sábado, 26 de julho de 2014

o simples e o complexo

Muitos exaltam as linhas retas e  os pontos; outros idolatram as alturas ou  as profundidades. O homem racional, por exemplo, crê que os caminhos seguros são apenas os retos, dos quais se parte após um planejamento sem brecha para o acaso, e retilineamente a razão teoriza seu porto: a Verdade. Os místicos, por sua vez, amam as alturas, as ascensões, as elevações. Já os profundos vivem a mirar poços, abismos, que dizem existir dentro deles.
Todas essas imagens inspiraram doutrinas e visões do mundo científicas, religiosas ou artísticas. Contudo, o mais surpreendente é a ideia da dobra. Deleuze associa a dobra ao barroco. Não apenas ao barroco, como à própria vida. A vida é produtora de dobras. Não há no vivo nada que se assemelhe a uma linha reta.
As dobras são movimentos em duas direções: toda dobra implica algo, ao mesmo tempo que também desdobra alguma coisa. Em toda dobra algo está implicado, em toda dobra algo pode ser desdobrado.Implicar e desdobrar.O desdobrar também recebe outro nome: explicar. Aristóteles dizia que a finalidade da semente é se tornar uma árvore, e que a árvore já estaria dentro da semente, como forma final que a semente, enquanto potência, visaria atingir, para depois sumir, apagando-se. No mundo barroco, diferentemente,  a árvore está dobrada dentro da semente. Ao nascer, a árvore explica a semente, a desenvolve. Porém, na árvore que cresce a semente continua a existir, mas implicada, dobrada virtualmente, de tal modo que a explicação ou desdobra não é a persecução de um fim, pois toda explicação vai em duas direções: explicação e implicação.A árvore explica-se , desenvolve-se, mantendo dobrada em si a semente que lhe está implicada, envolvida.
Todas essas palavras (implicar, explicar) têm como raiz, raiz rizomática, o termo “pli”. “Pli” significa exatamente, ou anexatamente, “dobra”.Implicar é o movimento pelo qual a dobra constitui um “dentro”, um interior.  Não  um interior fechado, limitado por contornos rígidos.É um interior como forma em rascunho, diria Manoel de Barros. Ex-plicar é trazer para fora (“ex”) o que está implicado, o que está dobrado. Todo desdobrar é um explicar, um desenvolver.O feto se desenvolve desdobrando o que nele está implicado: ao se desdobrar, o feto explica o que nele está implicado e, dessa forma,  se explica.Tudo o que se  desdobra explica a si e aquilo que nele está envolvido, implicado.Mais do que mera informação que vai em linha reta, o código genético é uma dobra que, ao se desdobrar, cria um organismo, e neste mesmo organismo o código permanece implicado, dobrado.
O processo que vai da implicação à explicação se chama expressão.Toda expressão tem algo implicado nela e algo é desdobrado dela. Uma expressão não re-presenta ou re-apresenta algo que lhe esteja fora ou ausente, tal como a palavra “casa” que re-apresenta  a casa como seu objeto exterior, seu referente . Diferentemente, a expressão não representa, ela expressa, ela desdobra o que já está implicado nela. E o que está implicado nela é o sentido, é a ideia expressiva, a essência. O feto desdobra sua essência, ele a explica e assim se explica.
A vida não é representativa: ela é expressiva, ela é uma expressão. Explicar é desenvolver o que já trazemos implicado em nós.A semente explica ou desenvolve o que está implicado nela. E o que está implicado nela não é uma essência universal de árvore, mas a singularidade árvore, a essência singular de uma árvore que nasce a partir de uma diferença.O que é uma árvore? Uma expressão da vida. O que é um homem? Uma expressão da vida.O que está implicado no feto humano não é a ideia universal de homem, mas a singularidade homem, a novidade homem, o poema homem.Toda expressão, toda essência singular, traz e é o novo.
