terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

dos carrapatos e dos homens...

Há sem dúvida quem ame o infinito.
Fernando Pessoa

“Cada ser vivo existe dentro de seu mundo próprio” . Esse enunciado é do etólogo Jacob  von Uexküll. O mundo próprio de um ser vivo não se explica apenas por propriedades físicas ou geográficas. O mundo próprio de um passarinho, por exemplo, inclui o território que ele deseja constituir, e este território já existe no desejo que o deseja, antes de o passarinho o constituir de fato como porção de espaço e parte da floresta. O mundo próprio é dele tanto quanto ele é do mundo próprio. Sem um mundo próprio a habitar seu desejo , um passarinho definha, para de cantar e nem mesmo pode voar, a não ser para fugir dos passarinhos que já possuem um mundo próprio. Não basta ter o mundo próprio como forma em rascunho a viver dentro do desejo que o vislumbra, é preciso também coragem e afirmação para efetuar um mundo próprio , pois efetuar um mundo próprio é efetuar a si mesmo, compondo-se com o espaço, conquistando  para si um horizonte. Pois somente este, e não cercas (físicas ou simbólicas), deve ser o englobante de nosso chão.Somente a partir de um mundo próprio podemos nos horizontar. Do contrário, teremos apenas um discurso escapista, de fuga do mundo, niilista.
O mundo próprio não é um círculo ou bolha, pois essas imagens são portadoras de limites. Sabemos o que é um círculo porque o vemos de fora e o distinguimos de outras figuras geométricas, como o triângulo ou o quadrado.  O círculo possui limites além dos quais a geometria não acaba, vez que ela se expressa ainda na existência de outras figuras. Mas o mundo próprio de um ser vivo é tal que , para ele, não existe outra coisa.
O mundo próprio de um ser vivo é feito de limiares: ele é um horizonte que sempre recua, além do qual um ser vivo não pode ultrapassar , pois marca os limites de seu conhecimento. Não se trata de um idealismo  ou subjetivismo, dado que no mundo próprio  há um mundo : o mundo próprio é um mundo, ele é  o mundo dentro do qual encontramos um mundo subjetivo e objetivo, um dentro e um fora, um ser que percebe e um ser percebido. O mundo próprio vai em duas direções: para dentro e para fora, e é sempre no meio que ele se encontra mais vivo, como relação. Os extremos de um mundo próprio são indetermináveis, deslimitados, dado que coincidem, em um dos extremos , com o intangível mundo psíquico e , de outro, com um horizonte sempre aberto. O mundo próprio existe fora de um aparato psíquico, e o engloba. Ao mesmo tempo, o mundo próprio não existe sem um aparato psíquico  que o apreenda como a existência de um fora.
Vejamos o caso de um carrapato, um simples carrapato. Como todo ser vivo, ele vive em um mundo próprio. Seus aparatos sensórios são voltados para fora. Eles buscam signos. O aparato sensório do carrapato   torna determinados acontecimentos signos para ele. Esses acontecimentos  o afetam. É por intermédio desses afetos que o carrapato forma ideias do mundo que o cerca, para assim agir sobre ele. O mundo próprio é o horizonte do poder de agir de um ser vivo.
Conforme nos ensinava Cláudio Ulpiano em suas  belíssimas  aulas ( http://claudioulpiano.org.br/), o carrapato possui três afetos. Seu mundo gira em torno desses três afetos. Parecem poucos? Mas o mundo do avarento gira em torno de apenas um afeto: sua avareza; o mundo do pretensioso gravita ao redor de apenas um afeto: a pretensão.... Poucos afetos governam a vida dos homens. Pois bem, o carrapato possui três afetos: pela luz solar, pelo odor do suor de um mamífero e pelo calor do sangue . O carrapato é cego. Ou melhor, “cegueira” é uma noção que só tem sentido em um mundo próprio no qual os seres tenham visão. No mundo próprio do carrapato  a visão não tem sentido, não existe. Nenhum carrapato conhece o que é a visão. Logo, nenhum carrapato sente que lhe falta o que não existe para ele. A falta não faz parte de um mundo próprio.  Somente quando perdemos nosso mundo próprio, ou quando este se fragiliza, somente assim  é que a "falta" vem nos assombrar...
O afeto pela luz solar conduz o carrapato a buscar sempre subir. Ele escala o que puder escalar, sobretudo paredes e árvores. Ele escala seguindo a orientação da verticalidade. Ele sobe e espera. Ele espera que o objeto de seu segundo afeto se lhe apresente. Um carrapato é capaz de ficar anos à espera. Enquanto espera, ele entra em um estado que para nós se assemelharia à morte. Seu metabolismo se aproxima de zero. Tudo nele quase cessa de se mover. O único fio que o liga à vida é seu mundo próprio virtualmente envolvido em seus afetos, na profundeza da noite de sua vida psíquica.
É o odor do suor de um  animal que se aproxima que  ressuscita o carrapato daquela morte mimetizada. O odor do mamífero se anuncia como a boa nova advinda do horizonte de seu mundo próprio. O carrapato esperava sem esperanças, pois há um quê de dúvida em toda esperança , ao passo que no carrapato a espera era sem  hesitações ou dúvidas  acerca da vinda do esperado: essa vinda não era especulada , ela era virtualmente sentida na certeza instintiva de uma força que desconhece derrota antecipada. Sem ter olhos, o carrapato sabe da presença de um mamífero pelo odor de seu suor, sentido a dezenas de metros. Quando o mamífero passa, alheio ao desejo vivo que despertou, o carrapato se solta no ar, e cai sobre o objeto de sua paciente  espera. Sem possuir olhos, ele sabe as distâncias, as velocidades e o espaço que o separa do objeto de seu querer. Ao cair sobre a pele do mamífero, o carrapato se finca, se instala, tudo nele já sabe o que fazer.  Ele sente o fluxo de sangue quente  a correr abaixo da pele do animal. Ele então perfura, se enfurna e se rejubila com a parte líquida de outro ser. Após sorver o correspondente a três vezes o seu peso, o carrapato se solta, repleto, intumescido de vida. Nada mais existe para ele na floresta imensa.  Os pássaros, as flores, os regatos, o céu....nada disso para ele existe. Nada disso para ele é objetivo, nada disso constitui “objeto  para sua percepção”. Como um místico unido ao objeto de seu êxtase, o carrapato já pode morrer, e morre.
O que vale para o carrapato vale igualmente para todos os seres, inclusive o homem. Neste, porém, o mundo próprio pode ser ampliado ao infinito pela linguagem, desde que não seja a linguagem utilitária dos homens-carrapatos.... É o afeto que determina a amplitude de um mundo próprio, não o intelecto ou meras posses. O tamanho do mundo próprio de um homem tem  a amplitude de seus afetos : se é o infinito que o afeta, e do infinito não pode haver posse, tal será a amplitude de seu mundo próprio. O infinito não é um continente  vazio e distante que se contempla em silêncio; o infinito  é ele e tudo aquilo que nele vive, por mais ínfimo que seja. O mundo próprio do poeta é um deslimite nascido de sua transfiguração : “O poeta diz eu-te-amo a todas as coisas (Manoel de Barros).”






quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

o tordo e o vulcão







Aprender é ter por guia luzes que conduzem à Luz.
Para compreender , porém, é preciso padecer  
e ser conduzido à Luz através da obscuridade.
Etienne Gilson

                                                                                                   
Queria que minha voz
tivesse um formato de canto.
Manoel de Barros

O vídeo mostra um fluxo de lava se lançando ao mar. O fluxo passa entre sólidas rochas que um dia já foram lavas. Hoje, essas rochas se acumulam, camadas sobre camadas, formando estratos, segmentos. Um fluxo não tem segmentos, tampouco estratos. Um fluxo se expressa em velocidade e lentidão, avanços e paradas. Um fluxo nunca vai para trás, para o passado. Um fluxo vai para a frente com o máximo de força que tiver. Tornar-se rocha não é o destino do fluxo-lava, tornar-se rocha é seu passado. A rocha sólida é um testemunho da lava que já foi: a rocha é a lava que já não é mais.
Os fluxos são sempre primeiros, eles têm "primazia", diria Manoel. Já se começa a redescobrir o que já sabia Lucrécio há séculos : o universo é um rio, um fluxo. E mesmo o mito já dizia: a Via Láctea, o “caminho leitoso”, é um fluxo de leite que jorrou dos seios amorosos de uma deusa.  
Mas ninguém pode viver nos fluxos, podemos desejar apenas nos aproximar o mais possível deles. Somente os vulcões expelem tais inícios, mas ao preço de se explodirem eles mesmos.
Deleuze  e Guattari  nos falam da existência dos fluxos e dos estratos, do liso e do estriado. Tudo é composto de fluxo e de estratos. Os estratos são mais visíveis , já os fluxos são imperceptíveis, embora também reais.
A linguagem possui seus estratos gramaticais, porém o fluxo do sentido constitui uma agramática poético-filosófica.
É danosa a estratificação da vida mental em id, ego e superego, pois nos leva a imaginar que o id, o inconsciente, é também um estrato, como o são o ego e o superego. O inconsciente não é um estrato contíguo ao estrato ego, ele é um fluxo sem contiguidade, dado que suas margens se fazem e desfazem. Gênero masculino e feminino, e outros, são estratos; porém fluxo é a sexualidade (nenhum dos estratos é dono dela).
Os estratos podem se opor dialeticamente, e lutarem pela supremacia sobre o outro. No entanto, todo fluxo é indivisível, nunca ele se opõe a ele mesmo. Os estratos constituem poder ( potestas), anseiam por  “empoderamentos”; porém de potência (potentia) são feitos os fluxos. Mas os fluxos não são evidentes, é preciso achá-los, por vezes inventá-los, se força tivermos para não nos deixarmos reduzir a um estrato.
Porém, é preciso cautela e cuidado nesses processos, advertem Deleuze e Guattari. Não por acaso, o anel de Espinosa trazia a inscrição latina : “caute”, cautela, cuidado . O anel era parte da mão que  pacientemente polia “as lentes”, os "instrumentos da visão". Segundo Deleuze e Guattari, é preciso manter algum estrato quando nos aproximamos dos fluxos. É preciso manter vivo o ego quando fazemos a viagem ao inconsciente. E de tal viagem o eu retornará outro: menos ego e mais devir-outro.
O melhor exemplo é a própria natureza que oferece, por intermédio da vida de um pequeno pássaro: o tordo. Este passarinho possui três espécies de canto. Os dois primeiros servem aos estratos biológicos para a conservação de sua vida própria. São  cantos que ele emite quando quer obter um território e conquistar uma fêmea. São cantos belos. Aparecem rivais de estratos diferentes, há então duelos, medições de força. Vencerá quem mais poder tiver. O território assim obtido é um estrato. Porém, esse passarinho emite ainda um terceiro misterioso canto. Ele o emite em dois momentos do dia: o vespertino e o matutino, o crepúsculo e a aurora. Ele o canta "atoamente",sozinho, sem disputas, sem rivais. Ele se põe então em certo galho elevado de sua árvore. O galho se torna o limite de seu território-estrato. O galho devém o estrato mais próximo de perigosos fluxos. Pois, cantando, o pássaro pode ser achado pela soturna coruja, que sempre cobiça predá-lo. Não obstante, entrega-se o pássaro ao misterioso e vivo canto.
Esse último estrato não pode ser vencido por voo físico realizado por tangíveis asas, vez que apenas o canto pode ir além dele, em um “voar fora da asa”. Não é um canto belo, é um canto sublime. Na estética, o belo é um afeto pela forma, pelo limite, ao passo que o sublime é um afetar-se por aquilo que não tem limites. É, por isso, um canto de limiares. Não é um canto entrecortado, segmentado, como o são os outros dois cantos. É um canto contínuo, sem intervalos, onde o pássaro parece alcançar os seus limites canoros. Ele canta para o fluxo luminoso do sol que, em retorno, o ilumina.










quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

a lua arta

Segundo o filósofo Heidegger, a essência da técnica é diminuir as distâncias. A técnica visa tornar perto o distante. A invenção do trem encurtou a distância entre as cidades. A invenção do avião diminuiu a distância entre os países. O telefone diminuiu a distância entre as pessoas. Heidegger não viu o surgimento da internet, mas certamente veria nesse fruto da técnica a mais evidente comprovação de suas teses.
Mas a distância vencida pela técnica é uma distância espacial separando lugares. A lógica da técnica é a da contiguidade espacial. Heidegger argumenta que nem todo vencer uma distância significa proximidade. A proximidade não é diminuição de distâncias, mas aproximação. Uma aproximação como exercício de proximidade nunca é totalmente vencer apenas uma distância física. Posso ir ao Louvre e ficar perto das mais emblemáticas obras de arte, porém em nada serei  afetado por elas se eu, antes, já não tiver me aproximado da arte, de sua questão e problema.É a proximidade com a liberdade de criação que me dará um gosto. Essa proximidade é uma aproximação que faço em relação à   minha própria sensibilidade. A diminuição das distâncias é feita pela técnica, ao passo que a proximidade somente pode ser feita por um ser que exista, que pense e que sinta.  A proximidade somente pode ser feita por nós mesmos.
Um telescópio diminui a distância entre a lua e nossos olhos, sem dúvida; porém um poema sobre a lua, ou mesmo uma música, pode nos fazer sentir mais vivamente o mistério da existência da lua, e dele nos colocar próximos, do que o mais potente telescópio é capaz de fazer. O poema não nos aproxima  da lua física , o poema  nos torna próximos de uma  lua inventada, mas que tanta realidade tem. O poema é o caminho através do qual avançamos para nos tornar  próximos do mistério da lua : para assim , quem sabe, nos tornarmos próximos do  mistério que somos nós mesmos para nós mesmos.E o bom é que vamos cantando...

 Essa proximidade assim nascida não é física. Ela é uma proximidade de sentido e afeto. A tecnologia diminui as distâncias, porém ela nada pode em termos de nos provocar a proximidade com as coisas inúteis e gratuitas, como é a lua que descobrimos existir também em nós : quanto mais próximos estamos dela, mais estamos de nós.








sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

mil sóis...

