quinta-feira, 31 de julho de 2014

o ouro de espinosa

( Espinosa, Ética, Parte Cinco, proposição 42, escólio)

O ouro é precioso porque ele é raro. Por isso ele vale tanto e é tão desejado.O que é raro desperta o desejo .O ouro é um corpo, ele é um corpo raro.E a este corpo muitos depositam promessas de felicidade pela qual desejam suas almas. Por esse corpo ser raro, precioso, todos o querem ter, e alguns o buscam à força, trapaceando, roubando. Outros o põem adornando tronos.Se a cerâmica fosse tão rara quanto é o ouro, e o ouro fosse tão fácil de obter quanto a cerâmica, seria a cerâmica que adornaria os tronos, e o ouro seria usado como piso em todas as casas. Assim, o que faz o ouro ser ouro, não é tanto o que ele é enquanto corpo, mas a sua raridade, é a sua comparação com outros corpos que existem em maior quantidade.O que faz o ouro material valer tanto, é também porque a ele deseja a imaterial alma.É isto o que o faz precioso. Não é sua dureza, pois há pedras mais duras que o ouro; não é sua cor, dado que existem minerais mais belos nesse aspecto. O que o faz tão desejado é a sua raridade, assim como é rara, imaginam os homens, a felicidade.Além disso, se sumirem do mundo a pedra, o cisco, o cascalho, as migalhas de coisas inúteis e tudo aquilo que não damos valor, e se tudo no mundo fosse apenas feito de ouro, talvez ansiássemos por encontrar um cisco ou cascalho como o garimpeiro que anseia achar um  diamante.Ter  uma casa inteira de ouro,e mais ainda todos os móveis e alimentos que estão na casa, e mais  todos os utensílios e roupas, tudo de ouro,talvez  quem por isso passasse aprendesse a valorizar, quem sabe, a raridade que está no simples  pão feito de trigo, na modesta roupa feita de algodão, na comum cadeira feita de madeira. É a isto que ensina o mito de Midas, o rei que a tudo transformava em ouro pelo simples toque, e que quanto mais de ouro ele se cercava, mais de pedra se tornava seu próprio coração.
Ora, o que vale para o mundo material vale ainda mais para o mundo espiritual. O mundo espiritual também tem seu ouro. Todavia, ele também tem coisas não muito valiosas. O mundo espiritual , mundo do pensamento e da alma, é feito de ideias. Contudo, ocorre com o mundo espiritual o inverso do que acontece com o mundo material, onde o ouro impera. Não são as ideias raras as mais valorizadas e desejadas por aqueles que querem exercer poder sobre os homens, para assim mantê-los na servidão e na ignorância, na pobreza espiritual. Ao contrário, são as ideias que valem pouco, são as ideias medíocres, medianas, as que mais se prestam para tal fim.E muitos as ensinam e oferecem, e também as vendem, como se fossem ouro, como se fossem o ouro do mundo espiritual.  Estes que  procedem assim, no entanto,são os que mais se enriquecem com o ouro do  mundo material, pois parece que eles usam o mundo espiritual apenas como meio para obterem o ouro do mundo material, e assim falam do espírito apenas como meio para obterem templos suntuosos e tronos de ouro, além de cátedras e títulos. Mas o ouro do mundo espiritual é mais raro ainda que o ouro que vive debaixo do chão. Obtê-lo é mais árduo ainda que garimpar rios ou abrir minas na pedra.O ouro que verdadeiramente nos enriquece não  é visível, não está à vista fácil, tampouco serve apenas para adornar as palavras ou ser acumulado em cofres eruditos. Por isso, dele não há posse exclusiva, nem ostentação.Buscar esse ouro, esforçar-se por ele, já é a própria felicidade, já é a própria riqueza, diz Espinosa. A coisa mais preciosa que existe é aquela da qual só existe um exemplar. Cada coisa singular é preciosa, rara, exatamente por ser única.

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(Ética, Parte Três, proposição 44,  escólio)
Na vida dos homens em geral, mesmo naqueles que se dizem “práticos” ou “pragmáticos” ( e que não apreciam teorias ou reflexões),a imaginação é muito mais presente em suas condutas  do que eles  suspeitam ou sabem. A imaginação se caracteriza por imaginar como presente uma coisa ausente.A imaginação imagina como presente as coisas ausentes.Não uma coisa que esteve presente e por alguma razão  se ausentou, mas uma coisa que jamais foi ou é presente.  Por exemplo, o avarento imagina que todos querem suas moedas. Ou seja, sua imaginação torna presente na mente do avarento um sentimento que está ausente nos outros:o avarento imagina estar presente nos outros um sentimento que apenas está nele.O ciumento imagina e torna presente na mente dele a imaginação de que os outros desejam o que ele tem. Ele torna presente dentro dele essa ideia confusa, essa imaginação, e imagina que está presente nos outros esse desejo: isto na verdade mostra o quanto é fraco o desejo do ciumento em relação às coisas que ele imagina ser dele ou ele merecer ter.O homem da imaginação, da imaginação passional, não apenas torna presente o que está ausente, como também age como se fosse verdade o que é apenas fruto de sua imaginação.Um ciumento, por exemplo, pode ferir ou matar.O vaidoso imagina e torna presente em sua mente que os outros são vaidosos e o invejam, ele imagina como presente algo que está ausente nos outros, porque ele ignora como ele de fato é, e assim ignora também o que são de fato os outros.Imaginando essas coisas, ele pode agir de fato para prejudicar os outros, embora a imaginação prejudique, em primeiro lugar, a ele mesmo: prejudica a sua capacidade de compreender.
A imaginação não é como a memória. Esta faz viver, com a força da própria alma que se recorda, o que aconteceu.A memória recorda o que aconteceu.Ao contrário,a imaginação pode imaginar como presente o que nunca aconteceu, ou então imaginar que está presente nela , como adivinhação, o que acontecerá. Assim , a imaginação imagina que o futuro é uma coisa presente, tal como ela imagina que é uma coisa presente a inveja ou o ciúme que ela imagina estar na mente dos outros.Mas quando a imaginação assim procede, imaginando como presente o que está ausente, ela o faz ignorando sua própria presença, ignorando que é ela que inventa. Outro exemplo dado por Espinosa: quando olhamos para o sol, o vemos do tamanho de uma bola.Na verdade, o que vemos não é o sol, mas o resultado da ação do corpo do sol sobre o nosso.O que vemos é uma imaginação. Assim, por mais estranho que possa aparecer, não há diferença, do ponto de vista sensível, entre percepção e imaginação.O sol do tamanho de uma bola só está presente na nossa mente, na medida em que esta padece uma afecção do corpo ao qual ela está ligada. Para a mente formar uma ideia adequada do sol, é necessário que ela se autonomize em relação a este padecer, e aja. Ela age formando ideias adequada. A ideia adequada do sol nos ensina que ele não é do tamanho de uma bola.Mas jamais veremos, com nossos olhos do corpo, o tamanho exato do sol, mesmo porque com os olhos do nosso corpo somente vemos corpos, e não ideias.Por outro lado, ter a ideia adequada do tamanho do sol não fará com que desapareça o fato de o vermos do tamanho de uma bola.Assim, percebemos que ver o sol do tamanho de uma bola somente é um erro quando estamos privados da ideia adequada dele.Ver o sol do tamanho de uma bola é algo necessário, é uma verdade também, mas que se explica pelo mundo dos corpos e pela maneira como uns agem sobre os outros.A imaginação não é uma ilusão ou aparência, ela somente se torna isto quando a alma fica impotente para agir/conhecer de forma adequada as coisas.E a razão disso acontecer não é o corpo ou a imaginação, mas a própria mente, quando esta não consegue desenvolver sua potência, que é o conhecimento.
Se nós tivéssemos consciência dessa força que a imaginação possui, a veríamos como arte, e não como algo que fala sobre a realidade dos fatos .A imaginação somente se torna ruim quando ela ignora a ideia que torna clara o que são as coisas que de fato existem, e que ela, a imaginação, não pode substituir com uma mera imagem ou fabricação sua.Somente na arte esta força da imaginação de tornar presente o que não existe, somente na arte essa força se torna virtude, e com ela podemos aprender sobre nós mesmos.
Por isso, a dimensão estética, que envolve a imaginação, tem um caráter ético também, no que concerne a nos tornarmos ativos, e não apenas reativos. Há também nisso um caráter clínico, além de político,na medida que se trata de nos curarmos da ignorância de uma força produtiva e inventiva  que está em nós, mas que ignoramos tudo o que ela pode em termos afirmativos, já que a "psicopatologia da vida cotidiana" nos mostra apenas o seu lado negativo, de destruição, seja a destruição/negação do outro , seja a negação/destruição de nós mesmos.
Assim, entre a ideia que conhece as coisas e a imaginação que inventa coisas não há contradição ou luta. A imaginação artística pode nos ensinar, por imagens, a melhor compreender uma ideia, assim como uma ideia nada é se também não puder ser imaginada, se não favorecer em nós o aumento das nossas capacidades, inclusive a capacidade de imaginar.Não imaginar como presente o que está ausente,como na imaginação passional, mas criar imagens que traduzam, no campo sensível, do sentir, toda a potência que há no campo das ideias, no pensar.Quando a imaginação assim procede, ela também se torna uma potente ferramenta didática   da educação.