A expressão nos mostra que o dentro e o fora não são termos dicotômicos, tal como ensina a tradição filosófica. O fora é o dentro que se vai desdobrando e explicando, o dentro é o fora mesmo implicado em nós.O subjetivo é carregado de objetividade, a objetividade nada é se uma subjetividade não pode explicá-la. A ciência diz que o universo surgiu da explosão de  um ponto: este ponto que explodiu recebeu o nome de   “big-bang”. Contudo,  talvez o big-bang não tenha sido a explosão de um ponto (seguindo-se daí a diáspora do que antes foi uma unidade). Talvez o que se chama de big-bang tenha sido o desdobrar do que estava implicado. E se o infinito estava implicado, é infinito também o seu desdobrar.
Além disso, todo desdobrar/explicar tem uma carga de invenção: o que é explicado não é uma cópia do que está implicado.O feto não é uma cópia do código genético; uma aula não é uma cópia de um texto ( que ela, no entanto, desdobra e explica). Todo explicar, quando expressivo, é uma invenção de algo que está implicado, mas virtualmente. Toda explicação é uma diferenciação. Explicar não é tanto ensinar quanto é aprender: aprender com o que está implicado, e que nenhum explicar pode esgotar.O aprender vem antes do ensinar.
Tudo pode ser pensado assim, quando vemos e vivemos  as coisas não como representação, e sim como expressão.E tudo o que é expressão tem algo implicado que pode ser explicado, desde que o explicado esteja implicado naquele que explica.Por exemplo, pode-se falar representativamente da justiça, fazer da justiça uma representação que a lei representa. Mas enquanto expressão, a justiça é algo que está implicado naquele que a explica: a explica não exatamente fazendo leis, a explica em seus gestos, em suas palavras, em suas ações.Não existe a “Justiça em Si”, como pensava Platão.Existe a justiça implicada, envolvida, e que somente passa a existir se for explicada, desenvolvida, criada. Pois aquele que assim explica a justiça explica a si próprio, se inventa: existe como justo. O amor somente pode ser vivido como expressão se ele estiver implicado naquele que o explica e desenvolve. E se através da explicação do amor aquele que o explica também se explicar através do amor que está implicado nele, somente assim pode-se confiar que este ama.Só o amor está implicado na explicação que o desenvolve. O amor implicado e sua explicação constituem a essência do amor como expressão.  Toda explicação singulariza. Quando se tem de uma coisa apenas a representação, entre ela e aquele que a representa passa a existir então  como que um vazio que será preenchido por alguma coisa, por um clichê por exemplo, ou então esse vazio será dissimulado por comportamentos impotentes, pois neles não estará implicado aquilo que se quer viver.Quando vivemos algo como expressão, ao contrário, não o vivemos apenas em palavras, o vivemos como aquilo que nos explica, pois está implicado em nós e também em nossas ações.
As coisas que estão implicadas podem entrar em relação com outras coisas dobradas.Essa relação das coisas implicadas entre si, criando uma conexão ou rizoma, os medievais chamavam , em latim, de “complicatio”. Complicatio significa : dobrado junto.Ou ainda: complexo.Tudo o que está implicado em nós está complicado, dobrado junto, com o universo inteiro. Não se pode explicar complicando. Ao contrário, toda explicação é um desenvolvido de coisas implicadas que, por sua vez, estão complicadas com outras.Não há complicação que não possa ser explicada, desde que se encontre o que está implicado.E o deve estar primeiramente em nós, assim como o código da vida que está na vida do feto.
É desdobrando o complicado que se alcança o simples. Sim-plex: literalmente, "sem dobra", posto que foi desdobrado.O simples não se opõe ao complexo, o autêntico simples é o que se desdobra do complexo, ele é aquilo que resulta do explicar o complexo.Além disso, algo sem dobra não é exatamente algo reto. O simples permanece ligado sempre ao complexo, tal como o fio de Ariadne que , desdobrado, permanece sempre ligado à complicatio de seu novelo.E neste novelo estão implicadas todas as narrativas, estão implicadas todas as narrativas que salvam, que criam percurso e inauguram linhas de fuga.A linha reta, ao contrário, não tem novelo. Uma linha, dizem, é feita de pontos.Mas o ponto é o falso simples, um simples meramente matemático.No começo não está o simples: o simples somente surge   como o produto cujo agente o desdobra de uma complicatio, de algo complexo. Somente encontramos o simples após uma explicação, e não antes dela.Tampouco existe o complexo sem o simples, e o simples sem o complexo. E no meio de ambos estão a implicação e a explicação.
