sábado, 25 de janeiro de 2014

carpe diem





O excesso de ciência, 
tanto quanto o de ignorância,
desemboca em negação.

Balzac

Na ciência, a experiência é considerada como um pequeno momento de “abertura” à realidade, realidade esta que se quer conhecer e determinar. Nessa abertura, nesse “encontro”,  a razão procura confirmar suas hipóteses,hipóteses estas que ela cerziu e matutou em seus silolóquios consigo mesma, ávida por desfazer suas dúvidas : ela tem  a pretensão, a racional pretensão,  de erigir  certezas, regularidades , evidências, leis,isto é, um mundo controlável,previsível,dominável,enfim, “desencantado”.
Na filosofia e nas artes,não se procede por “experiência”, e sim por experimentação. A experimentação  é o acontecimento que abre o pensamento  àquilo que não pode ser circunscrito, limitado, cercado.A experimentação descobre uma forma muito singular de encantamento.
A experimentação  é abertura radical ao encontro. A experimentação cura o pensamento de sua loucura por  hipóteses e interpretações a priori . A vida não é uma hipótese,ela é uma matéria a experimentar e inventar. A experimentação não é apenas um momento de abertura; diferentemente,ela é abertura  que não pode ser medida por momentos,por mais longos que sejam do ponto de vista do relógio: a experimentação dura intensamente como afeto pelo incomensurável,posto que infinito. Ela é visão intuitiva  da paisagem absoluta.
A experiência científica  pode ser produzida e reproduzida em laboratórios,sempre ao redor de um objeto; ela pode ser suscitada em um ambiente artificial , ou acadêmico, passível de controle,visando minorar os riscos, as decepções,os insucessos, as perdas. Já a experimentação poética,tal como o terceiro gênero de conhecimento de Espinosa, prescinde de objeto, faz-nos agentes. Tudo pode ser laboratório para ela: a perda,o insucesso, a dor, o cotidiano, o risco...mas também a alegria,o amor, a coragem...A experimentação poética não existe para confirmar fórmulas,mas para dar sempre nova forma ao informulável,ao impensável,ao sublime.
Na filosofia se  diz “anipotético” o que existe para além de toda hipótese ou dúvida. Não se atinge o anipotético  fazendo proliferar as hipóteses sobre ele.Como ensina Bergson, as hipóteses se acercam do objeto, circundam-no,medem-no, mas nunca entram, de um salto, em seu interior,ao passo que o anipotético constitui o íntimo do ser do qual o objeto é só um invólucro. As hipóteses,ou as dúvidas,não são escadas para se atingir o anipotético, assim como não é subindo incontáveis degraus de uma escada que,chegando lá encima , se aprenderá a voar .Aliás,os degraus da dúvida são sempre de descida ou  subida, vez que conduzem ao  cético pragmatismo ou ao ascético idealismo; mas o voar,sobretudo o “voar fora da asa”,  começa sempre no chão,assim como a experimentação se inicia no horizontal  desejo, e não na vertical razão.
O anipotético não existe para desfazer  as hipóteses, assim como a luz não existe para negar a escuridão,mas para afirmar a ela mesma: é afirmando a si mesma que  a luz  já desfaz a escuridão . Não é negando esta última que a luz  afirma o que ela já é,pois se assim fosse, teríamos que supor que a escuridão existe tal como existe a luz.Mas a escuridão é tão somente a ausência da luz; logo, a luz não existe para negar sua ausência,mas para afirmar sua presença. Nesses assuntos, diz Espinosa,não há debate ou persuasão: basta abrir os olhos para ver,sobretudo os olhos do espírito.O que vale para a luz, vale para o conhecimento: este não é um negar a ignorância,mas o afirmar a si mesmo como aquilo que desfaz toda  ignorância,sobretudo a ignorância de um conhecimento apenas hipotético.
O anipotético não vem depois de esgotarmos as hipóteses,ele vem antes, assim como o dia vem antes da noite,pois a noite , a noite poeticamente experimentada, pode ser  o momento no qual  ligamos a Terra à luz dos infindáveis dias   que se irradiam de cada distante estrela que vemos no céu, pois cada uma delas é um sol que só conhece dia, o dia que ela mesmo produz. Sol e estrela são dois nomes pelo qual atende o mesmo acontecimento ao mesmo tempo físico e espiritual, corpo e idéia.
Dessa maneira, o dia assim polifonicamente  experimentado ,dia este do qual o do nosso sol é uma expressão finita ,  este Dia infinito e multifacetado  não é aquele que passa junto com as  horas e se opõe à noite, como Apolo a Dioniso; diferentemente, este Dia poeticamente multiplicado por sóis inumeráveis é o  do carpe diem : dia ilimitado ,  agenciamento de Dioniso-Apolo. Este Dia pode ser experimentado em cada dia , fendendo os limites deste, e nos deixando ver   sua  potência e  forma sem limites,sem contornos,posto que em processo,”fontanamente”, como diria Manoel de Barros.Assim experimentado, cada parte desse Dia é sempre  uma Aurora, como dizia Nietzsche.
O Cristo de Espinosa é expressão amorosa desse Dia, desses infinitos dias que  mesmo sob a noite se pode ver , desde que não faça noite na alma que olha, pois é desta última noite que se vale Mefistófeles em seus   serviços  sempre noturnos,mesmo que oferecidos em pleno  meio-dia.Só há noite na alma que odeia.
 É o anipotético que é primeiro, não o hipotético. A verdade que a ciência hipotética alcança sempre vem depois da dúvida, depois da crítica. A “verdade” anipotética é idêntica à experimentação , ela é inseparável do sentido que a expressa e afirma ( que, além de crítico, é também clínico). 
Há sempre uma angústia que acompanha os seres que creem nas hipóteses e na precedência da dúvida em relação à verdade, da  escuridão em relação à luz. Mas nem sempre esta verdade alcançada pelo racionalista  se torna apta para curar suas angústias: não raro, as aumenta, para o deleite e préstimos de Mefistófeles. 
O conhecimento do anipotético é inseparável de uma experimentação poética da qual nasce um afeto de alegria  que não duvida de si mesma,por mais simples,discreta  e modesta que seja. 










quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

O deslimite ( como um solo de Coltrane )






Poesia pode ser que seja fazer outro mundo.

Manoel de Barros


Trata-se de captar um "devir mundial" tal como ele surgiu entre os gregos ,
como ausência de origem, e tal como ele surge para nós agora,
deviando-se de todas as finalidades.

Gilles Deleuze


(trecho do livro)

A poética é grega. Ela se vincula não apenas à Grécia histórica a Grécia de Homero, Hesíodo, Ésquilo, Mênon, Heráclito, Protágoras, Diógenes,Demóstenes..., mas também à Grécia enquanto Terra que serve de imanência a todos os territórios, inclusive o Pantanal. Enquanto imanência do pensamento e da sensibilidade, a Grécia é a Terra de Lucrécio, Hume, Godard, Marx, Visconti, Artaud,Lima Barreto, Gláuber, Clarice Lispector, James Joyce, Proust, John Coltrane, Nietszche, Van Gogh, Rimbaud...Este é seu povo, ao mesmo tempo aristocrático e popular, em permanentes rebeldias contra o clichê e contra as mais variadas formas de opressão e banalização da vida. Quando evocada pelo pensamento e pela arte, esta Grécia torna-se um nome que é, ao mesmo tempo, a conjugação de dois verbos: Pensar e Sentir. Uma Grécia onde não existem mais “rei nem regências” de poder, mas potências criativas que, em seus deslimites, nos deixam ver a Vida.




segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

manoel de barros: agenciamento, intercessor , "outsider" ( trecho do livro)






Encontra-se em Gilles Deleuze as coordenadas de uma filosofia do agenciamento, uma filosofia do aprender a andar ao lado de nossos intercessores.
Curiosamente, a expressão “intercessor” remonta à Bíblia, e designa aquele que “abre as portas do céu”. Um céu que não é apenas exterior, mas também interior. Em Deleuze, o Céu é uma das imagens da Terra. E o intercessor que nos leva a ela pode ser inúmeras coisas: não apenas um livro de filosofia, uma música, um poema, enfim, uma obra de arte também podem sê-lo com a condição de aprendermos a andar ao lado desses intercessores, com as pernas de nosso pensamento e de nossa sensibilidade.
                                                                                                                               
