podemos ser livres, isto é, crescermos enquanto pessoas.

Voltando à narrativa. Após cuidar de Ulisses, e querendo retê-lo para todo o sempre, Calipso lhe fez uma proposta: conceder-lhe a imortalidade. Calipso disse: “ficando comigo aqui em minha ilha você se tornará imortal e divino,  dará adeus à dor, à frustação, à decepção, ao sofrimento, enfim, ficará liberto da morte, do tempo e da saudade”.

Ulisses , porém, recusou a oferta... Entre se tornar divino ou viver a condição humana, por mais contraditória e errante que seja essa condição, ele escolheu a humanidade, o que implicava retornar ao oceano e à sua viagem, perseverar no rumo, enfrentar os perigos, suplantar as tempestades  e sempre mirar o horizonte até nele surgir sua Ítaca, sua terra natal, na qual o esperava o motivo  de sua saudade: sua companheira Penélope.

No livro O que é a filosofia? , Deleuze & Guattari retomam essa narrativa e argumentam da seguinte forma:  “Penélope” representa para Ulisses o mesmo que o Afeto potencializador representa   para o pensador de não importa qual área[3]. Não somente as ideias nos servem de orientação, também são como “bússolas” os Afetos[4] que dão sentido a uma vida.  

Antes de reencontrar Ulisses, “Penélope” é assediada pelos “pretendentes” que a querem ilegitimamente: alguns a querem comprar, outros a ameaçam violentar e tê-la   à força. Mas Penélope não se põe à venda e resiste às ameaças dos comerciantes e usurpadores das Ideias.

Os “pretendentes” representam aqueles  que consideram que tudo pode ser obtido de forma fácil e sem esforço. Os pretendentes também simbolizam aqueles que acham que tudo tem um preço, sobretudo em dinheiro, incluindo as pessoas. Ou seja, os pretendentes têm a pretensão de obter coisas para as quais não se preparou, não se cultivou e nem se dedicou. Por isso, querem obter as coisas por meio da força ou da trapaça, passando por cima dos valores, das regras, enfim, das pessoas. 

 

 Ulisses derrota os pretendentes mediante uma prova que não é teórica, e sim feita mediante ações, isto é, uma prova ética.  Ulisses reapareceu em Ítaca disfarçado de velhinho. No seu próprio lar, ele viu os pretendentes assediando Penélope. Quando viram Ulisses-velhinho, os pretendentes riram de forma zombeteira, imaginando que aquele velhinho caquético era mais um pretendente...Então, Ulisses propôs uma “prova”: ganharia a mão de Penélope aquele que conseguisse dobrar o arco de Ulisses. Achando que a prova seria fácil, o arco foi passando pelas mãos de cada pretendente, mas sem que nenhum deles conseguisse dobrá-lo. Até que o arco chegou às mãos do velhinho, e todos os pretendentes debocharam novamente. Porém, para surpresa de todos, o velhinho conseguiu dobrar facilmente o arco. Ulisses então desfez o feitiço e se mostrou aos pretendentes, os enfrentando e derrotando.

A palavra “virtu”, da qual nasce “virtude”, designa originariamente a força que nasce da corda do arco quando é tensionada, para assim lançar a flecha longe. Virtu designa uma força potencial, portanto. De maneira análoga, as virtudes são forças, ou potencialidades, que dotam a alma da capacidade de “lançar longe suas ações”, como flechas. Diferente das provas teóricas que apenas mensuram a inteligência, as provas éticas são sempre concretas, acontecem em uma situação direta, e revelam se aquele que é posto à prova possui ou não a virtude que diz ter, se é ou não corajoso, se é ou não justo, se é ou não empático, se é ou não generoso, se é ou não amigo de verdade, enfim, se é autêntico no que diz e faz ou apenas um pretencioso que finge ser o que não é e quer as coisas sem perseverança e esforço. Enquanto as provas teóricas medem a inteligência individual de uma pessoa, as provas éticas aferem o comportamento de alguém em sociedade e na sua relação com os outros. 

Além dessa dimensão ética, Ulisses também vence os pretendentes por expressar, mais do que todos, um Afeto Potente por Penélope, Afeto esse que a Ideia também sente pelo Pensador de forma recíproca.

Enquanto estava no oceano e em perigo, esse Afeto foi, para Ulisses, sua bússola, seu leme, sua coragem...sendo também seu porto , sua terra natal e  o “fio”, como o de Ariadne , que o liga a Penélope.

Foi esse fio que o trouxe de volta ( Penélope também é tecelã-bordadeira...). Enquanto o livro Ilíada  fala da guerra e do desejo de Aquiles de morrer jovem em pleno campo de batalha, para assim conquistar a imortalidade, a Odisseia é o poema que narra a perseverança de Ulisses na sobrevivência. E sua escolha é o arquétipo de toda escolha ética[5].

É um desejo de vida que o move , um desejo de agenciamentos que potencializem  a vida. Vista dessa perspectiva, a “escolha” de Ulisses não foi bem uma escolha, ela foi , na verdade, a afirmação de uma necessidade[6] idêntica à liberdade que se fez  prática.

Penélope simboliza a alma que resiste ao assédio dos “pretendentes” que tentam comprá-la.  Recordar vem de “re-córdis”: “trazer ao coração”. Foi a recordação de Penélope, fazendo dela a força de sua coragem ( “coragem”: “força do coração”), foi essa recordação que levou Ulisses a escolher a humanidade e retornar à sua terra natal , para isso se lançando em nova viagem, desta vez não temendo as tempestades, pois Ulisses agora sabia aonde ir: de volta a si mesmo, ele que se perdeu de si.

A humanidade não é o “Homem”, a humanidade é um valor que somente existe se for criado por nossas escolhas éticas e políticas, pois escolher a humanidade também precisa ser uma escolha coletiva.

Apesar das tempestades, é sempre em direção à humanidade que precisamos ir. Ela é, ao mesmo tempo, a bússola, o leme, a viagem e o porto : a terra natal onde reside/resiste nossa Penélope-Psiquê.



                                                     E volta ao lar em si mesmo.

                                                                        Rilke

 

 



[1] Texto elaborado pelo prof. Elton Luiz.

[2] Além disso, essa passagem da Odisseia é considerada a primeira a colocar questões éticas, influenciando depois os filósofos gregos que se debruçaram sobre o assunto, como Platão e Aristóteles.

[3] Como dizem Waldisa Rússio e Tereza Scheiner: “É preciso pensar o museu.” E pensar o museu é mais do que apenas ter habilidade em questões técnicas. Para pensar o museu são necessários ideias e afetos.

[4] No texto-aula “O que é um Afeto” explico um pouco mais sobre esse tema. De certo modo, o tema do Afeto liga a Ética à Estética. Vale a pena ler o artigo que já deixei no classroom e recomendei, cujo título é:  "Museologia, ética e estética".

[5] Sartre, por exemplo, faz da escolha a expressão de nossa liberdade.

[6] Essa identificação entre necessidade e liberdade está presente na Ética de Espinosa.