Só podemos destruir
sendo criadores.        
Nietzsche

É somente no buraco negro da consciência e da paixão subjetivas que
se descobrirão as partículas capturadas, sufocadas, transformadas, que é
preciso relançar para um amor vivo, não subjetivo, no qual cada um se
conecte com os espaços desconhecidos do outro.
Deleuze & Guattari


Dizem que o sol é “um incêndio acima de nossas cabeças”. Porém , todo incêndio começa porque, antes, havia a existência de algo prévio que não estava incendiado: a madeira da árvore, o capim do pasto , a folha de papel, o barbante da vela... Essas coisas somente podem ser incendiadas e pegar fogo porque foram criadas e têm existência própria antes de um fogo, por acidente ou não, vir consumir suas vidas. Porém, o sol nunca fora outra coisa do que o fogo, a explosão, a energia. O sol não é um planeta que pegou fogo. Ele é plenamente fogo, sempre o fora. O sol não é o fogo a destruir outra coisa, ele é a existência do fogo como energia pura a fluir de si mesma. O sol é a unidade da destruição e da criação. O sol nos mostra que destruir e criar são o mesmo, quando se trata da vida pura. Tudo o que tem vida é uma unidade assim.
O que chamamos de morte não é destruição da vida, mas o apagar-se de uma  vida enquanto destruição umbilicada à criação. A vida  destrói criando-se, cria-se destruindo. O sol destrói a si mesmo para criar a si mesmo como irradiação de si mesmo, e é assim que ele dá vida a tudo, e não apenas a si.
Tudo o que é assim não tem forma ou limite, e irradia-se para longe de si mesmo,  tornando-se outra coisa no mais distante, como o poeta existindo em seu poema. O sol irradiado  torna-se fruto, homem, oceano e até mesmo gelo. A criação não antecede a destruição, tampouco a destruição destrói tudo até ficar o nada.

  Além do nosso sol há as galáxias, que também são a unidade de destruição e criação. Talvez os buracos negros sejam a disjunção dessa unidade binária destruição-criação. Os buracos negros nada irradiam, eles apenas sugam, sorvem as energias. Tal como eles, assim são ,nos homens , os seus egos. Os que generosamente criam não têm um ego, mas um sol onde deveria haver um coração: “Para brilhar e ter luz própria é preciso ter caos dentro de si” (Nietzsche).





os canários


Poesia é voar fora da asa.
Manoel de Barros


Nossos cicerones são aves cantando.
Cartola



Os canários que nasceram e permanecem  em gaiolas vivem mais a cantar do que os canários que vieram ao mundo  livres e vivem a voar .
Os canários que nasceram  livres exercem sua liberdade em mais ações do que no mero cantar. Eles cantam também, mas igualmente voam, ciscam a terra, bicam os frutos, enamoram-se, constroem ninhos, criam seus entes e lhes ensinam a voar.
Os canários que nasceram no cativeiro apenas são livres no cantar. Nesse canto há uma nostalgia do que nunca viveram. É por isso que eles necessitam cantar o tempo inteiro. São poetas de gabinete, são filósofos apenas de livros.


                                                          (Flautista Antônio Rocha)

Verso de Manoel de Barros


   "Quanto mais um corpo é capaz, em comparação com outros, de agir simultaneamente sobre um número maior de coisas, tanto mais a sua mente é capaz, em comparação com outras, de perceber, simultaneamente, um número maior de coisas. E quanto mais as ações de um corpo dependem apenas dele próprio,  tanto mais sua mente é capaz de compreender distintamente".
Espinosa

sábado, 21 de janeiro de 2017

horizontar-se...

Eu tentei me horizontar às andorinhas.
Manoel de Barros

Há sempre andorinhas por onde eu vou.
São Francisco de Assis

O plano de imanência é o horizonte absoluto.
Deleuze & Guattari

Nada é mais profundo do que a superfície.
Kandinsky

O pensamento não é um poço para ser, como este, profundo. Ser pro-fundo é “ir  em direção do fundo”, cada vez mais fechado, abaixo do céu . O pensamento não é um poço, ele é um horizontar-se. Nunca dizemos que um horizonte é profundo, dizemos que tem profundidade, que é o quanto ele tem de espaço aberto  à frente, entre a terra e o céu.
Ter profundidade não é ser profundo. Na pintura, a profundidade de um quadro  expressa mais do que a terceira dimensão do espaço, ela expressa o horizonte aberto do tempo. Os horizontes têm o máximo de profundidade sem serem  profundos.
Os poços teriam profundidade se o seu profundo fosse tão profundo , mas tão profundo que , atravessando o interior da terra, veriam de perto o magma que sai dos vulcões.  Mas seria preciso ainda  vencer  a este Hades e ir além, atravessando os estratos que a história sedimentou, para alcançar  a superfície contrária àquela onde inicialmente  se escavou: aprofundando nosso ocidente chegaríamos ao oriente, aprofundando nossa noite alcançaríamos nossa manhã, e nosso profundo seria fonte nascendo , como fluxo, em um  chão nunca antes por nós pisado.
E, como toda fonte, correríamos para o horizonte  reencontrado com o máximo de confiança que tivéssemos , multiplicando-nos em todas as direções que inventássemos.






quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

manoel de barros e a (des)filosofia

(trecho de livro a sair)

Como definir Manoel de Barros? Essa pergunta suscita outra: por que querer defini-lo? Manoel de Barros é definível? Creio que a dificuldade de se classificar Manoel, pôr nele uma etiqueta, deve-se ao fato de que sua poesia, como poucas, pouquíssimas, é uma aproximação com as fontes[1]. O próprio Manoel é grato às suas fontes. A fonte é a origem que renova[2]. Ser grato às fontes é devir fonte. A fonte também é uma visão, uma visão fontana[3]. A visão fontana faz nascimento no ato de ver, pois “é pelo olho que o homem floresce”.[4] O mundo que os olhos da lagarta veem não é o mesmo que verão os olhos da borboleta: os mundos mudarão porque mudarão, antes, os olhos, diferentes olhos terão florescido.
Há estudos feitos no âmbito da teoria literária que tentam esquadrinhar a obra do poeta, buscando afinidades e filiações, simpatias e pertencimentos. Há razão nesses estudos, não há o que questionar. Porém, basta ler o poeta para perceber que nele há um estilo ainda não catalogado, ainda não visto, como passarinho cuja espécie carece ainda de nome. Há em Manoel uma verdez[5], uma não velhez : a “velhez não tem embrião”[6]. Para saber e experimentar essa não velhez basta lê-lo...Porém, há ainda aqueles que dizem ser Manoel uma fórmula, que há uma fórmula-Manoel , como se o poeta se repetisse. Reduzem sua poética a algumas ideias-imagens que se repetem. Com isso, parecem querer não achar motivo ou razão para perdurar, e renovar, tanto encantamento que muitos encontram em Manoel, sejam eruditos ou não, letrados ou gente simples, jovens, crianças ou idosos.
Contudo, já li não sei quantas vezes um mesmo poema do Manoel. Cada vez que o leio se produz em mim um empoemamento completamente diferente do empoemamento que tivera ao lê-lo anteriormente. É sobre este verbo que é preciso ter a atenção: o empoemar. A obra de Manoel é uma empoética. Não se lê Manoel sem empoemar-se. Mas o que significa empoemar-se? É possível definir esse afeto-metamorfose? O mesmo acontece quando se pergunta acerca do que significa o tempo, o infinito, o desejo, o inconsciente, o absoluto, o sentido...  Pode-se dar uma resposta que encerre o problema? Ou ainda: o que significa pensar? Quem se satisfaz com uma resposta que de-fina, dá fim, a essas questões?
Manoel traz uma questão ainda mais nova, que talvez sempre permaneça como a prova de que em seus versos há um “embrião”, desde que em nós também se ache uma verdez. A novidade manoelina não diz respeito à diferença sempre debatida entre a poesia e o poético, mas entre o poético e o empoético.
Heidegger dizia que não se pode introduzir à filosofia[7].Disciplinas como “Introdução à Filosofia”, segundo ele, afastam os não filósofos da filosofia, pois os leva a imaginar que a filosofia está apenas nos livros e sistemas que os filósofos escreveram, supondo que a filosofia se encontra alhures. Assim considerada, a filosofia se torna uma abstração ou mero exercício de erudição.  Não se pode introduzir à filosofia assim como não se pode introduzir à vida estando alguém já vivo. Somente se poderia introduzir à vida alguém ainda não nascido. Mas de que maneira alguém ainda não nascido poderia aprender algo, e ainda mais o que é viver!? Não se pode introduzir à vida estando alguém já vivo, o que se pode é despertar, pelo afeto, alguém à vida, intensificando nele o que já está vivo. Afetar não apenas à própria vida, mas à vida. Quando uma vida se compreende, apreende-se como questão: mais como pergunta do que como resposta.
Não se pode introduzir à filosofia porque a filosofia não está lá e a vida aqui; tampouco é a filosofia a “verdadeira vida” em contraposição à vida ilusória daqueles que a ignoram. A filosofia é a própria existência, é a vida mesma. A filosofia assim compreendida não é apenas sistema, doutrinas, conceitos. Ela também é poesia, no sentido de poiésis, produção. Talvez devêssemos chamar de “desfilosofia” um filosofar assim, manoelinamente. E por que não seria um filosofar também o empoemar-se? Um empoemar-se como um (auto)produzir-se.
Quando Manoel diz que "Poesia pode ser que seja fazer outro mundo" [8]  talvez a ênfase deva ser colocada no “fazer”, no produzir, e não no mundo enquanto produto ou coisa pronta, etiquetável, prestes a virar propriedade de um dono. Sempre haverá mundo para a poesia fazer, a poesia mais necessária é prática de fazer outros mundos: mundos políticos, psíquicos, oníricos, semióticos, desejantes, enfim, mundos por fazer, sempre múltiplos. É da invenção fazedora de mundos que o poeta deseja ser o dono, não do mundo: "quem inventa é dono daquilo que inventa, quem descreve não é dono daquilo que descreve"[9], diz o poeta.
Acreditamos que o empoemar-se não se pode ensinar tal como se ensinam fórmulas, receitas, cartilhas. Não podemos a ele ser “introduzidos” de forma teórica. Empoemar-se é mais do que mera leitura de versos. Há no empoemar-se uma clínica, uma política , um (des)filosofar. Não é todo poeta que enseja uma empoética. Não haver em um criador de versos uma empoética não o faz menos poeta. Mas quando em um poeta também vive uma empoética, ler seus versos é mais do que ler meros versos: talvez haja neles, em embrião, ideias filosóficas. Poetas assim são pensadores.



