Manoel de Barros diz que aprendeu a
fazer “desaprendizagens” com o pintor Paul
Klee . O pintor ensinou ao poeta a
necessidade de "aprender a desaprender" . Assim fez Klee : embora ele desenhasse de forma precisa
e técnica, essa mesma precisão se tornou uma prisão para o novo que ele queria criar. Já estava no pintor a alma nova, porém
faltava um corpo para ela. No auge do sucesso e reconhecimento , Klee entrou em
crise, parou de pintar: ao invés de nascer, a alma nova corria risco de
abortar. Quando tudo parecia perdido, certo dia porém o pintor começa a desenhar com a mão esquerda,
brincativamente. Essa mão esquerda não
frequentou academias ou escolas, também nada sabia de cânones ou regras, como
sabia a mão direita. Nunca ficou vaidosa por receber elogios, tampouco segurou,
ostentando, prêmios e títulos, como se habituou a mão direita . Se a mão
direita adquirisse a capacidade de falar
e alguém lhe perguntasse qual a
opinião dela sobre a mão esquerda, com certeza ouviria: “ a mão esquerda é
vagabunda: e ainda quer tirar meu poder, subversiva!”. As duas mãos tinham a mesma idade biológica,
mas era a mão esquerda o corpo novo que a alma
nova exigia . O artista descobriu-se novamente criança nesta
mão: cada desenho era o desenhar de novo nascendo , fazendo-se como novidade, experiência e
descoberta. Ao desaprender o “acostumado” da mão
direita, Klee redescobriu a pintura e a
ele mesmo: reencontrou a alegria da criança cujo brincar e inventar é a coisa
mais séria e verdadeira. Mais do que pintar, o pintor inventava “natências”. Toda
gramática, não importa qual, dá poder à
mão direita ; porém a arte de se
reinventar só a pode desenhar um instrumento não domado: a mão esquerda . A mão direita se liga a uma metade do
cérebro apenas , enquanto a mão esquerda
se liga à outra metade do cérebro e ainda
ao coração inteiro que, assim como ela, também está do lado esquerdo.
Klee |
Mirá também ensinou ao poeta desaprendizagens |
Deleuze
lembra que “vagabundo” vem de “vaga”:
"vagabundo" é "aquele que vaga". “Vaga” também é “onda”:
“as vagas do oceano”. A “vaga” é modulação de um espaço liso, seja o oceano ou
o deserto ( as dunas também são vagas). O vagabundo é nômade-andarilho de espaços lisos, o oposto do sedentário de espaços estriados ( codificados). As vagas,
diz Manoel , são “formas em rascunho”. Assim são os desenhos de Klee e Miró ,
bem como a poesia de Manoel: formas em rascunho, vagas de um oceano múltiplo e
aberto ( o mesmo oceano que pensou Espinosa ).
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