terça-feira, 31 de maio de 2016

poesia é celestar as coisas do chão

“Poesia é celestar as coisas do chão”.
           Manoel de Barros

 Às vezes, há coisas que desejamos expressar que não cabem de forma exata no tamanho limitado de uma palavra já dita ou escrita. É preciso, então, inventar uma palavra nova para ser o verbo de um sentido que pré-existe a gramáticas e línguas.Para o poeta,  antes da palavra vem uma visão, uma intuição, um tocar com os olhos uma realidade ainda não pronta, não "mentada". E os olhos que tocam tal realidade também são por ela tocados.
Quando o recém-nascido abre pela primeira vez seus olhos também nascidos, ele não vê objetos ou coisas das quais ela saiba nome, importância, objetividades. De nada ele tem memória ou recordação. Ele também não tem expectativas ou pressuposições, tampouco sabe o que é sombra ou escuridão. Ele não tem opinião ou vaidades, nem julga as coisas de acordo com um Modelo de Verdade.Não há para ele um já visto, dado que ainda não foi inaugurado o seu ato de ver. Na interior da placenta a matéria orgânica lhe plasmou dois olhos. Mas os olhos não são, eles sozinhos, o ato de ver. Os olhos não são o olhar. Para nascer o olhar não basta que as pálpebras descerrem os olhos físicos, pois o olhar vem de fora do olho, ele vem da luz cósmica que, penetrando os olhos, abrem os olhos da alma também, que somente  então desperta :abrindo seus olhos e espírito, o recém-nascido vê a luz do mundo, o mundo sob a forma de luz. E essa primeira luz que entrará em seu espírito comporá o enredo de seu primeiro sonho, na noite de paz que ainda não conhece o medo. Mesmo quando os olhos crescerem e forem do adulto já sem sonhos, reencontrará tais olhos o seu nascer esquecido, quando nas coisas que vê agora souber ver a luz do mundo, que apenas são capazes de ver olhos recém-nascidos.
A luz do mundo não é o mero resultado da soma das lâmpadas acesas pela eletricidade engendrada pelo engenho humano. Ela também não é o produto da soma da luz queimante de todos os sois e estrelas. Pois a luz do mundo também é feita da luz ´da primeira ideia que vicejou na mente nua da criança. A luz do mundo se converte, dentro da mente infante que a vê, em sua primeira ideia:  ideia luminosa que lança o espírito virgem para fora, para assim explorar o mundo Por isso,  os próprios olhos que a veem fazem parte da luz do mundo. E permanece generoso, e sem medo de todos os escuros,  quem mantém sempre acesa em seus olhos essa luz. É essa luz que inaugura o ver. E é ela que reinaugura o ver para quem a sabe ver como luz poética que ilumina as coisas não apenas por fora, mas principalmente por dentro.
 No verso citado, primeiro o poeta viu, com  olhos renascidos, uma ideia a lhe nascer: a ideia do “celestar”. Depois ele buscou uma palavra para ser o que ele viu, para despertar nos outros, quando lida, o ver novo que ele viu. O ver se torna novo quando vê o que nunca viu, tal como os olhos do recém-nascido que se abriu pela primeira vez.
O que é celestar? Antes de tudo, celestar é um verbo. Celestar é , literalmente, "tornar celeste, céu". Celestar é um verbo infinitivo que expressa o infinito. Sartre dizia que “o nada nadifica”. O poeta , em sua inocência de recém-nascido, afirma que a poesia  pode celestar. O sujeito desse verbo é o infinito, não é a pessoa do poeta. A poesia é fala que diz esse verbo, e ensina que tudo pode ser matéria para  sua conjugação: até mesmo as coisas do chão, para assim ver, quem sabe,  "um chão de estrelas".
 O que são as coisas do chão? Tudo o que tem peso, tudo o que é tangível. Mas também as rotinas, os haveres, as percepções cotidianas e tudo aquilo que cremos ser como é e não poder ser diferente.Celestar é ver diferente o que não se acreditava poder ver diferente.
 Celestar as coisas do chão também é desfazer a oposição entre sagrado e profano, não em proveito do sagrado, reduzindo o profano a ele, mas ver o diminuto com olhos de amplidão (sub specie aeternitatis, diria Espinosa). O celeste não precisa ser celestado, pois ele já é celeste; o que precisa ser celestado é o chão. Orações sobem ao celeste, mas é nos olhos do poeta que elas descem para transfigurar o mundo , celestando-o. O chão celestado se torna princípio de voo, de múltiplos voos: “ no achamento do chão, diz o poeta, também foram encontrados as origens do voo”.