[1] Poema “Fontes”, Memórias inventadas - as infâncias de Manoel de Barros, p. 147.
[2] “Aprendimentos”, Memórias inventadas. - as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta, 2010.
[3] “Canção do ver”, Poemas rupestres, p. 11.
[4] “A volta (voz interior)”,Livro de pré-coisas, p. 68.
[5] “Resta sempre uma verdez primal em cada palavra”, verso do poema “Pedras aprendem silêncio nele”, Gramática expositiva do chão – poesia quase toda, p. 342.
[6] Encontros: Manoel de Barros, p.98.
[7] Heidegger, Introdução à filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2009, sobretudo o §2 da Introdução: “Introduzir significa pôr o filosofar em curso”.
[8] Encontros: Manoel de Barros, p. 68.
[9] Entrevista concedida ao jornalista José Castello e publicada no site Jornal de Poesia, em 30/05/2005.






sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

o gosto filosófico



(trecho de artigo publicado na Revista Trágica)

- O gosto como faculdade problemática
Segundo Deleuze e Guattari, os conceitos são criados, os personagens conceituais são inventados e o plano de imanência é traçado. Criar, inventar e traçar são atos: atos da potência. Potência de criação, de fabulação e de diagramaticalização.  Deleuze e Guattari nos lembram que tais atos são irredutíveis entre si [1]. Por isso, eles são precedidos por uma faculdade que os co-adapta. Esta faculdade de co-adaptação é a faculdade do gosto: “um problema, em ciência ou em filosofia, não consiste em responder a uma questão, mas em adaptar, co-adaptar, com um ‘gosto’ superior, como faculdade problemática, os elementos correspondentes em curso de determinação”[2].
A razão traça o plano, a imaginação inventa os personagens, o entendimento cria os conceitos. Mas antes do criar, do inventar e do traçar há um gostar indiscernível do viver a filosofia como questão não apenas teórica, o que implica também um modo de vida, um desejo. Nesse gostar como experimentação dos problemas, o conceito ainda está indeterminado, os personagens ainda restam no limbo, ao passo que o plano ainda permanece transparente. O “ainda” como modo intrínseco de uma duração enquanto devir-problema. É dessa faculdade indeterminada, anônima, que nasce o rigor dos conceitos, bem como os nomes dos personagens: “todo limite é ilusório, e toda determinação é negação, se não está numa relação imediata com o indeterminado”[3]. É esse gostar, inclusive, que nos protege do desgosto que a própria filosofia pode engendrar naqueles que gostam dela e a vivem, mais do que vivem dela. O gosto como expressão de uma salut.
Ciência, arte e filosofia enfrentam o caos. A primeira o enfrenta com um plano de referência, a segunda com um plano de composição, já a filosofia evoca um plano de imanência. Referência, composição e consistência: eis as armas, armas da afirmação, pois “só podemos destruir sendo criadores”, lembra-nos Nietzsche.  O caos não é ausência de determinação, mas velocidade com que as coisas, não importa quais, mal se esboçam e já morrem, mal saem do útero e já vão sumir no túmulo, desconhecendo o que é ficar de pé: “O que caracteriza o caos não é exatamente a ausência de determinação do que a velocidade infinita com a qual elas se esboçam e desaparecem”[4]. O caos mental, como flutuatio animi, é a passagem do útero ao túmulo dentro da mente e, não raro, a indistinção dos dois. Nem referência, nem consistência, tampouco composição, o caos é a inconsequência [5], e esta pode ser muito bem determinada.
Antes do criar, do inventar e do traçar há um gostar do qual aqueles atos são a consequência.  Espinosa, por exemplo, não define a filosofia como “philia”, mas como “emendatio do intelecto” e “salut”: emendatio (ou correção) do instrumento, o seu perseverante “polimento” ou salut, daí o aspecto “crítico e clínico” como gosto-potência que nos livra dos desgostos da potesta. Se é Nietzsche quem “fundou a geofilosofia” [6], é   Espinosa quem “erigiu o melhor plano de imanência” [7]. O erigiu a partir de uma potência anônima, incógnita, um gosto, uma salut como razão contingente.
Deleuze e Guattari advertem: “qual é a melhor maneira de seguir os grandes filósofos: repetir o que eles disseram, ou fazer o que eles fizeram, isto é, criar conceitos para problemas que mudam necessariamente?”[8]. Antes de tudo, é o gosto pelos problemas que mudam que dão sentido ao devir filosófico:

O que se estabelece no novo não é precisamente o novo, pois o próprio do novo , isto é, a diferença, é provocar no pensamento forças que não são as da recognição, nem hoje, nem amanhã, potências de um modelo totalmente distinto, numa terra incognita  nunca reconhecida , nem reconhecível.[9]





[1] DELEUZE, G; GUATTARI, F., op cit, p.101.
[2]  Ibidem, p. 172.