"Nossa suprema felicidade consiste em realizar apenas aquelas ações que o amor e a generosidade nos aconselham". (Ética, Parte Dois,proposição 49, escólio)













terça-feira, 29 de julho de 2014

o que é o afeto?

O QUE É O AFETO?
(Espinosa, Ética, Segunda Parte, Definição 5)
Segundo Espinosa, o homem possui um corpo e uma mente.Nisso não há nenhuma novidade, muitos também afirmaram isso antes dele.Espinosa inova verdadeiramente, e muito, quando afirma que a mente e o corpo do homem não são realidades que existem em si, de forma independente de todo o universo.A mente e o corpo do homem são partes do universo, partes singulares.O corpo é parte do mundo material, a mente é parte do mundo espiritual.A mente é parte de uma realidade que vai muito além dela, assim como o corpo é parte de uma realidade também muito maior.
A nossa mente e o nosso corpo se distinguem de todo o resto porque eles existem de forma determinada. “De-terminar” significa: dar fim, delimitar.Sabemos que uma onda é parte do oceano, mas de certo modo a onda é o oceano mesmo, mas modificado, determinado a existir como onda. Mas essa determinação não cria um outro ser diferente do oceano, cria apenas o oceano existindo de certa forma determinada, como onda. A onda é um modo ou uma modificação do oceano, uma maneira singular de ele ser.
Assim, a nossa  mente e o nosso corpo são determinados a existir como onda não pelo próprio oceano, mas por outras coisas determinadas .Devido à nossa maneira muito limitada de apreender a realidade, vamos de coisa determinada a coisa determinada, de onda a onda, umas pequenas e outras grandes, e assim ignoramos o oceano que produziu todas as coisas determinadas. De maneira determinada, fui gerado por uma coisa determinada que me pôs no mundo, e esta coisa determinada que me gerou também foi gerada por outra coisa determinada que a gerou, e assim até o infinito. Todavia, o infinito não é feito de coisas determinadas, assim como o oceano não é feito de ondas, como se estas fossem a causa e ele o efeito. Ao contrário, é o oceano que é causa da existência das ondas, mas o oceano não é causa da mesma maneira como pode ser causa uma coisa determinada de outra coisa determinada. As coisas determinadas podem ser causas parciais da existência de outra coisa determinada. Ela é dita causa parcial porque ela não pode ser causa total. Ou seja, uma coisa determinada que produziu uma outra coisa determinada explica apenas em parte a existência dessa coisa determinada. Somente o que é causa total pode explicar a existência de algo. Mas explica não apenas por sua existência, explica antes pela sua essência. Assim, uma causa parcial pode produzir parte da existência de algo determinado, mas não pode produzir sua essência.Um pai, por exemplo, é causa parcial da existência de seu filho, mas ele não é causa de sua essência.Um pai é causa parcial apenas de seu filho, e até mesmo de seu neto. Porém ele não o é do filho de um outro pai.A causa que produziu uma essência produziu também a essência de todas as coisas, inclusive a do filho e a do pai, e o fez  de forma  diferente daquela como age um pai.Uma causa assim total cria não apenas uma essência, ou uma a uma, ela cria todas as essências, e as faz eternas, assim como ela. Uma causa total cria todas as essências, ao passo que uma causa parcial cria uma determina existência ou parte dela.Uma existência determinada , a do pai, pode desaparecer sem que desapareça a existência determinada do filho , que ele no entanto pôs no mundo. Contudo, a causa total que produziu uma essência nunca desparece: ela está viva em todas as essências, de tal modo que destruir uma essência, por mais simples que seja, seria também destruir a causa infinita de todas as coisas. Por essa razão, uma essência não pode ser destruída por outra essência, e nenhuma essência determinada pode criar outra essência.  A causa infinita que produziu cada essência é a Vida, e esta  nunca destrói ou mata. O pai põe no mundo, Deus põe na eternidade, isto é, põe nele mesmo, como modificação dele mesmo.
Portanto, a essência de tudo que existe é uma modificação de Deus e, assim como ele, é eterna. Somente o que é gerado por uma causa parcial, uma causa determinada, existe em um tempo determinado e, assim, morre. Morrerá por outras causas determinadas. A causa total não age de fora, assim como o fazem as causas determinadas. A causa total ou infinita age de dentro, na  imanência de cada coisa que ela produz. Por isso, a causa infinita é dita causa imanente.
 Se olharmos para a mente do homem apenas do ponto de vista da sua existência determinada, a veremos como o efeito de coisas determinadas que a produziram : a língua, os costumes, os valores ( da família e da sociedade). Enfim, veremos a mente apenas em seu aspecto psicológico, que uma ciência, a psicologia, pode fazer de objeto de estudo, pois a ciência somente consegue lidar com coisas determinadas. Todavia, as coisas determinadas não subsistem por si mesmas, a não ser por uma abstração, assim como a onda não pode subsistir sem o oceano. Além disso, o oceano somente é indeterminado visto sob os olhos da onda individual. Quando adquirimos olhos para ver o próprio oceano da vida, compreendemos que ele é potência que é mais real do que tudo que existe de forma determinada, e  que o determinado nada é sem essa potência que age na imanência dele.O indeterminado só tem sentido em razão das coisas determinadas.   Assim, a mente existe psicologicamente como coisa determinada, e é dita ser a mente de João ou Pedro. Mas a mente também é o produto da natureza, e sob esse aspecto ela não é apenas psicológica, ela é ontológica, ela existe como parte da natureza espiritual infinita.Vista sob essa perspectiva, a mente é uma abertura a um pensamento infinito do qual ela é uma parte.
Do que é composta a mente? Ela é composta de duas coisas, e nada mais.A mente é composta por ideias e por  afetos. Ideias e afetos têm algo em comum: eles são pensamentos, eles são formas de pensar.Eles são maneiras de a mente se expressar.Mas eles têm algo diferente: toda ideia o é de algo que existe no mundo dos corpos.Toda ideia possui uma realidade objetiva: ela representa algo que existe no mundo material . Por exemplo, uma coisa é Pedro enquanto ideia que minha mente forma, outra coisa é Pedro tal como ele existe no mundo material. Uma coisa é a ideia de cadeira que formo em minha mente, outra coisa é o objeto dessa ideia, já que o objeto também existe no mundo material.Posso sentar-me na cadeira que existe como objeto da ideia, e não na própria ideia da cadeira.Coisa diferente acontece com o afeto.Este existe apenas na mente, no pensamento.Isto não significa que o afeto não existe ou seja apenas imaginação. O afeto existe, tanto quanto as ideias.Por exemplo, o afeto amor.Segundo Espinosa, quando vivemos esse afeto, não podemos vivê-lo sem um objeto que exista no mundo material, seja este objeto uma pessoa ou coisa, pois o amor é aquilo que nos faz desejar nos unir a algo ou alguém. Quando amo ,por exemplo, uma roupa, desejo me unir a ela, vestindo-a o máximo de vezes que puder;quando não gosto dela a mantenho no armário, esforço-me para não me unir a ela.  Para vivermos o amor é preciso existir uma coisa amada, é necessário uma ideia da coisa amada. Para vivermos um afeto, necessitamos de uma ideia que nos remeta ao mundo dos corpos. Exemplo bem simples: Maria ama Pedro porque ela, além de viver o afeto, tem também a ideia de Pedro dentro dela.  Ninguém ama sem amar alguma coisa. Assim , quando amamos algo, unem-se em nossa mente o afeto e a ideia desse algo, ao mesmo tempo que se une nosso ser e o da coisa amada que existe fora de nós.