Vermeer celestou , com tintas, o simples ato da leiteira, de tal modo que o leite que verte da jarra tem o  branco da via láctea, e o pão  servido na modesta mesa nada deve ao sublime pão dos anjos: através dos vidros translúcidos da janela, entra a luz do mundo que revela, em sua eternidade, o singular acontecimento.

( (Vermeer, A Leiteira, óleo sobre tela, 1657-1658, Rijksmuseum)







(Exposição sobre a obra do poeta realizada no Colégio Santo Inácio, enviado gentilmente por Nilcea)



terça-feira, 24 de maio de 2016

manoel de barros: a estética da ordinariedade

No "Livro de pré-coisas" , na prosa poética intitulada "Agroval", Manoel de Barros descreve um acontecimento ordinário do pantanal. “Ordinário”, aqui, significa a mesma coisa que comum ou regular. À ideia de “ordinário” costumamos opor a noção de “extraordinário”. Vale a pena lembrar a origem matemática destes termos. Na matemática, os “pontos ordinários” de um triângulo são os inumeráveis e indistintos pontos que ocupam cada um dos lados da figura, ao passo que seus três “pontos extraordinários”, ou singulares, localizam-se em cada ângulo do triângulo. Em uma reta, por sua vez, os pontos extraordinários são dois: aqueles que ocupam os extremos da linha.
Todavia, a diferença entre ordinário e extraordinário mostra toda a sua riqueza quando examinamos o círculo. Aparentemente, tal figura geométrica é destituída de pontos extraordinários ou singulares. Mais do que uma linha reta, geralmente costuma-se afirmar que nossa vida é um círculo: o círculo de nossa vida. Então, estaria o círculo de nossa existência destituído de momentos singulares? Estaria nossa vida refém do ordinário?
Mas o círculo guarda um segredo, tanto na matemática como na vida: qualquer ponto ordinário seu pode metamorfosear-se em ponto extraordinário, se por ele passar uma tangente. No encontro da tangente com o círculo, ambos dividirão o mesmo ponto, abrindo assim o círculo a uma força que vem de fora de seus limites e contornos. Quando o ordinário se converte em extraordinário, acontece o deslimite - renovando-se a vida.
Assim, entre o ordinário e o extraordinário não existe uma diferença intransponível: é no seio do ordinário que o extraordinário acontece. “Cada coisa ordinária é um elemento de estima”, afirma o poeta. Pois, complementa, “é no ínfimo que eu vejo a exuberância”. Em "O Guardador de águas", ele revela ainda: “No achamento do chão também foram descobertas as origens do voo.” É no ordinário do chão que o extraordinário, como voo, é “achado”. Enfim, “o chão é um ensino”.

"O que eu descubro ao fim da minha Estética da Ordinariedade , afirma o poeta,é que eu gostaria de redimir as pobres coisas do chão".

(trecho do livro)