[3] Ibidem,p.156.

[4] Ibidem, p.59.

[5] Ibidem, p.153.

[6] Ibidem, p.133.

[7] Ibidem, p. 79.

[8] Ibidem, p.17.

[9] DELEUZE, G. Diferença e repetição, tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado, Rio de Janeiro, Graal,1988, p. 224. Terra Incognita : atribui-se  a Tácito  ( séc. I d.C.) a criação desse termo, embora ele esteja esboçado também em Lucrécio.A Terra Incognita expressava no pensamento romano a necessidade de existir uma terra inexplorada. Eles que foram grandes exploradores e conquistadores de terras, acreditavam, porém, que existia uma Terra Incognita, inexplorada, desconhecida. E isso não era para eles uma dúvida, mas uma certeza. As terras conhecidas podiam ser cercadas, povoadas, juridicizadas, medidas, reconhecidas...Mas a Terra Incognita somente podia ser imaginada, sentida, pensada, desejada...e nesse desejo/pensamento que as vislumbrava não podia haver cercas, limitações, receios, recognições, contratos, potesta, enfim, a Terra Incognita não podia ser medida ou conhecida com as lentes e réguas das terras conhecidas. A Terra Incognita, porém, não era um Eldorado, tal como cobiçaram os colonizadores, tampouco uma Terra Utópica, como sonharam os renascentistas. A Terra Incognita era uma heterotopia: um lugar (topos) diferente de todas as terras conhecidas. Não se a cobiçava por nela haver ouro. Mesmo porque o ouro , como todo objeto de recognição, pertence a terras exploradas.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

o que está por vir



A maior riqueza de um homem é sua incompletude.
                           Manoel de Barros

Viver é transformar-se dentro da   incompletude.
                      Paul Valéry.