Singularizar é intensificar. Cada um explica o que lhe está implicado de acordo com a potência que tem.O que está implicado em mim está complicado com o que está implicado em tudo .O Todo está implicado em tudo, e é por isso que o Todo é complexo e se expressa em cada coisa simples. Uma explicação aumenta sua potência quanto mais ela se percebe como não sendo uma explicação exclusiva, definitiva. Toda explicação potente é uma forma em rascunho que explica uma potência que nunca é puramente formal.
Uma ideia, não importa qual, é uma expressão: ela implica algo e dá a possibilidade de ser explicada por aquele que a  vive.E aquele que a vive também explica a si mesmo naquilo que ele explica e vive.
Os estudiosos da vida nos dizem que aquilo que chamamos de “órgãos” são, na verdade, dobras. O cérebro, por exemplo, é dobra sobre dobra sobre dobra...O cérebro é todo dobrado sobre si mesmo.O cérebro é uma complicatio, mas simples é a ideia que faz pensar e ensina, educa.O pulmão também é uma dobra: dobra esta feita de dobras.Quando se desdobra fisicamente um pulmão, ele vira uma superfície do tamanho de uma quadra de tênis. Assim, no horizonte  de uma dobra não está a altura nem a profundidade,tampouco o ponto; no horizonte de uma dobra está uma superfície. Não o superficial, mas a superfície. A superfície não é o raso por oposição ao profundo, ela também não é o baixo por oposição ao alto das alturas.A superfície é a horizontalidade.No mito, a primeira divindade a surgir foi Gaia, a Terra. Esta era caracterizada pela superfície.A superfície é espaço de conexões.Não raro,  há alturas superficiais, bem como profundidades que são superficiais. Na origem da dobra não está a linha ou o ponto, está a superfície.Em nós, os afetos estão dobrados; quando os desdobramos, vem expressá-los a superfície do rosto.A onda do mar, por exemplo, também é uma dobra: se esticarmos uma onda descobrimos que ela nasce da superfície do mar.Os simples não são profundos, tampouco desejam ascender a píncaros. Os simples habitam as superfícies.Os simples habitam a Terra.A superfície é espaço de travessias.
Um livro quando vivo, quando faz viver,é uma dobra.Ele é dobra porque nele está implicado o que está dobrado junto com tudo. Ele é uma dobra cheia de dobras.Lê-lo é desdobrá-lo, é explicá-lo.Explicar o complexo é devir simples.  Explicamos um livro de acordo com a potência que temos. Mas o que está implicado no livro tem sua própria potência, que pode sempre aumentar a nossa, desde que desejemos devir simples porque em nós está implicado um sentido , uma questão.Ler um livro  é desdobrar o que nele está implicado, e o que está implicado nele está implicado em nós, pois não se trata de letras, mas de ideias, de ideias expressivas.Livros assim têm uma potência de desdobramento infinita, pois o infinito está implicado neles. E o infinito não começa e nem termina, o infinito possui apenas meio. Tais livros não têm exatamente origem, eles têm horizonte: é deste que eles nasceram.Lê-los é horizontar-se.

 A Ética, de Espinosa; O que é a filosofia? , de Deleuze e Guattari; O livro de pré-coisas, O livro sobre nada e O livro das ignorãças, de Manoel de Barros; Gilles Deleuze: a grande aventura do pensamento, de Cláudio Ulpiano; Moby-Dick, de Melville...São livros-dobra : neles está implicada a mesma potência que está implicada em cada coisa que vive, e é em nossa alma que essa potência se desdobra e se explica, nos explicando, nos singularizando.








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