É por isso que amar intensifica  a mente, a torna mais viva, pois une afeto e ideia. O afeto depende da ideia para ser vivido de forma objetiva. Mas a ideia não depende do afeto para exercer sua atividade essencial: o conhecer.Para amar algo necessito da ideia desse  algo.  Para conhecer uma coisa, porém, não preciso exatamente amá-la, e muito menos odiá-la. Necessito apenas formar uma ideia adequada dela. Contudo, quando amamos algo nem sempre fazemos uma ideia adequada primeiro da coisa para depois amá-la. Se assim fosse, viveríamos apenas uma vez o amor na vida, e seríamos felizes para sempre, certos do amor assim como estamos certos de que dois e dois é igual a quatro. Todavia,não raro amamos algo sem formar desse algo uma ideia adequada, verdadeira. Não raro, amamos nos fiando apenas em ideias aparentes de um ser , ideias estas que depois se mostram inadequadas, confusas, e isto muitas vezes ao preço de grande sofrimento.Mas talvez a razão de formarmos ideias confusas das coisas reside no fato de termos antes  ideias confusas, não verdadeiras, de nós mesmos. Por que isso acontece?
Uma coisa não possui apenas uma ideia, ela possui também um corpo.  A primeira coisa que vemos de algo que existe é seu corpo, sua existência material. E um corpo que existe age sobre o nosso . Não vemos ideias, vemos corpos.Os corpos são objeto da percepção, já as ideias somente passam a existir se nós as formamos: elas exigem uma atividade da alma.Uma ideia não é uma imagem. Vejo um celular de última geração: vejo seu corpo. E seu corpo age sobre o meu. Nasce um amor irrefreável por ele, desejo me unir ao objeto como algo que me fará feliz:o compro antes de formar uma ideia adequada do que aquela coisa é.Quanto menos conseguimos formar uma ideia adequada de algo, mais imaginamos coisas que nada têm a ver com a ideia verdadeira desse algo, e passamos a atribuir-lhe propriedades quase que mágicas, como se a coisa não fosse exatamente um corpo feito por outros corpos: imaginamos realidades  que não tem, a vemos como causa , quando na verdade ela é efeito, efeito de uma causa que ignoramos. Esse agir apenas em função de uma imagem, imagem esta nascida da ação de um corpo sobre o meu, esse “agir” na verdade não é um agir, mas um reagir. Este reagir recebe um nome:paixão. Paixão se origina de passio, que significa “sofrer a ação de algo” .Como a nossa vida é mais governada pelos corpos do que pelas ideias, vivemos a vida mais ao sabor das coisas que agem sobre nós do que pela capacidade que temos de formar ideias adequadas das coisas. Quando um corpo age sobre  outro nasce o que Espinosa chama de afecção. A afecção não é o afeto. A afeção é uma modificação que nosso corpo sofre pela ação de outro corpo. Por exemplo, quando vemos um corpo que age sobre o nosso , nossos hormônios se alteram , assim como a respiração e mesmo a circulação do sangue.Todas essas modificações que ocorrem no nosso corpo são afecções.
Tudo o que ocorre no nosso corpo terá um correspondente em nossa mente.Quando formamos uma ideia adequada de uma coisa, formamos uma ideia adequada também do seu corpo, de sua realidade material .Mas se um corpo age sobre o meu e o torna apaixonado, perco a capacidade de formar uma ideia adequada dele, pois as afecções que ele produzirá em mim me deixarão passivo. E a mente somente consegue formar uma ideia adequada quando ela não está passiva.Dessa forma, o correspondente na mente das afecções não serão os afetos, já que estes não têm objeto. O correspondente na mente das afecções corpóreas serão as ideias inadequadas, ideias confusas. Assim, quando algo nos deixa passivos porque seu corpo age sobre o nosso, nossa alma também fica passiva , e dentro dela nascem as ideias confusas . A mente se torna ativa, livre, apenas quando ela é capaz de formar ideias adequadas.A ideia adequada torna a mente capaz de compreender e fazer nosso ser inteiro, inclusive o corpo, a agir adequadamente, de acordo com essa compreensão. A ideia inadequada e confusa não tem por causa a própria mente, mas algo que ocorre no corpo ao qual ela está ligada.É por isso que a mente não compreende a ideia confusa, e esta a faz de refém em sua própia casa.A ideia confusa não é bem uma ideia, ela é uma imaginação. Assim, quando amamos apenas de forma passional, sobretudo nas paixões tristes, amamos mais a imaginação que temos de uma coisa do que a ideia adequada dela.Para vencermos tais paixões tristes, é necessário desfazermos os laços nascidos entre o afeto e a mera imaginação passiva.Mas isso não é tão simples, pois não é a coisa externa a responsável exclusiva pela subordinação do afeto à imaginação, fazendo nascer assim a paixão. Nós mesmos somos responsáveis por isso acontecer.Mas a isto muitas vezes ignoramos, por não conseguirmos formar uma ideia adequada de nós mesmos.Uma ideia adequada de nós mesmos não significa uma ideia rígida, imutável.Uma ideia adequada da onda também inclui nela o oceano, isto é, uma potência que sempre se renova.

Para Espinosa, não há como vivermos um afeto sem reportá-lo a  um objeto do qual tenhamos uma ideia .Esta pode ser adequada ou inadequada, verdadeira ou confusa.Mas mesmo que seja confusa a ideia, isto não impedirá que o afeto se ligue a ela, e passemos a viver o afeto como se tratasse de uma ideia adequada, verdadeira.  A mente somente consegue formar ideias adequadas quando ela não se torna refém do que acontece ao seu corpo, sobretudo quando este vive subordinado à ação dos outros corpos, tornando-o dependente das coisas efêmeras.É preciso compreender que é na mente que está o afeto, não no corpo.Além disso, a imaginação passional nasce não tanto da ideia adequada do corpo que age sobre o nosso, mas das afecções que este produz sobre nosso corpo. Então, imaginamos que as afecções que sofremos são o corpo mesmo que as produziu. Todavia, as afecções que sofremos se explicam mais pela natureza do nosso corpo do que pelo corpo que agiu sobre nós.Por exemplo, quando desenhamos com o dedo figuras na areia, os desenhos assim nascidos se explicam mais pela natureza do corpo da areia do que pela natureza dos nossos dedos. Se fizermos os mesmos movimentos dos nossos dedos sobre o corpo do rígido cimento, nenhum desenho ficará em seu corpo.De maneira semelhante, as afecções que sofremos, e que modificam nosso corpo, se explicam mais pela natureza do nosso corpo do que pela natureza do corpo que agiu sobre o nosso. Imagine se a areia da beira de uma praia pudesse ter consciência e falar, não a acharíamos totalmente equivocada se ela nos dissesse que , apenas pelo desenho que nossos dedos fizeram nela, ela seria capaz de conhecer a ideia adequada do que são  nossos dedos? Para saber adequadamente o que são os dedos é preciso saber o que são as mãos, o que é o braço, o que são os nervos. Mas essas coisas são realidades que a areia não tem como saber apenas pelo desenho, que é um efeito de uma ação sofrida e, enquanto tal, não pode ser causa de um conhecimento adequado. Então, ela de fato não sabe, apenas imagina que sabe, e toma esta imaginação como se fosse conhecimento. Na verdade, ela se apaixonou mais pela imagem que os dedos desenharam nela do que pelos próprios dedos. Somente se ela conseguisse formar uma ideia adequada dos dedos e, antes desta, uma ideia adequada de si mesma, somente assim ela poderia amar de uma forma adequada e alegre, e não apenas volúvel,o que os dedos e o desenho são. Do contrário, amará apenas um efeito que logo o mar virá apagar , e mais a areia sofrerá quanto mais ela imaginar que o desenho era eterno.