- O tempo "por vir" não é o "porvir".
        “Porvir” é um verbo substantivado. Ele expressa , infinitivamente, o ato do que está por vir. Para achar o acontecimento que dá vida ao porvir, é preciso separar o que a gramática juntou, para assim vislumbrar o encontro dissimétrico entre o presente e o que há de vir, como por vir.A razão de ser do porvir se encontra em seu minadouro, que é onde ele nasce. O minadouro do porvir é o  agenciamento do verbo “vir” com a forma preposicionada “por”. O que está por vir não se encontra  em uma posição, em um lugar, em um "aqui", uma vez que ele já vive também no que antecede toda posição, todo "aqui" dado, como pré-posição não dada, mas por criar, por vir. O que está por vir antecede o mero vir . Quando não compreendemos que o chamado  "porvir"  nasce do que está por vir singularmente enquanto acontecimento, acabamos por confundi-lo com o futuro ou com o amanhã genérico, "acostumado" - diria Manoel. O porvir é a forma infinitiva do ínfimo por vir, pois é do ínfimo que todo infinitivo nasce, como um horizontar-se dele.
O por vir não é o futuro de daqui a 10 anos. Tampouco o por vir é  o futuro de daqui a um ano, ou um mês, ou um dia, ou um segundo....Pois anos, horas, dias, segundos... são medições do tempo cronológico. O por vir não é cronológico: nenhum calendário ou relógio o mostra ou mede. Ele não é o futuro como dimensão do tempo que vem depois do presente, assim como amanhã vem depois de hoje.
O por vir não é o amanhã.  Ele vem antes do amanhã, mas não é o hoje;  ele vem depois do hoje, porém não é o amanhã. Entre o  amanhã e o hoje, separando-os e fazendo-os existir, é nesse intervalo entre-tempos que está o por vir. Do amanhã se pode até mesmo fazer um museu com mirabolantes tecnologias. Porém, a tecnologia  não tem nenhum privilégio para nos mostrar o por vir. Não é na informática, é na invencionática que o por vir está.
 O por vir nunca é o presente. O por vir não vai começar daqui a um segundo ou um milésimo de segundo. O por vir não começa, ele também não termina. Quem gosta de apostar corrida para disputar com  o outro precisa de relógios que, do zero, deem o ponto de partida para a competição. É o tempo de chegada que determinará quem ganhou ou perdeu. Porém, o por vir não começa, pois ele nunca é um zero, um nada de si mesmo. Para experimentá-lo em si mesmo somente exercitando a gratuidade, a generosidade e a inocência: ele está mais para o tempo da brincadeira do que para o tempo da disputa.
       Estamos no dia 31 de dezembro. Já é quase meia-noite. Em breve, virá o ano novo. A vinda deste não anula um tempo por vir que está antes dele e de todos os anos, tenham o número que tenham.Quando o ano novo chega, encontra o que agora somos, mas não o nosso ser por vir que não se mede por anos.
O por vir não é apenas o vir. Daqui de onde estou  vejo o carro a vir, vindo. O carro por vir eu nunca o vejo, apenas o transvejo com olhos de descobrir.O carro por vir está antes do carro que está vindo, porém  ele nunca será um carro vindo, mas sempre por vir. Não obstante, ele está a caminho: ele está no horizonte aberto, e é nele, e não no carro vindo, que o meu desejo se transporta para vir até mim: para me fazer outro eu mesmo, aqui.