sábado, 14 de maio de 2016

a rua e a praça

 O andarilho abastece de pernas as distâncias.
Manoel de Barros

Ir, indo.
Caetano

Os gregos inventaram a praça como espaço de poder. A praça era o plano horizontal das relações políticas, distinto do plano vertical dos Templos e da clausura dos Palácios. A praça era chamada de ágora , o coração da pólis. O termo "ágora"  provém de “agon”, raiz presente também em “agonia”. Uma alma agoniada é aquela na qual quereres diferentes ou pensamentos distintos lutam para a dominarem. “Agon” significa “disputa”. A praça, a ágora, era o lugar onde aconteciam disputas, lutas, medições de forças. Mas a arma de tais disputas não era a faca ou a lança, e sim outra arma. Arma sutil, eminentemente simbólica, mas que podia ser mais forte do que Aquiles ou ir mais longe do que a flecha. Essa arma era a palavra. Contudo, a palavra dita na ágora era palavra proferida individualmente: não raro tal palavra servia apenas a quem a enunciava  ( ou então ao círculo dos que professavam, ou fingiam professar, o mesmo credo, a mesma posição) . Por isso,   quem tinha dotes retóricos saia-se vencedor nos embates dialéticos, mesmo que por de trás das palavras convincentes não existissem ideias consistentes. Muitos se valiam da retórica para esconderam não apenas interesses escusos, como também a carência de ideias.
Os gregos inventaram a praça como espaço político, mas eles não inventaram as ruas. As ruas foram invenção dos romanos. As praças são lugares de parada, são espaços centrípetos. As ruas, ao contrário, são espaços de circulação , de deambulação e mesmo de linhas de fuga a  inventar. A praça possibilitou o surgimento do filósofo acadêmico, porém a mesma praça tornou-se oportunidade lucrativa para  espertos sofistas, de tal modo que sempre foi difícil separar aquele destes. A rua, diferentemente, fez nascer o andarilho, o cosmopolita, o desterritorializado, o itinerante: o filósofo-cometa, o pensador-artista liberto de  academias ou escolas. 
Sob o Império Romano, entretanto,   as ruas eram  vias  limitadas ligando  as cidades que o Império dominava . Com o fim do Império, as ruas se tornaram chão  dos peregrinos. Entre estes havia  aqueles que, como São Francisco, iam de  pés descalços  em busca da rua que levasse à invisível Pólis Celeste.
        Com o fim do poder imperial, muitas das  ruas por tal poder construídas, não obstante estarem inteiras,  findavam agora em  cidades em ruínas : as mesmas cidades   que ,outrora ,gabavam-se eternas. Uma cidade desaparece por meio de guerras ou catástrofes. Mas uma rua somente desaparece se o mato ou a floresta a fizerem retornar à natureza de onde saíra.
Com o crescimento da vida urbana, a rua deixou de ser mera coadjuvante da praça. A rua fez passar para dentro da cidade a experiência que outrora somente era vivida por aqueles que, saindo dos muros da cidade, cruzavam territórios ainda desertos. A praça tem limites. Mas as ruas não têm limites, pois uma se conecta com outra, às vezes se atravessam, rizomas que são.

 A Revolução Francesa se inspirou no modelo grego da ágora. Contudo, o século XIX, sob a inspiração de anarquistas e socialistas, tal século descobriu a rua como espaço político. A política que vem da rua é diferente daquela que é feita  na praça. Em Brasília, por exemplo, fala-se da "Praça dos Três Poderes". Mas é na rua que vive a potência inumerável. Na praça, a palavra ainda está refém da retórica individualizada, ao passo que a rua tem outra fala, às vezes anônima, mas altamente singularizada, pois por ela se expressam agentes coletivos de enunciação.
 O espaço político da rua é um espaço de travessia, não para chegar  ao Palácio , tampouco ao Templo;  pois a rua descobre o deus dos caminhos, bem como a anarquia coroada, multifacetada,  da multitudo em movimento. Enquanto espaço político, a rua  tem vida própria, libertando-se até mesmo  dos lugares aos quais ela leva, de tal modo que ela devém elo que liga o povo a ele mesmo, não exatamente ao seu passado, mas à sua condição ativa de povo por vir

Eu amo as ruas.
João do Rio


quarta-feira, 4 de maio de 2016

o brinquedo

O tempo não é um velho,
mas uma criança:
dentre seus vários brinquedos,
o sempre novo é a esperança.



Pondo no rosto uma expressão séria,
o menino levantou um dos braços, espalmou a mão e ordenou:
"Pare tempo!”   
Como o tempo não parou,
o garoto saiu correndo, 
o ultrapassou,
e, sorrindo,
deu uma careta pro tempo, dizendo:
"você não me pega, 
quando crescer vou ser ser poeta!"            







quarta-feira, 27 de abril de 2016

manoel de barros: a empoética terapêutica




(trecho do livro)