"Por alegria compreendo uma paixão pela qual a mente passa a uma perfeição maior. Por tristeza, em troca, compreendo uma paixão pela qual a mente passa a uma perfeição menor." ( Ética, Terceira Parte, proposição 11, escólio)."Quando a mente [deixando-se dominar pela imaginação] pensa em coisas que a entristecem e  enfraquecem, essa simples imaginação já a entristece e enfraquece".(Ética, Terceira Parte, proposição 13)


sábado, 26 de julho de 2014

o simples e o complexo

Muitos exaltam as linhas retas e  os pontos; outros idolatram as alturas ou  as profundidades. O homem racional, por exemplo, crê que os caminhos seguros são apenas os retos, dos quais se parte após um planejamento sem brecha para o acaso, e retilineamente a razão teoriza seu porto: a Verdade. Os místicos, por sua vez, amam as alturas, as ascensões, as elevações. Já os profundos vivem a mirar poços, abismos, que dizem existir dentro deles.
Todas essas imagens inspiraram doutrinas e visões do mundo científicas, religiosas ou artísticas. Contudo, o mais surpreendente é a ideia da dobra. Deleuze associa a dobra ao barroco. Não apenas ao barroco, como à própria vida. A vida é produtora de dobras. Não há no vivo nada que se assemelhe a uma linha reta.
As dobras são movimentos em duas direções: toda dobra implica algo, ao mesmo tempo que também desdobra alguma coisa. Em toda dobra algo está implicado, em toda dobra algo pode ser desdobrado.Implicar e desdobrar.O desdobrar também recebe outro nome: explicar. Aristóteles dizia que a finalidade da semente é se tornar uma árvore, e que a árvore já estaria dentro da semente, como forma final que a semente, enquanto potência, visaria atingir, para depois sumir, apagando-se. No mundo barroco, diferentemente,  a árvore está dobrada dentro da semente. Ao nascer, a árvore explica a semente, a desenvolve. Porém, na árvore que cresce a semente continua a existir, mas implicada, dobrada virtualmente, de tal modo que a explicação ou desdobra não é a persecução de um fim, pois toda explicação vai em duas direções: explicação e implicação.A árvore explica-se , desenvolve-se, mantendo dobrada em si a semente que lhe está implicada, envolvida.
Todas essas palavras (implicar, explicar) têm como raiz, raiz rizomática, o termo “pli”. “Pli” significa exatamente, ou anexatamente, “dobra”.Implicar é o movimento pelo qual a dobra constitui um “dentro”, um interior.  Não  um interior fechado, limitado por contornos rígidos.É um interior como forma em rascunho, diria Manoel de Barros. Ex-plicar é trazer para fora (“ex”) o que está implicado, o que está dobrado. Todo desdobrar é um explicar, um desenvolver.O feto se desenvolve desdobrando o que nele está implicado: ao se desdobrar, o feto explica o que nele está implicado e, dessa forma,  se explica.Tudo o que se  desdobra explica a si e aquilo que nele está envolvido, implicado.Mais do que mera informação que vai em linha reta, o código genético é uma dobra que, ao se desdobrar, cria um organismo, e neste mesmo organismo o código permanece implicado, dobrado.
O processo que vai da implicação à explicação se chama expressão.Toda expressão tem algo implicado nela e algo é desdobrado dela. Uma expressão não re-presenta ou re-apresenta algo que lhe esteja fora ou ausente, tal como a palavra “casa” que re-apresenta  a casa como seu objeto exterior, seu referente . Diferentemente, a expressão não representa, ela expressa, ela desdobra o que já está implicado nela. E o que está implicado nela é o sentido, é a ideia expressiva, a essência. O feto desdobra sua essência, ele a explica e assim se explica.
A vida não é representativa: ela é expressiva, ela é uma expressão. Explicar é desenvolver o que já trazemos implicado em nós.A semente explica ou desenvolve o que está implicado nela. E o que está implicado nela não é uma essência universal de árvore, mas a singularidade árvore, a essência singular de uma árvore que nasce a partir de uma diferença.O que é uma árvore? Uma expressão da vida. O que é um homem? Uma expressão da vida.O que está implicado no feto humano não é a ideia universal de homem, mas a singularidade homem, a novidade homem, o poema homem.Toda expressão, toda essência singular, traz e é o novo.
A expressão nos mostra que o dentro e o fora não são termos dicotômicos, tal como ensina a tradição filosófica. O fora é o dentro que se vai desdobrando e explicando, o dentro é o fora mesmo implicado em nós.O subjetivo é carregado de objetividade, a objetividade nada é se uma subjetividade não pode explicá-la. A ciência diz que o universo surgiu da explosão de  um ponto: este ponto que explodiu recebeu o nome de   “big-bang”. Contudo,  talvez o big-bang não tenha sido a explosão de um ponto (seguindo-se daí a diáspora do que antes foi uma unidade). Talvez o que se chama de big-bang tenha sido o desdobrar do que estava implicado. E se o infinito estava implicado, é infinito também o seu desdobrar.
Além disso, todo desdobrar/explicar tem uma carga de invenção: o que é explicado não é uma cópia do que está implicado.O feto não é uma cópia do código genético; uma aula não é uma cópia de um texto ( que ela, no entanto, desdobra e explica). Todo explicar, quando expressivo, é uma invenção de algo que está implicado, mas virtualmente. Toda explicação é uma diferenciação. Explicar não é tanto ensinar quanto é aprender: aprender com o que está implicado, e que nenhum explicar pode esgotar.O aprender vem antes do ensinar.
Tudo pode ser pensado assim, quando vemos e vivemos  as coisas não como representação, e sim como expressão.E tudo o que é expressão tem algo implicado que pode ser explicado, desde que o explicado esteja implicado naquele que explica.Por exemplo, pode-se falar representativamente da justiça, fazer da justiça uma representação que a lei representa. Mas enquanto expressão, a justiça é algo que está implicado naquele que a explica: a explica não exatamente fazendo leis, a explica em seus gestos, em suas palavras, em suas ações.Não existe a “Justiça em Si”, como pensava Platão.Existe a justiça implicada, envolvida, e que somente passa a existir se for explicada, desenvolvida, criada. Pois aquele que assim explica a justiça explica a si próprio, se inventa: existe como justo. O amor somente pode ser vivido como expressão se ele estiver implicado naquele que o explica e desenvolve. E se através da explicação do amor aquele que o explica também se explicar através do amor que está implicado nele, somente assim pode-se confiar que este ama.Só o amor está implicado na explicação que o desenvolve. O amor implicado e sua explicação constituem a essência do amor como expressão.  Toda explicação singulariza. Quando se tem de uma coisa apenas a representação, entre ela e aquele que a representa passa a existir então  como que um vazio que será preenchido por alguma coisa, por um clichê por exemplo, ou então esse vazio será dissimulado por comportamentos impotentes, pois neles não estará implicado aquilo que se quer viver.Quando vivemos algo como expressão, ao contrário, não o vivemos apenas em palavras, o vivemos como aquilo que nos explica, pois está implicado em nós e também em nossas ações.
As coisas que estão implicadas podem entrar em relação com outras coisas dobradas.Essa relação das coisas implicadas entre si, criando uma conexão ou rizoma, os medievais chamavam , em latim, de “complicatio”. Complicatio significa : dobrado junto.Ou ainda: complexo.Tudo o que está implicado em nós está complicado, dobrado junto, com o universo inteiro. Não se pode explicar complicando. Ao contrário, toda explicação é um desenvolvido de coisas implicadas que, por sua vez, estão complicadas com outras.Não há complicação que não possa ser explicada, desde que se encontre o que está implicado.E o deve estar primeiramente em nós, assim como o código da vida que está na vida do feto.
É desdobrando o complicado que se alcança o simples. Sim-plex: literalmente, "sem dobra", posto que foi desdobrado.O simples não se opõe ao complexo, o autêntico simples é o que se desdobra do complexo, ele é aquilo que resulta do explicar o complexo.Além disso, algo sem dobra não é exatamente algo reto. O simples permanece ligado sempre ao complexo, tal como o fio de Ariadne que , desdobrado, permanece sempre ligado à complicatio de seu novelo.E neste novelo estão implicadas todas as narrativas, estão implicadas todas as narrativas que salvam, que criam percurso e inauguram linhas de fuga.A linha reta, ao contrário, não tem novelo. Uma linha, dizem, é feita de pontos.Mas o ponto é o falso simples, um simples meramente matemático.No começo não está o simples: o simples somente surge   como o produto cujo agente o desdobra de uma complicatio, de algo complexo. Somente encontramos o simples após uma explicação, e não antes dela.Tampouco existe o complexo sem o simples, e o simples sem o complexo. E no meio de ambos estão a implicação e a explicação.
Singularizar é intensificar. Cada um explica o que lhe está implicado de acordo com a potência que tem.O que está implicado em mim está complicado com o que está implicado em tudo .O Todo está implicado em tudo, e é por isso que o Todo é complexo e se expressa em cada coisa simples. Uma explicação aumenta sua potência quanto mais ela se percebe como não sendo uma explicação exclusiva, definitiva. Toda explicação potente é uma forma em rascunho que explica uma potência que nunca é puramente formal.
Uma ideia, não importa qual, é uma expressão: ela implica algo e dá a possibilidade de ser explicada por aquele que a  vive.E aquele que a vive também explica a si mesmo naquilo que ele explica e vive.
Os estudiosos da vida nos dizem que aquilo que chamamos de “órgãos” são, na verdade, dobras. O cérebro, por exemplo, é dobra sobre dobra sobre dobra...O cérebro é todo dobrado sobre si mesmo.O cérebro é uma complicatio, mas simples é a ideia que faz pensar e ensina, educa.O pulmão também é uma dobra: dobra esta feita de dobras.Quando se desdobra fisicamente um pulmão, ele vira uma superfície do tamanho de uma quadra de tênis. Assim, no horizonte  de uma dobra não está a altura nem a profundidade,tampouco o ponto; no horizonte de uma dobra está uma superfície. Não o superficial, mas a superfície. A superfície não é o raso por oposição ao profundo, ela também não é o baixo por oposição ao alto das alturas.A superfície é a horizontalidade.No mito, a primeira divindade a surgir foi Gaia, a Terra. Esta era caracterizada pela superfície.A superfície é espaço de conexões.Não raro,  há alturas superficiais, bem como profundidades que são superficiais. Na origem da dobra não está a linha ou o ponto, está a superfície.Em nós, os afetos estão dobrados; quando os desdobramos, vem expressá-los a superfície do rosto.A onda do mar, por exemplo, também é uma dobra: se esticarmos uma onda descobrimos que ela nasce da superfície do mar.Os simples não são profundos, tampouco desejam ascender a píncaros. Os simples habitam as superfícies.Os simples habitam a Terra.A superfície é espaço de travessias.
Um livro quando vivo, quando faz viver,é uma dobra.Ele é dobra porque nele está implicado o que está dobrado junto com tudo. Ele é uma dobra cheia de dobras.Lê-lo é desdobrá-lo, é explicá-lo.Explicar o complexo é devir simples.  Explicamos um livro de acordo com a potência que temos. Mas o que está implicado no livro tem sua própria potência, que pode sempre aumentar a nossa, desde que desejemos devir simples porque em nós está implicado um sentido , uma questão.Ler um livro  é desdobrar o que nele está implicado, e o que está implicado nele está implicado em nós, pois não se trata de letras, mas de ideias, de ideias expressivas.Livros assim têm uma potência de desdobramento infinita, pois o infinito está implicado neles. E o infinito não começa e nem termina, o infinito possui apenas meio. Tais livros não têm exatamente origem, eles têm horizonte: é deste que eles nasceram.Lê-los é horizontar-se.