Pelo por vir não se espera. Ninguém espera pelo horizonte. Mas quem vê o horizonte já se instala nele e assim se orienta, horizontando-se. O por vir não é o futuro que virá , o por vir é o presente  se metamorfoseando em outra coisa que nunca antes fora presente. E isso no qual o presente se transforma o faz cessar de passar, pois ele conquista a potência de durar e vencer o sumidouro para onde vão todas as coisas que antes se gabavam de  eternas. O presente assim transfigurado não quer ir para o passado para virar lembrança, ele quer permanecer como experiência intensa do que não pode viver a memória: o vir do novo. O novo sempre  revém vindo outro.
O por vir não é antecedido por algo que não seja ele. Ele não é o efeito de uma causa. O por vir está sempre aí, já correndo, já durando, já sendo. O por vir é fonte dele mesmo. Ninguém pode viver na fonte, pode-se apenas viver o mais próximo possível dela. O mais próximo possível do por vir já é o por vir que se experimenta. O por vir está sempre chegando, nunca para de chegar, sempre outro, novo, ex-temporâneo.
O por vir  não está no que passou, muito menos  o por vir é o que passa. O tempo do por vir  é o que está por vir. Quando alguém deseja nos visitar deve fazer-se anunciar, antes,  por uma mensagem. Por exemplo, a carta do amigo anuncia sua visita. A carta vem antes do amigo: embora não seja sua presença, já a antecipa, de tal modo que já sorrimos fazendo sua leitura, já vendo o amigo. O por vir é a visita por vir. A mensagem que anuncia sua chegada , porém, não pode estar separada dele, pois o por vir não se separa dele mesmo Mas se o por vir não se anunciasse por algo diferente dele  não saberíamos que ele está por vir: ele que nunca chega precisa fazer sua mensagem chegar.
A mensagem que anuncia o por vir é uma só: a novidade. Não a novidade de uma embalagem nova de um produto antigo, tampouco a novidade da mera informação midiática. O por vir se anuncia por intermédio da novidade, da diferença. Assim como a carta do amigo somente é a carta do amigo quando está em nossas mãos , quando então a abrimos e a lemos; a novidade que expressa o por vir somente é novidade quando ela nos abre, nos desabrindo, diria Manoel. Experimentamos então que somos a própria mensagem por intermédio da qual o por vir se anuncia, desde que se abra em nós o que em nós é por vir. 
A mensagem do amigo não é propriamente a  tangível carta: a mensagem é a amizade que já está em mim, antes de a carta chegar, porém chegando também com ela. Não é apenas o amigo que está por vir: também está por vir o outro eu que o abraçará, no abraço por vir. O que está por vir não é o que no presente falta, o que está por vir é a reserva de um tempo outro que nunca deixa o que é novo faltar-se.O iminente que está sempre na iminência é a urgência mais urgente que se alcança sem pressa. Essa urgência em viver é  tanto nossa quanto somos dela, e dura enquanto durar nossa presença a ela.
       Muito já se disse que o presente é um “presente”, e que devemos ser gratos e alegres por receber essa dádiva. Mas não é uma urgência maior conhecer o produtor da dádiva, o que presenteia? E assim, quem sabe, contagiar-se  com a discreta alegria ainda mais viva que está no presentear sem esperar outro presente em troca.







segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

o super-herói

    (der Übermensch )


De tão encharcada de lágrimas,
o homem despiu-se da própria alma
como se fosse uma camisa ensopada
de suor noturno do pesadelo cruel.

Ele a tirou pela cabeça,
que quase ali se prendeu.
E a pôs no varal ,
exposta ao tempo, ao vento, ao temporal.

Sobre ela choveu,
depois fez sol.
Nem uma gota ficou de passado:
tremulava no vento como um lençol.

Não mais a alma por dentro o homem vestiu.
Ele a colocou por fora , cobrindo seu corpo.
Ele a amarrou no pescoço,
e foi brincar com as crianças de super-herói.