Podemos dizer que a poética de Manoel de Barros é uma original “empoética” sem regras ou cânones , uma vez que “empoemar” é um verbo que toda palavra conjuga quando perde seu limite utilitário (...).“Empoemando”, a palavra adquire a potência de expressar. Através desta potência, dá-se “um inauguramento de falas” que “insana”o significado habitual , gramatical e ordinário. Mas essa “insanidade”, ou agramaticalidade, produz uma verdadeira saúde : a de uma linguagem que redescobre a natureza extraordinária, singular, do sentido. Graças a essa poiésis da agramaticalidade,a linguagem é redescoberta como fonte de inauguramento de sentidos: “pelos meus textos sou mudado mais do que pelo meu existir”, revela-nos o poeta.
Empoemar as palavras é subverter os clichês e as representações que as fazem “acostumadas”. Esta empoética não possui regra de fabricação, a não ser o retirar das coisas as suas próprias regras: errar o idioma, fazer agramática.O “errar o idioma” não se faz por uma fala pessoal que se equivoca nas regras, mas por intermédio de uma “fala coletiva” que diz um sentido que foge a toda regra, que leva a própria regra a variar.
Empoemar a palavra é torná-la despalavra, verbo-substantivo onde se pode enxergar “o feto dos nomes”. Empoemar é um verbo que toda palavra pode conjugar desde que “abra seu roupão para o poeta”, e o deixe sê-la.
A essência da poética de Manoel de Barros, sua empoética terapêutica, consiste em produzir uma didática da invenção. Esta nos ensina que não apenas o poema, mas a própria Vida somente se explica como um “milagre estético”:

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o voo de um pássaro
botando ponto no final da frase.

("O menino que carregava água na peneira", livro: Exercícios de ser criança)


( Ternura, choro de K-Ximbinho, por Conjunto Época de Ouro)




domingo, 24 de abril de 2016

manoel de barros: "o andarilho não precisa do fim para chegar"

"Poeta:
sujeito com mania de comparecer
aos próprios desencontros."

Manoel de Barros




Deixe-me ir, preciso andar...
Se alguém por mim perguntar,
diga que só vou voltar
depois que me encontrar.

Cartola


A linha de fuga é produção de uma desterritorialização
que se reterritorializa em um novo território  que não lhe pré-existe.

Deleuze & Guattari



O andarilho

“O andarilho sabe tudo sobre o nada" ( 1997, p. 47). Este nada é o dos nadifúndios .Ele anda "atoamente" , pois “vagabundear é virtude atuante para ele” ( 1997, p. 47). “Vagabundear” provém de “vaga”, “onda”. O vagar das ondas. Edmond Husserl, em seu livro Origem da Geometria, afirma existir uma proto-geometria cujo objeto de estudo são as “essências vagas”, também chamadas de “essências anexatas”. Não se deve confundir o anexato com o inexato. O anexato é inexato por essência, e não por acidente. Ele não é, portanto, uma cópia imperfeita do Exato. O anexato possui uma forma, mas é uma forma "vaga", e “vaga” é o nome que também se dá ao ritmo do mar, enquanto fluxo. A vaga expressa um ritmo, mais do que um ir em linha reta. O anexato é, como diz Manoel de Barros, uma "forma em rascunho".A forma de tudo aquilo que é anexato constitui uma passagem onde o que lhe está dentro lhe desborda, posto que em intensa variação.Enquanto a forma precária do inexato tende a se apagar, a forma em metamorfose do anexato não pára de se reinventar.
Os andarilhos não são exatamente os que andam em estradas já prontas, eles não são peregrinos ou meramente viajantes. Os andarilhos são os que inventam caminhos, sobretudo os caminhos que inauguram sentidos para a linguagem: sinto que “a estrada bota sentido em mim" ( 2010b, p. 59); o sentido está no meio da estrada, e não no seu começo ou fim.  E é talvez por isso que “o andarilho não precisa do fim para chegar”,(1996 p. 71).Os andarilhos “carregam a liberdade deles nos passos que não têm onde parar” ( 2010b, p. 168): “no fundo os andarilhos só estão apalpando a liberdade. O caminho deserto deles é viver debaixo do chapéu” (2010b, p. 124).O “caminho deserto” é um “espaço liso” no qual se produz uma linha de fuga (DELEUZE E GUATTARI, 1980).Os andarilhos não são retirantes ou imigrantes, eles são itinerantes: eles inventam itinerários.O andarilho exerce a "pré-ciência da natureza de Deus". A "pré-ciência" é conhecimento das "pré-coisas", é conhecimento daquilo que é forma em rascunho.