 A Ética, de Espinosa; O que é a filosofia? , de Deleuze e Guattari; O livro de pré-coisas, O livro sobre nada e O livro das ignorãças, de Manoel de Barros; Gilles Deleuze: a grande aventura do pensamento, de Cláudio Ulpiano; Moby-Dick, de Melville...São livros-dobra : neles está implicada a mesma potência que está implicada em cada coisa que vive, e é em nossa alma que essa potência se desdobra e se explica, nos explicando, nos singularizando.








quarta-feira, 16 de julho de 2014

manoel de barros:redimir as pobres coisas do chão




(trecho do livro)

No "Livro de pré-coisas" , na prosa poética intitulada "Agroval", Manoel de Barros descreve um acontecimento ordinário do pantanal. “Ordinário”, aqui, significa a mesma coisa que comum ou regular. À idéia de “ordinário” costumamos opor a noção de “extraordinário”. Vale a pena lembrar a origem matemática destes termos. Na matemática, os “pontos ordinários” de um triângulo são os inumeráveis e indistintos pontos que ocupam cada um dos lados da figura, ao passo que seus três “pontos extraordinários”, ou singulares, localizam-se em cada ângulo do triângulo. Em uma reta, por sua vez, os pontos extraordinários são dois: aqueles que ocupam os extremos da linha.
Todavia, a diferença entre ordinário e extraordinário mostra toda a sua riqueza quando examinamos o círculo. Aparentemente, tal figura geométrica é destituída de pontos extraordinários ou singulares. Mais do que uma linha reta, geralmente costuma-se afirmar que nossa vida é um círculo: o círculo de nossa vida. Então, estaria o círculo de nossa existência destituído de momentos singulares? Estaria nossa vida refém do ordinário?
Mas o círculo guarda um segredo, tanto na matemática como na vida: qualquer ponto ordinário seu pode metamorfosear-se em ponto extraordinário, se por ele passar uma tangente. No encontro da tangente com o círculo, ambos dividirão o mesmo ponto, abrindo assim o círculo a uma força que vem de fora de seus limites e contornos.A tangente é uma linha de fuga que a tudo transforma em forma em rascunho. Quando o ordinário se converte em extraordinário, acontece o deslimite -renovando-se a vida.
Assim, entre o ordinário e o extraordinário não existe uma diferença intransponível: é no seio do ordinário que o extraordinário acontece. “Cada coisa ordinária é um elemento de estima”, afirma o poeta. Pois, complementa, “é no ínfimo que eu vejo a exuberância”. Em "O Guardador de águas", ele revela ainda: “No achamento do chão também foram descobertas as origens do vôo.” É no ordinário do chão que o extraordinário, como vôo, é “achado”. Enfim, “o chão é um ensino”.

