(trecho de livro a sair)
Como
definir Manoel de Barros? Essa pergunta suscita outra: por que querer
defini-lo? Manoel de Barros é definível? Creio que a dificuldade de se
classificar Manoel, pôr nele uma etiqueta, deve-se ao fato de que sua poesia,
como poucas, pouquíssimas, é uma aproximação com as fontes[1].
O próprio Manoel é grato às suas fontes. A fonte é a origem que renova[2]. Ser grato às fontes é devir fonte. A fonte também é uma visão,
uma visão fontana[3].
A visão fontana faz nascimento no ato de ver, pois “é pelo olho que o homem
floresce”.[4] O mundo que os olhos da
lagarta veem não é o mesmo que verão os olhos da borboleta: os mundos mudarão
porque mudarão, antes, os olhos, diferentes olhos terão florescido.
Há
estudos feitos no âmbito da teoria literária que tentam esquadrinhar a obra do
poeta, buscando afinidades e filiações, simpatias e pertencimentos. Há razão
nesses estudos, não há o que questionar. Porém, basta ler o poeta para perceber
que nele há um estilo ainda não catalogado, ainda não visto, como passarinho
cuja espécie carece ainda de nome. Há em Manoel uma verdez[5],
uma não velhez : a “velhez
não tem embrião”[6]. Para
saber e experimentar essa não velhez basta
lê-lo...Porém, há ainda aqueles que dizem ser Manoel uma fórmula, que há uma
fórmula-Manoel , como se o poeta se repetisse. Reduzem sua poética a algumas
ideias-imagens que se repetem. Com isso, parecem querer não achar motivo ou
razão para perdurar, e renovar, tanto encantamento que muitos encontram em Manoel,
sejam eruditos ou não, letrados ou gente simples, jovens, crianças ou idosos.
Contudo,
já li não sei quantas vezes um mesmo poema do Manoel. Cada vez que o leio se
produz em mim um empoemamento completamente diferente do empoemamento que
tivera ao lê-lo anteriormente. É sobre este verbo que é preciso ter a atenção:
o empoemar. A obra de Manoel é uma empoética. Não se lê Manoel sem empoemar-se.
Mas o que significa empoemar-se? É possível definir esse afeto-metamorfose? O
mesmo acontece quando se pergunta acerca do que significa o tempo, o infinito,
o desejo, o inconsciente, o absoluto, o sentido... Pode-se dar uma resposta que encerre o
problema? Ou ainda: o que significa pensar? Quem se satisfaz com uma resposta
que de-fina, dá fim, a essas questões?
Manoel
traz uma questão ainda mais nova, que talvez sempre permaneça como a prova de
que em seus versos há um “embrião”, desde que em nós também se ache uma verdez.
A novidade manoelina não diz respeito à diferença sempre debatida entre a
poesia e o poético, mas entre o poético e o empoético.
Heidegger
dizia que não se pode introduzir à filosofia[7].Disciplinas como
“Introdução à Filosofia”, segundo ele, afastam os não filósofos da filosofia,
pois os leva a imaginar que a filosofia está apenas nos livros e sistemas que
os filósofos escreveram, supondo que a filosofia se encontra alhures. Assim
considerada, a filosofia se torna uma abstração ou mero exercício de erudição. Não se pode introduzir à filosofia assim como
não se pode introduzir à vida estando alguém já vivo. Somente se poderia
introduzir à vida alguém ainda não nascido. Mas de que maneira alguém ainda não
nascido poderia aprender algo, e ainda mais o que é viver!? Não se pode
introduzir à vida estando alguém já vivo, o que se pode é despertar, pelo
afeto, alguém à vida, intensificando nele o que já está vivo. Afetar não apenas
à própria vida, mas à vida. Quando uma vida se compreende, apreende-se como questão:
mais como pergunta do que como resposta.
Não
se pode introduzir à filosofia porque a filosofia não está lá e a vida aqui; tampouco
é a filosofia a “verdadeira vida” em contraposição à vida ilusória daqueles que
a ignoram. A filosofia é a própria existência, é a vida mesma. A filosofia
assim compreendida não é apenas sistema, doutrinas, conceitos. Ela também é
poesia, no sentido de poiésis, produção. Talvez devêssemos chamar de
“desfilosofia” um filosofar assim, manoelinamente. E por que não seria um filosofar
também o empoemar-se? Um empoemar-se como um (auto)produzir-se.
Quando
Manoel diz que "Poesia pode ser que seja fazer outro mundo" [8] talvez a ênfase deva ser colocada no “fazer”,
no produzir, e não no mundo enquanto produto ou coisa pronta, etiquetável, prestes
a virar propriedade de um dono. Sempre haverá mundo para a poesia fazer, a
poesia mais necessária é prática de fazer outros mundos: mundos políticos,
psíquicos, oníricos, semióticos, desejantes, enfim, mundos por fazer, sempre
múltiplos. É da invenção fazedora de mundos que o poeta deseja ser o dono, não
do mundo: "quem inventa é dono daquilo que inventa, quem descreve não é
dono daquilo que descreve"[9], diz o poeta.
Acreditamos
que o empoemar-se não se pode ensinar tal como se ensinam fórmulas, receitas,
cartilhas. Não podemos a ele ser “introduzidos” de forma teórica. Empoemar-se é
mais do que mera leitura de versos. Há no empoemar-se uma clínica, uma política
, um (des)filosofar. Não é todo poeta que enseja uma empoética. Não haver em um
criador de versos uma empoética não o faz menos poeta. Mas quando em um poeta
também vive uma empoética, ler seus versos é mais do que ler meros versos:
talvez haja neles, em embrião, ideias filosóficas. Poetas assim são pensadores.
[2] “Aprendimentos”, Memórias inventadas. - as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo:
Planeta, 2010.
[3] “Canção do ver”, Poemas rupestres, p. 11.
[4] “A volta (voz interior)”,Livro de pré-coisas, p. 68.
[5] “Resta
sempre uma verdez primal em cada palavra”, verso do poema “Pedras
aprendem silêncio nele”, Gramática
expositiva do chão – poesia quase toda, p. 342.
[7] Heidegger, Introdução
à filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2009, sobretudo o §2 da Introdução:
“Introduzir significa pôr o filosofar em curso”.
[8] Encontros: Manoel de Barros, p. 68.
[9] Entrevista
concedida ao jornalista José Castello e publicada no site Jornal de Poesia, em 30/05/2005.
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