- Obras de Manoel de Barros consultadas:

Compêndio para uso dos pássaros. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1961.
Gramática expositiva do chão. Rio de Janeiro: Ed. Tordos, 1969.
Arranjos para assobio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
O guardador de águas. São Paulo: Art Editora, 1989.
Gramática expositiva do chão — poesia quase toda. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992 ( segunda edição).
Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1996 .
Livro de pré-coisas. Rio de Janeiro: Record, 1997a.
O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 1997b .
Retrato do artista quando coisa. Rio de Janeiro: Record, 1998.
Exercícios de ser criança. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999.
Ensaios fotográficos. Rio de Janeiro: Record, 2000.
Memórias inventadas – a infância. São Paulo: Editora Planeta, 2003.
Concerto a céu aberto para solos de ave. Rio de Janeiro: Record, 2004.
Cantigas por um passarinho à toa. Rio de Janeiro: Record, 2005.
Memórias inventadas – a segunda infância. São Paulo: Editora Planeta, 2006.
Poemas rupestres. Rio de Janeiro: Record, 2007.
Encontros: Manoel de Barros . Rio de Janeiro, Azougue, 2010a (Org. Adalberto Müller).
Memórias inventadas - as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta, 2010b.
Menino do mato.São Paulo : Leya, 2010c.
Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010d.
Escritos em verbal de ave. São Paulo : Leya, 2011.

Outras referências:

ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Pioneira, 2000, 13ª edição.

BARBOSA, Luiz Henrique. Palavras do chão: um olhar sobre a linguagem adâmica  em Manoel de Barros. Belo Horizonte: Fumec/Annablume, 2003.

CAVALCANTI,Ana Símbolo e alegoria – a gênese da concepção de linguagem em Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2005

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka - pour une littérature mineure. Paris:
Minuit, 1975.

_____________. Mille plateaux. Paris: Minuit, 1980.

_____________. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34,1992.

LISPECTOR, Clarice.A Descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 1984.

PESSOA, Fernando. O eu profundo e os outros eus.Rio de Janeiro: Nova Fronteira,2006.

RANGEL, Pedro Paulo. Manoel de Barros por Pedro Paulo Rangel.Coleção Poesia Falada, vol. 08.CD.Rio de Janeiro: Luz da Cidade, 2001.

SOUZA, Elton Luiz Leite de. Manoel de Barros: a poética do deslimite. Rio de Janeiro: 7letras/FAPERJ, 2010.


Francis Bacon Study for a Portrait of Van Gogh II, 1957













O andarilho abastece de pernas as distâncias
Manoel de Barros

sábado, 23 de abril de 2016

para além do preto e do branco...

Que pobreza, meu deus:
reduziram tudo ao preto e branco....
Mas há mais de branco neste preto
e de preto neste branco
do que imaginam aqueles que reduziram tudo ao preto-branco.

As cores ficam para depois, dizem eles.
Para quando exatamente?
Para depois que o preto destruir o branco,
ou o branco ao preto.
Mas terá de ser uma destruição completa,
dizem eles,
sem deixar resíduo do outro,
sem deixar memória, lembrança , rastro...

Assim, quando não houver mais branco para o preto odiar,
e preto para o branco,
somente assim o ódio se extinguirá
e dará vez à Verdade toda branca , se o branco ganhar;
ou toda preta, se o preto vencer.

Enfim, o Paraíso monocolor? Não...
Pois ficará a Verdade do Branco à espreita de divergências pretas,
ou a Verdade do Preto à espreita de dissensões brancas.
 E o branco justificará a impossibilidade da cor em razão do perigo do preto;
e o preto dirá o mesmo....
De tal modo que um precisa do outro ,
como o reflexo precisa do espelho.

 Mas a despeito deste preto-branco
pelo poder incolor,
a vida  reinventa-se múltipla,
mesmo na dor,
e em cor resiste na mão e na vida
dos que estão na margem.











sexta-feira, 22 de abril de 2016

manoel de barros e as "formas em rascunho"








Se  a gente não der o amor,
ele apodrece em nós.

 ***     ***

A maior riqueza de um homem é sua incompletude.

***   ***  
   
Os raminhos com que arrumo
as escoras do meu ninho
são mais firmes do que as paredes
dos grandes prédios do mundo.

     ***  ***

O menino sentenciou:
se o Nada desaparecer a poesia acaba.
E se internou na própria casca ao jeito que o
jabuti se interna.

                                                                                                                                              ***         ***            
                                                                               Não sou da informática:
sou da invencionática.