"O que eu descubro ao fim da minha Estética da Ordinariedade , afirma o poeta,é que eu gostaria de redimir as pobres coisas do chão".



quinta-feira, 26 de junho de 2014

a tempestade



















Dispo-me das roupas de cima.
Dispo-me das roupas de baixo.
Prossigo ainda me despindo da pele,
da carne, do sangue, dos ossos, dos nervos...
E assim, com a alma nua em pêlo,
com frio e saudade, mas sem medo,
saio à rua para enfrentar a tempestade.




domingo, 22 de junho de 2014

deleuze, espinosa: a utopia

(trecho de livro a sair em julho)

A utopia é uma maneira questionante, não passiva, de se relacionar com o lugar. Como se sabe, "topos" significa, em grego, "lugar". Assim compreendido, o lugar não é apenas uma parte do mundo físico, pois  há lugares mentais, desejantes, incorporais, nos quais nunca se pode estar, apenas acontecer, devir. As palavras "estátua", "estático", "estar" e "Estado" se originam de um mesmo termo latino, stare , que significa "parada". Como dizem Deleuze e  Guattari (1992), a etimologia é o atletismo do filósofo. Ela é um exercício do pensamento que nada tem a ver com as semânticas do dicionário, pois se trata de encontrar o acontecimento que dá origem às palavras, agramaticamente. Desse modo, há lugares que são de parada, como o é também um túmulo; são lugares de poder e de morte, enfim. Mas há lugares que são de processos, de devires, de metamorfoses, de agenciamentos. Os lugares de parada podem ser circunscritos por contornos ou limites, ao passo que há lugares, lugares quaisquer, cujas fronteiras são limiares em vizinhança  com outros lugares deles diferentes.

É sempre com a utopia que a filosofia se torna política (..): ela [a utopia] designa etimologicamente a desterritorialização absoluta (..). A palavra empregada pelo utopista Samuel Butler, “Erewhon”, não remete somente a “No-where”, ou a parte Nenhuma, mas a “Now-here”, aqui-agora. (DELEUZE;GUATTARI,1992, p. 130).

              A geometria euclidiana pensa o lugar  como algo que mora dentro de uma cerca, de um limite determinável; já o lugar da utopia cresce à medida em que ousamos habitá-lo: são lugares que crescem conforme crescemos, tendo a liberdade como tamanho.A utopia compreende um lugar ligado umbilicalmente  à Terra, o infinito. O lugar, o topos, expressa um "aqui"; já o "u" de "utopia" significa um "agora". Erradamente se traduz "utopia" como "não-lugar", dando à partícula "u" a função de negação ou privação.  A  "utopia" é um "aqui-agora": de tal modo que é no agora que podemos libertar o aqui de seu imobilismo, mas também é no aqui que podemos pensar o que desejamos ser a partir de agora , e não a partir de amanhã...O aqui-agora não é espera, não é esperança: é liberdade em ato, ato da potência, no espaço e no tempo. Todavia, não se trata de um espaço meramente físico, ou de um tempo tão somente cronológico.É um espaço de criação que pede um tempo que é de ruptura, de inovação.
           Do ponto de vista físico, os lugares são simultâneos: eles estão dados, sem sucessão, em um mesmo presente histórico, cada um com sua respectiva identidade. Do ponto de vista da utopia, os lugares são coetâneos: eles co-existem e se conectam, pela diferença. A coetaneidade dos lugares utópicos: espaços de rizoma e heterogênese.          Do ponto de vista da física social, estudantes, trabalhadores, artistas, negros, brancos, homossexuais, heterossexuais, favelados, intelectuais, etc., ocupam lugares euclidianamente estanques,molares,  delimitados que são por contornos determinados, muitas vezes construídos com arame farpado, dado que um Paradigma os segmentaliza. Da perspectiva da coetaneidade da utopia, esses lugares se abrem e se comunicam pela experiência de um agora que faz do aqui o espaço comum daqueles que, em devir-minoritário, sintagmático, desejam criar agora um outro lugar que seja aqui, e não em outra vida ou em outro mundo. Como dizem Deleuze e Guattari, " a revolução é a apresentação do infinito no aqui-agora : a revolução é a desterritorialização absoluta no ponto mesmo em que esta faz apelo  à nova Terra, ao novo povo"  (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 131).
            Os que nascem em um mesmo lugar se reconhecem chamando-se reciprocamente de "conterrâneos":os que têm "uma terra em comum", um mesmo natal.Como desterritorialização absoluta, a Terra de que falam Deleuze e Guattari não se confunde com um território ou Estado. Somente afirmando essa Terra é que nos tornamos conterrâneos de tudo o que é vivo, e nos reconhecemos pela Diferença que escapa a toda recognição, uma vez que nosso natal é a terra incognita: esta terra está onde se afirma uma linha de fuga. A célebre pergunta de Espinosa, “o que pode um corpo?”, mais do que pretender uma resposta, ela nos quer pôr diante de uma incógnita.Toda potência é uma incógnita.
         A  afirmação da Terra é dupla: ela implica a coetaneidade dos lugares  vividos como lugares de diferenças em conexão e agenciamento para instituir o comum, e supõe também a experiência de um devir planetário que nos torna conterrâneos por aquilo que criamos e ousamos, contra todo fascismo e apequenamento da vida.A Terra  é sempre terra incognita: “o que se estabelece no novo não é precisamente o novo, pois o próprio do novo , isto é, a diferença, é provocar no pensamento forças que não são as da recognição, nem hoje, nem amanhã, potências de um modelo totalmente distinto, numa terra incognita  nunca reconhecida , nem reconhecível” ( DELEUZE, 1988, p. 224). Esta terra incognita  é a Terra que nos torna conterrâneos da criação , e que invoca um povo que não deve ser reduzido a  uma realidade pertencente a um território psicossociológico.  O povo é  um agente coletivo que povoa sem padronizar ou segmentar. O povo não é maioria, ele é um devir-povo sempre minoritário. O filósofo não fala por esse povo ou no lugar dele, o filósofo fala diante dele, ele “fala  na frente”[1].      
                                                                                                       




[1] A expressão “fala na nossa frente se você tem coragem” , não tem por alvo exatamente enunciados duvidosos que se quer combater; diferentemente, essa expressão também expressa o desejo de constituição de um lugar coletivo como coragem de um devir-verdade.Sobre a “coragem” como virtude filosófica, mais potente do que a “philia” : Michel Foucault, Le courage de la vérité, Paris, Gallimard,2009 ( especialmente a referência a Espinosa , que não define a filosofia como “philia”, mas como “emendatio do intelecto” e “salut”: emendatio, ou correção, do instrumento, o seu perseverante “polimento”, para que assim alcancemos a salut, cuja tradução adequada é “saúde”, e não “salvação”, daí o aspecto “crítico e clínico” que deve acompanhar um modo de vida  filosófico).










sexta-feira, 20 de junho de 2014

diálogo 2






DIÁLOGO 2

- Levante a cabeça.
- Desculpe , não entendi...
- Nunca olhe para o chão.
- Por quê?
- Os olhos podem se acostumar. E olho acostumado ao chão desaprende de ver.
- Mas sempre me vejo indo na direção contrária a que todos vão.
- Não se acha mais sozinho quem aprende a fazer-se companhia.
- E se a pessoa está perdida?
- Se estiver perdida à maneira de uma criança que se afastou dos pais, deve ficar quieta para ouvir, mesmo que no meio de uma multidão, a voz que a chama de longe , e que vem dos pais; se estiver perdida à maneira de alguém que não sabe para onde vai, é a outras vozes que deve aprender a ouvir, e mesmo a voz de um estranho pode soar familiar.
- E se a pessoa for surda?
- Mas , de certo modo, quem não é?
- Como então ouvir?
- Não raro, a surdez está no ouvir. Há os que somente ouvem as vozes que vêm de baixo, e ainda há alguns outros, muito poucos, que conseguiram ouvir as vozes que vêm do alto.
- E qual voz fala com mais sentido? Qual é apenas delírio?
- Isso depende do ouvido que temos. Essas vozes falam dentro da nossa alma.
-Do que fala uma e do que a outra?
- A voz que vem de baixo é puro peso, e para baixo puxa a alma. É a voz da queda, do tombo. É a voz do que não aceita que estejamos de pé. Mas ela só é ouvida quando nela crê nosso ouvido.
- E a voz do alto?
- É uma espécie de canto que ouvimos quando dentro de nós faz silêncio. E ao ouvi-la, impossível não cantar também. E uma alma que canta não morre. Muitos ouviram essa voz de forma diferente, de acordo com o ouvido que tinham. Embora muitas maneiras há de ouvi-la, essa voz porta, no entanto, um único sentido. Mozart a traduziu no piano; Cézanne a entendeu nas cores das tintas; Gandhi a pôs em suas pernas e braços, e nunca mais se cansou de fazer o bem ; São Francisco a ouvia nos pardais ;Visconti a entendeu sob a forma de luz; Pessoa se tornou muitos ao pô-la em sua poesia tão única; Espinosa a trouxe ao coração para ser sua conselheira ; e Plotino a tudo compreendeu quando aprendeu que a tal voz do alto é escada por onde tudo sobe.
- E sua voz, de onde vem?
- Não posso ter certeza de onde ela vem, apenas para onde ela vai. E vou junto com ela, inteiro. E ela me trouxe aqui, para junto do seu ouvido. E obrigado por nos deixar entrar.



