O que se estabelece no novo não é precisamente o novo, pois o próprio do novo , isto é, a diferença, é provocar no pensamento forças que não são as da recognição, nem hoje, nem amanhã, potências de um modelo totalmente distinto, numa terra incognita nunca reconhecida , nem reconhecível.
Deleuze ( Diferença e Repetição)
Deleuze ( Diferença e Repetição)
O pensamento é o telescópio
de uma astronomia apaixonada.
Deleuze (As ilhas desertas)
Goethe
O olho vê,
a memória revê,
a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.
Manoel de Barros
Quem lê um poema é como se de súbito ouvisse gritarem do topo do mastro: "Terra à vista! Terra à vista!"
Mario Quintana
Tudo me é belo, hoje; pudesse assim ficar!
Para ver hoje assim, o Amor me deu lunetas.
O olho vê,
a memória revê,
a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.
Manoel de Barros
Mario Quintana
À época do apogeu de Roma, foi criada uma expressão muito singular, de um alcance quase que inesgotável. Essa expressão jamais poderia ter nascido entre os gregos, que pouco interesse tinham pelas coisas que não eram gregas.Como tudo que é singular e rico, é difícil definir essa ideia. Ela não é o Ser ou o Não-ser, a Forma ou a Matéria, a Essência ou a Existência. Todos esses termos já faziam parte da Gramática Filosófica herdada dos Gregos. Essa ideia inventada por eles não vem dessa gramática, pois ela expressa uma outra coisa: uma poética, uma poética filosófica.
A ideia em questão é : Terra Incognita. Atribui-se sua criação a Tácito ( séc. I dC), embora ela esteja esboçada também em Lucrécio.A Terra Incognita expressa no pensamento romano a necessidade de existir uma terra inexplorada. Eles que foram grandes exploradores e conquistadores de terras, acreditavam porém que existia uma Terra Incognita, inexplorada, desconhecida. E isso não era para eles uma dúvida, mas uma certeza. Não a certeza nascida de terras já conhecidas, como a terra da matemática e suas certezas exatas, mas uma certeza estranha, poética,quase uma crença, que os impelia a nunca aceitar o já explorado e conhecido.O principal efeito dessa crença:estimular a coragem para se aventurar.
As terras conhecidas podiam ser cercadas, sedentarizadas, codificadas, juridicizadas, medidas, reconhecidas...Mas a Terra Incognita somente podia ser imaginada,nomadizada,poetizada, sentida, pensada, desejada...e nesse desejo/pensamento que as vislumbrava não podia haver cercas, limitações, receios, recognições, contratos, potesta...Enfim, a Terra Incognita não podia ser medida ou conhecida com as lentes e réguas das terras conhecidas.
A Terra Incognita, porém, não era um Eldorado, tal como cobiçaram os colonizadores, tampouco uma terra utópica, como sonharam os renascentistas. A Terra Incognita era uma heterotopia: um lugar (topos) diferente de todas as terras conhecidas. Não se a cobiçava por nela haver ouro. Mesmo porque o ouro pertence a terras exploradas. E de ouro os romanos não necessitavam.
Mas eles necessitavam de outra coisa para se manterem vivos, despertos,livres, em expansão. Não se podia fazer mitologia da Terra Incognita, exatamente porque ninguém sabia o que havia nela, nunca ninguém nela esteve. E foi a busca pela Terra Incognita que fez dos romanos os maiores exploradores.
“Inventar aumenta o mundo”, dizia Manoel de Barros. A Terra Incognita era uma terra inventada, um horizonte nunca alcançado ou alcançável, mas cuja busca fazia aumentar os horizontes do mundo. Essa ideia depois ganhou uma versão matemática, a famosa “incógnita X”, e propiciou a invenção da física e da matemática modernas. A Terra Incógnita também era chamada de terra anônima: terra de ninguém, terra onde se entra com a condição de devirmos imperceptíveis, outro, ninguém. Ela é , porém, a terra de todo mundo.Terra Comum, Terra Natal dos que se desterritorializam na aventura de ir além de toda cerca, limite, forma,fronteira. Não é a bússola que encontra essa terra incógnita, dela não há mapas. “Não sou da informática, sou da invencionática”(Manoel de Barros). Ela é a terra inventada como mátria de toda invenção.
Talvez essa Terra Incógnita não esteja apenas fora, mas também dentro daqueles que são incógnitas. Incógnitas são a potência e o desejo. “Ninguém sabe o que pode um corpo”, já dizia o incognitus Espinosa.
Essa terra somente pode ser encontrada quando escapamos, fugimos das fronteiras, sobretudo a fronteira que separa o conceito da poesia. Essa Terra Incognita hoje tem o tamanho do universo, do infinitamente infinito: aquele que se abre fora e dentro de nós, e que talvez sejam um só, desde que não nos esqueçamos da principal lição dos romanos a esse respeito: a Terra Incognita permanecerá sempre incógnita. A Terra Incognita não é a terra que amanhã será conhecida, pois as terras conhecidas nascem de haver Terras Incognitas.
Quando Proust diz : "Mais importante do que viajar para conhecer paisagens novas, é conhecer de forma nova a mesma paisagem habitual”, o primeiro conhecer e o segundo são iguais apenas na palavra, no nome, pois eles não expressam o mesmo ato, a mesma questão. A Terra Incognita talvez só possa ser vista por uma visão fontana , como dizia Manoel de Barros, uma visão que não vê o já visto acostumado; ao contrário, a visão fontana é fonte do que vê, pois ela vê não o significado que as coisas têm, ela vê o sentido novo que as coisas podem ter.
E o mais interessante de tudo: assim como o explorador/navegante, de luneta na mão, após enfrentar tufões e calmarias, tendo antes vencido o medo de dragões e abismos, e assim não tendo desistido de achá-la, lá do alto do seu posto grita: “Terra à vista!”, não será a mesma coisa que expressa o poeta quando , em versos, grita: “Vida à vista!” ?
E o mais interessante de tudo: assim como o explorador/navegante, de luneta na mão, após enfrentar tufões e calmarias, tendo antes vencido o medo de dragões e abismos, e assim não tendo desistido de achá-la, lá do alto do seu posto grita: “Terra à vista!”, não será a mesma coisa que expressa o poeta quando , em versos, grita: “Vida à vista!” ?
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