domingo, 8 de março de 2015

exercícios de ser criança

Sei de todas as espurcícias do mundo,
mas do que gosto mesmo é de circo.
Manoel de Barros



Xandinho, o Alexandre Jr.,tinha 10 anos quando foi meu aluno em um pequeno  grupinho de estudos de filosofia.As aulas aconteciam na casa dele. A idéia das aulinhas de filosofia nasceram por convite feito a mim  por parte do pai do Xandinho, o Alexandre pai .
Agradeço ao Xandinho por eu ter descoberto que poderia ensinar filosofia brincando. Também aprendi naqueles encontros que podemos desenhar as ideias e conceitos filosóficos, desde que seja como forma em rascunho,como ensina Manoel de Barros.Em muitas daquelas aulas eu desenhava o que queria comunicar, e assim encontrava  um meio mais propício do que a mera fala ou a escrita.Mas todos os desenhos eram feitos para colorir,sobretudo com as cores da alma ( que mais cores têm quanto mais inocentes são, ao passo  que o preto ,o  branco  e o cinza  imperam nos desenhos  dos adultos...).
Uma das primeiras coisas que disse a Xandinho era acerca da origem do nome dele: “você sabia que ‘Alexandre’ significa ‘protetor da humanidade?’”. Ao ouvir isso, Xandinho olhou para si mesmo com  olhos diferentes, e cresceu por dentro.
 Esses encontros eram exercícios para ser criança,como dizia Manoel de Barros. Exercícios estes sobretudo para mim.Se as crianças aprendiam brincando, eu desaprendia o sério posado da razão pura ( o qual,aliás,nunca tive...). Desaprendi muito naqueles encontros, pelo que fui salvo: “é preciso desaprender oito horas por dia”, dizia Manoel de Barros. Naqueles encontros, eu “ia até à infância e voltava”, e aquele que ia não era o mesmo que voltava. E o que voltava vinha de lápis de cor na mão, e aprendia que a filosofia também pode ser desenhada com lápis de cor.
O cursinho era para durar 1 mês. Acabou durando 1 ano.Em mim, porém, ele nunca vai terminar, pois aprendi ali algo que não posso esquecer,sobretudo dando aulas para jovens e adultos.Se não posso mais desenhar os conceitos em papel,hoje os desenho em minha alma, ela que não tem contornos, e passo o desenho para  aqueles que me ouvem , para que estes também desenhem dentro de suas almas  um conteúdo que não pertence a ninguém ,para que assim fique mais do que na memória, fique na vida; cada um  deve desenhar o desenho também dentro de suas almas, com suas próprias mãos  , e a condição de o desenho ficar  é  que ele nunca deve deixar de ser “forma em rascunho”,forma construída também com o sonho e com o desejo.
Entre a penúltima aula com Xandinho e a última houve duas semanas de intervalo  por conta de feriadões. Aproveitando a ocasião, a família de Xandinho foi  viajar.Aconteceu algo na viagem que o Alexandre pai, ao retornar,  resolveu me contar sorrindo, pois ele insinuou que eu tinha algo a ver com o ocorrido.A família de Xandinho  aproveitou para ir a Londres, na companhia de outros parentes.Eles foram ver , entre outras coisas, a cerimônia  célebre na qual a rainha passa diante dos súditos, e todos devem se ajoelhar inclinando os olhos para o chão.Muitos brasileiros viajam milhares de quilômetros para se ajoelharem assim. E o fazem pagando caro e “por livre e espontânea vontade”.Eles usam sua liberdade para se tornarem servos.
Pois bem, estavam todos lá, o lugar estava repleto de ingleses e turistas. E  lá vinha a rainha da Inglaterra com sua pompa e ouro. À medida que ela se aproximava, um movimento uniforme se fazia: todos se inclinavam, olhos ao chão, como prova de submissão.Porém,quando a rainha da Inglaterra passou exatamente diante da família de Xandinho, todos se ajoelharam também, com exceção do menino.Xandinho ficou de pé.Tal fato chamou a atenção da rainha, pois àquele tipo de insubmissão ela não estava acostumada a ver. Então, os olhos do poder e os olhos da criança se cruzaram, e foi a rainha que desviou os olhos primeiro.A criança venceu. Quando a rainha passou, um dos adultos parentes de Xandinho  perguntou,um tanto constrangido, por qual razão ele não fez como todos e se ajoelhou diante do poder. E foi com um sorriso,um sorriso amigo, que o Alexandre pai me contou o que disse seu filho,o Xandinho: “eu não me ajoelho diante de quem é igual a mim”, disse o menino com firmeza.

O curso terminou sem exame final e sem prova,claro. Xandinho já está aprovado, para a vida.

















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