quinta-feira, 19 de junho de 2014

chico: 70 anos

Antes de ouvir Chico,eu o li. Antes de ouvi-lo como música,eu o li como poesia:como poesia que se estuda para ampliar nosso pensar e sentir. A primeira vez que li Chico foi na escola.E isto em uma época na qual ainda pairava sobre nós a ditadura.Eu não tinha mais do que 11 ou 12 anos.Eu sabia ler livros, claro. Livros de história, de física, de química, de geografia e até livros sobre literatura. Porém, até então eu não havia experimentado toda a potência que pode haver na leitura.E a potência da leitura nada tem a ver com apenas desenvolver o intelecto.Foi a poesia presente na canção popular  que, quando criança,  me fez aprender a ler.Ler não apenas a letra,mas o mundo que ela expressa:mundo por descobrir.
Li pela primeira vez Chico  em uma aula de língua portuguesa dada no antigo primeiro grau. Ao invés daqueles livros tradicionais que,na parte de interpretação de textos,  empregavam os clássicos da literatura brasileira, a nossa professora, que era nova no colégio ( e,infelizmente, não ficou por muito tempo...), ela resolveu adotar um livro heterodoxo,plural. Ao invés de tais clássicos consagrados, o livro empregava as letras de músicas dos compositores que participaram dos festivais da canção ( e mais alguns outros, como Cartola e Noel Rosa). Tais festivais ainda eram recentes, eu era bem pequeno quando eles aconteceram. Por isso, eu não tinha memória ou vivência deles.Sem dúvida, aquele livrinho fazia o que Foucault chamava de micropolítica da resistência. Ele não falava da história, mas do devir de cada um que a história oficial não falava.
O  livro oferecia para nossa interpretação as letras de músicas com conteúdo muitas vezes metafórico ou metonímico. Na verdade, tais letras eram poesias. Eram letras de Chico, de Caetano, de Paulinho da Viola, de Cartola, de Gil...Quando li pela primeira vez “Construção”, de Chico, ou “Janelas abertas nº 2”, de Caetano, experimentei pela primeira vez aquilo que Deleuze e Guattari chamam de “desterritorialização”. Desterritorializar-se é fugir de um território habitual,costumeiro, ordinário.Como diz Manoel de Barros, desterritorializar-se é fugir do acostumado de toda cartilha,incluindo as cartilhas que tentam codificar nossa percepção, nossas palavras  e maneiras de pensar e agir.  
Vista num primeiro momento, a desterritorialização pode ser confundida com um ato de negar um território dado.Os territórios não são apenas físicos,eles também são simbólicos ou semióticos: há os territórios da família,do trabalho, da linguagem, do desejo, da percepção, etc.  Produzir um novo território não significa apenas negar um território atual. Criar não é apenas  negar ou destruir;criar é afirmar, inventar. Então, toda desterritorialização,quando é  libertária, deve ser seguida por uma reterritorialização. A reterritorialização  é a criação de um novo território. Este não  deve ser   mero efeito do primeiro do qual nós nos desterritorializamos. O novo território é uma ruptura, uma criação,uma invenção:  criamos ele, e ele nos cria, nos inventa.
Assim , a linha de fuga não é apenas desterritorialização: ela é também  reterritorialização. Se não houver reterritorialização, a linha de fuga pode acabar em uma mera linha de abolição como linha de morte. Não são poucas as promessas de linha de fuga que terminam em linhas de morte e abolição... Não apenas morte do território  do qual se queria fugir, como também morte nossa mesma, do nosso desejo, da nossa salut, como dizia Espinosa.
Todavia, entre o antigo território e o novo não há uma  linha reta. Por isso, toda linha de fuga é labiríntica, tortuosa, serpenteante, tateante,gaguejante,anexata.Há linhas de morte, ao contrário, que são muito cheias de si e determinadas, “objetivas”. As verdades da intolerância, por exemplo,   são linhas de abolição e morte.
Ao ler aqueles poemas, eu não apenas me desterritorializava : eu me reterritorializava em um território composto de   sensações e afetos que não eram apenas pessoais.O que sei é que tal experiência de leitura me punha mais próximo, ao mesmo tempo, de minha singularidade e diferença e de questões comuns que concerniam à vida dos que resistiam.
Deleuze nos diz que certos signos podem nos produzir noochoques,choques de pensamento.  A desterritorialização não se faz com planejamentos, com atos de vontade e cálculo. Não raro, ela nasce do imprevisto, da surpresa, como a de um vento ou como a de um verdadeiro encontro, como o que tive,menino ainda, com aquela letra, com aquele poema.  E tudo isto cerzido por uma alegria , tal como a que Espinosa ensina. O novo território que tais poesias me  apresentavam  era o território de uma existência intensificada, mais viva. Este novo território não tinha limites ou cercas, ele era ilimitado, aberto, e me  ampliava para além dos muros da escola: me lançava na rua e, antes desta, me inseria no cosmos. A reterritorialização me ligava a tudo através de mim mesmo, redescoberto como poema também. Ela me lançava aos agenciamentos, às conexões.Foi a partir dali que me apaixonei por ler,e que compreendi que todo ler também é um “me ler” e “nos ler” ,sobretudo ler o sentido que nunca poderá ser reduzido apenas a livros e a erudições acadêmicas,teóricas.
Mas toda desterritorialização/reterritorialização se faz em razão da Terra.As desterritorializações relativas nos fazem  habitar um novo território que nasce delas. Mas há ainda as desterritorializações absolutas. Estas nos fazem habitar a indiscernibilidade entre o próprio desterritorializar-se e a Terra.
Ab-soluto:o que não se dissolve.Apesar das aparências,os territórios se dissolvem. E se dissolvem mais tristemente exatamente aqueles que se querem rígidos,estáticos, imutáveis, uma vez que se fecham à Terra, embora possam produzir pseudo-desterritorializações relativas que criam territórios que nada mais são do que um clichê de invenção que o marketing consagra e difunde.
A desterritorialização é relativa quando ela acontece em relação a alguma coisa que tira proveito da alternância de territórios, e tal alternância recebe muitas vezes o nome de “progresso”, tal como o “progresso” que nos fez passar do fax ao e-mail.A desterritorialização é absoluta quando a reterritorialização que dela nasce coincide com a própria desterritorialização enquanto aumento de potência de invenção. A desterritorialização absoluta nos torna nômades : aprendemos a viver na Terra, e a esta descobrimos mesmo na mais simples letra da canção popular.
Somente a arte e a filosofia têm a capacidade de nos produzirem desterritorializações absolutas que nos restituem a Terra,que nos restituem a nós mesmos. A filosofia o faz pelo Pensar, a Arte o realiza pelo Sentir  .E delas pode nascer um Agir enquanto dimensão Ética do encontro. A filosofia e as artes também são agenciamentos e conexões que podem potencializar os agenciamentos e encontros éticos,que são aqueles que  ensejam a ação política .
É a Terra que nos lança em desterritorializações absolutas. A Terra não é nenhum território especifico ou determinado.A Terra não é o objeto da geologia ou da geografia,  mas de uma geofilosofia. A Terra é idêntica a uma desterritorialização absoluta, desterritorialização esta que nunca tem termo, como não tem termo a vida e o infinito.