Manoel de Barros

                                                   

Segundo o poeta Manoel de Barros, somos “formas em rascunho”.Somente quem está pronto se assume assim, como “forma em rascunho" de si mesmo. Pronto não como o que está acabado e não muda mais,  mas pronto como aquilo cujo essência é o produzir e o autoproduzir-se,o autoinventar-se.Se o viver é processo, somente como forma em rascunho estaremos na vida não como a pedra está no rio, ficando imóvel enquanto ela, a vida,  passa. Uma longa tradição nos inculcou que todo rascunhar existe em razão de uma  forma pronta : o “Modelo”, e que , este sim, dá a ver o que de fato somos. Inclusive, esta forma pronta precederia ao rascunho, como a árvore ao grão, como o adulto à criança. Mas só como forma em rascunho aprenderemos a não opor mais  a verdade ao erro, o ensinar ao aprender, a forma ao processo, o modelo à invenção.A forma em rascunho refaz seus contornos em razão de uma potência que lhe é imanente, mas que não lhe é um centro, posto que é abertura.Tudo é forma em rascunho para quem aprende a  viver as coisas de dentro, como processo e metamorfose: o amor, a arte, o pensar, o corpo, o desejo, o cosmos inteiro...tudo é forma em rascunho que de dentro se vive e se afirma.



segunda-feira, 11 de abril de 2016

fiar junto

Pensamos em novelo.
Maria Gabriela Llansol

“Con-fiar”: fiar junto. Fiar é tecer.Fiar não é traçar linhas retas no espaço, fiar é inventar linhas de fuga que dão sentido ao tempo. Ariadne fiava o fio que vencia o labirinto onde o monstro morava, fio da sobrevivência, pois esse fio toma a forma do labirinto sem se perder nele, posto que  é maior do que ele.O fio de Ariadne nasce de um novelo, não nasce de régua e compasso.
Diz a exata ciência que as linhas retas são a menor distância entre dois pontos imóveis. Mas o fio que que tece narrativas alcança os mais distantes pontos e os conecta, os aproxima, para assim criar elos, ampliando-nos até eles, mesmo que eles estejam em espaços que ainda não existem: espaços desejantes de invenção e utopias.
Etimologicamente, novelo é: novo elo. Traçamos fios juntos para criar novos elos.Essa é a razão de ser do novelo: não acúmulo de linha, mas manancial de novos elos, novos agenciamentos. Mesmo um objeto pode ser um novelo, um novo elo, desde que nos coloquemos como agentes produtores dos fios , fios de sentido, que nascem deles.Um objeto não é apenas uma coisa que se usa, ele pode ser um agente de novos elos.
Arthur Bispo do Rosário viu-se preso no labirinto de seus delírios. Porém,o fio da arte o fez achar uma linha de fuga : em cada lençol , em cada roupa, em cada coberta ou casaco que lhe davam no incomunicável quarto do asilo , ele soube achar nessas coisas o novelo ainda ali vivo; na coisa pronta ele soube descobrir o processo que as fez nascer.Não havia mais camisa ou lençol, mas um novo elo para ele se achar no mundo, achando-se em si mesmo. Ele viu o novelo que  ainda vivia nas coisas  como memória, imaginação, potência, invenção, virtualidade, enfim, vida...Sua bordadura poética fez viver de novo o fio que se fiou nas coisas, para assim fazer viver no finito o infinito novelo de qual todas as coisas saíram. E quem  a isso vê, produz em si mesmo uma clínica, uma saúde.Dos fios desfiados de camisas e lençóis já quase em farrapos, Arthur soube com eles fiar as bordaduras de uma existência nova. Dos fios de um uniforme que vestia o louco, ele desfez a forma, libertou o fluxo dos fios, e com estes  inventou a capa multicolorida de um rei.

                                            (Arthur Bispo do Rosário)

São os novos elos que nos possibilitam criar linhas de fuga que vencem os labirintos.Mas não se fia esse fio sem o confiar nos elos, não se fia esse fio sem o agenciamento que todo con-fiar é.
Toda ideia é um fio que se fia junto, e o novelo do qual ela nasce é o pensar. Pois é isto o pensar: ele nada tem a ver com um ponto-ego, dado que  ele é prática de fazer novos-elos, de os criar.
O   amigo  fia a ideia  da amizade ao crer no amigo; o amante  fia o amor para amar a quem ele se une em elo. É a justiça, a ideia da justiça, que dá ao juiz o poder que ele tem, não sua toga ou paramentos: a sentença  somente é justa se for  um fio que se puxa do novelo da justiça.
Os bons encontros de que fala Espinosa são fiações, bordaduras, tessituras das relações que nascem do Novelo infinitamente infinito da Natureza.


              ( detalhe de Estandarte, obra de Arthur Bispo do Rosário)