Então, mais do que a um novo território que um dia poderá se tornar velho,ordinário, é preciso viver a desterritorialização absoluta como afirmação da Terra. A desterritorialização absoluta nos torna agentes.
Os territórios históricos nos tornam sujeitos  históricos em confronto dialético  com outros agentes históricos que defendem outros territórios.Cada um luta pela supremacia de seu território , empregando o direito ou a  força. Mas somente a relação com a Terra nos torna agentes de lutas transversais que não se confundem com os limites e identidade de um território.Tais lutas se travam no seio da vida concreta, e suas armas nunca matam,mas libertam.Não são lutas de  sujeitos históricos apenas,mas de agentes que agem porque neles age o eterno. O eterno é a Terra. A Terra como horizonte absoluto. Somente a Terra nos horizonta. Horizontar-se é abrir-se ao horizonte absoluto  que mantém em processo os territórios, seja o território da linguagem, seja o território da técnica.
Ao ler aqueles poemas,enfim,fui por eles lido. Eu lia neles o sentido que estava em mim, diferente.
Deleuze chama de pop’filosofia a relação entre o pensar e o sentir, entre a idéia e a sensação, entre o conceito e a imagem. “Pop”  significa popular. O popular não é o massificado, o popular não é o que custa barato. Ao contrário, custa muito o popular: custa não em moeda,mas em simplicidade e gosto. O popular não é o que vende muito: o popular é o que não se deixa vender,seja pelo mercado ,seja pelas esmolas do  Estado. O popular não se opõe ao erudito. O popular não se confunde com classe ou gênero. O popular não é o povo por oposição ao Estado. O popular não é classe C, D ou E. O popular é inclassificável.O popular é composto pelo povo que a Terra pede para si. Povo bastardo, mestiço, despossuído, “Ninguém”, como diria Manoel de Barros.Mas ao mesmo tempo povo nobre,como a cartola do Angenor,como o sax de Pixinguinha.
Polifonia: múltiplas vozes,vozes plurais,múltiplas. A polifonia não é a mera associação de vozes diferentes. Ela também não é a mera soma. A polifonia é a produção de uma única voz que se expressa diferentemente em cada voz singular que participa dela. A polifonia é a voz da multitudo, ela é a voz do  popular. Ao ouvir Chico, não ouvia apenas sua voz: ouvia também a minha, inclusive a que tenho hoje. Nela ouvia também a voz daqueles que não tinham voz. Essa voz polifônica falava enquanto sujeito coletivo,pois somente uma voz polifônica pode falar por nós.
O popular é o devir-minoritário de cada um. Do Padrão e do Modelo não há devir, apenas poder. Todo devir é minoritário, afirmam Deleuze e Guattari.Afirmar  e pensar o  devir-mulher não significa tirar o Homem da posição de Modelo e colocar a Mulher.Afirmar e pensar o devir-negro nada tem a ver com tirar o Homem Branco da posição de poder e Modelo e colocar o Negro. O devir-mulher concerne ao homem e à mulher, o devir-negro diz respeito ao branco e ao negro. O devir-negro fende não a identidade do negro, mas a identidade do poder ( potesta) que sempre se coloca como transcendência às potências diferenciais de cada um. A potência é sempre questão de um devir-minoritário.Não há devir maioritário, pois tornar-se padrão ou modelo é deixar de devir.Democracia não é exatamente governo da maioria,mas exercício  dos devires-minoritários que produzem linhas de fuga em relação à potesta do Estado e do Capital.
Toda pluralidade democrática é composta apenas de minorias.Além disso, ser Modelo ou Padrão nada tem a ver com ser maioria, pois os Brancos não são maioria ( numericamente, eles são em menor número). Assim, ser minoria nada tem a ver com ser numericamente menor.  O minoritário do devir-minoritário não pode ser medido por números,quantidades, estatísticas.Um devir-minoritário não pode  ser representado por partidos que cobicem a forma-padrão do Estado.É enquanto devir-minoritário que brancos e negros podem encontrar e produzir o comum que os livra do desejo de poder , do desejo de ser modelo e padrão. O aspecto minoritário de cada um é o que nos faz ter algo em comum. Os padrões e modelos, ao contrário, elegem certos aspectos que apenas alguns têm.Querer ser maior  representa a vontade de querer ser Padrão,Modelo. Quem a isso deseja começa por querer matar aquilo que nele mesmo é seu ser minoritário, sua diferença, sua singularidade, para depois querer matar a diferença que existe fora dele.
Hoje, é o mercado que se quer padrão e modelo. Colocar-se como padrão é arvorar-se como transcendente  às relações diferenciais que constituem o popular. As únicas relações que o padrão aceita são as de modelo e cópia. A diferença está implicada aí,mas como diferença entre o modelo e a cópia, e ainda entre as cópias fiéis e as outras,as más cópias. Mas o popular se constitui por relações diferenciais sem que haja um modelo e cópia. O popular é constituído pelas relações diferenciais de potência.Algo mais potente  nunca se coloca como modelo a ser copiado pelo menos potente. O mais potente afirma sua diferença buscando aumentar a potência do menos potente, tendo como elo a potência da qual cada um é uma parte.
Embora eu não entendesse intelectualmente todos os significados imanentes à letra do Chico,algo em sua letra me soava comum, e por isso me afetava,me ampliava, me singularizava. E aquela experiência não se deu e acabou. Ao contrário,através dela algo começou ou se intensificou, apesar dos meus 11anos apenas.  
Hoje, talvez tenhamos perdido essa dimensão polifônica de uma voz plural que diz o que cada uma quer dizer em sua diferença. Temos ainda a indignação, temos as ruas, nos reunimos pelos caminhos com bandeiras e camisas ( algumas coloridas, outras vermelhas, outras ainda pretas).Mas onde está a nossa letra e  música?A pior solidão é a do indivíduo que apenas grita com sua própria voz no meio da massa. E pior ainda quando essa voz apenas xinga,vitupera,grita... e não encontra sua música,sua letra popular,sua canção de revolta, pois mesmo nesta vive a alegria.Chico nos ensinava que era possível resistir cantando.















(trecho do livro)

Gilles Deleuze criou uma expressão para nomear essas relações entre a arte e a filosofia. Seu nome: Pop’Filosofia. Trata-se de uma concepção da filosofia pensada a partir de suas fronteiras com as artes, sobretudo a literatura e a poesia.
Através de uma pop’filosofia, a filosofia encontra seu deslimite e , ao afirmá-lo, devém também uma prática inventiva, problematizadora, questionante.
Uma pop’filosofia se constitui apoiada na seguinte idéia : a filosofia pode ser compreendida de maneira não conceitual ou acadêmica, sem que isto signifique um prejuízo à essência problematizadora do dizer filosófico.
A compreensão exclusiva através de conceitos é apenas uma das formas possíveis para se compreender a filosofia, mas não é a única — dado que a compreensão de qualquer coisa em geral, e da filosofia em particular, mobiliza camadas de nosso pensamento e de nossa sensibilidade que igualmente são mobilizadas quando ouvimos uma música, lemos uma poesia ou vemos um quadro .

E é nesse território onde o Pensar e o Sentir embaralham suas fronteiras, perdem seus respectivos limites e fazem do inacabamento o processo que os afirma, é nesse território que vemos surgir a possibilidade de construção , com Deleuze, de uma pop’filosofia.