[Um intercessor não nasce da intercessão de opiniões idênticas ou semelhantes, mas do produzir singularmente uma área de afeto onde não se diz mais "eu" ou "outro": ousa-se dizer um "nós", mesmo que ainda em balbucio ou gaguejando.Um nós não nasce da intercessão de conjuntos com contornos delimitados, pois o intercessor é um "outsider", um "lado de fora" que incorporamos lá onde deveria estar um contorno, para assim inventarmos limiares.O "lado de fora" não é um fora que se opõe a um dentro, mas abertura para o fora que se faz de dentro, encontrando um intercessor . Um intercessor é "aquele que intercede a nosso favor". Mas intercede em relação a quais assuntos e diante de quem?Os assuntos que pedem intercessores são sempre aqueles verdadeiramente essenciais para que nós possamos , como dizia Nietzsche, "nos tornar nós mesmos".O intercessor intercede por nós diante da vida, diante do cosmos, diante daquilo que não podemos conhecer; ele é mão estendida que sempre puxa para cima: não exatamente para cima de um palco ou de um pódio, mas para um ponto onde nos distanciamos de nós mesmos, para assim aumentar nosso horizonte e perspectiva. Ele intercede sobretudo diante de nós mesmos, tornando-se a ponte entre nós e aquilo que verdadeiramente somos. Contudo, um intercessor não existe com uma etiqueta nos avisando:"Eu sou seu intercessor". Não raro, o intercessor está imperceptível aos olhos daqueles que olham mais para os outros do que para si : embora o intercessor possa estar maduro para eles, são eles que ainda não estão maduros para encontrar o intercessor. De certa maneira, somos nós mesmos que produzimos nossos intercessores quando,ativa e singularmente, desejamos produzir a nós mesmos, fato este que expressa não apenas discernimento e virtude, mas também arte ]









domingo, 12 de janeiro de 2014

espinosa: o corpo e o espírito








O andarilho alimenta de pernas as distâncias.
Manoel de Barros


A água pode apagar o fogo. Mas a água não existe com a finalidade de apagar o fogo. Basta ela existir como água, basta ela ser o que é, para o encontro dela com o fogo destruir este último.Esta destruição de uma outra existência, que nasce da simples afirmação de si próprio,  nada tem a ver,contudo,com um ódio: o teria se imaginássemos que ela o destrói por alguma finalidade, o que resultaria em considerar a água como boa e o fogo como mau. A água é: é sendo água que dela resultam certos efeitos, como o matar a sede, o apagar o fogo, etc. Estes efeitos se explicam pela essência da água, pela sua maneira de ser.A água não escolheu ser água: ela simplesmente o é e se esforça  para continuar sendo.Disto procede sua alegria e júbilo.Alegria e júbilo de água que ama ser o que é, e que ,portanto,não sente a menor falta ou carência de ser outra coisa,mesmo o ouro.Sendo água, sendo o que já é, a água já é livre, e seria um absurdo supô-la querer ser outra coisa; ou já sendo água,querer no entanto ainda  sê-lo. A água não existe como um todo à parte, ela existe como parte de um todo que não é  apenas água, pois é também fogo.
O que vale para água vale igualmente para tudo o que existe,incluindo o homem. O homem não pode escolher ser um homem, pois ele já o é antes de toda escolha.Ele pode, sim, escolher ser um lobo, ou uma hiena,ou uma cascavel, e imitar o comportamento destes seres, sendo ainda um homem. Mas a escolha por ser tais coisas não o torna tais seres, e sim o diminui enquanto homem, embora ele imagine que o aumente.O homem livre não escolhe ser homem, ele simplesmente afirma o ser que já é:ele se afirma como maneira ou modo do ser que não é apenas homem, pois também é a cascavel,o lobo , a hiena, mas não como tais seres são quando os quer imitar um homem que ignora o que é ser homem.
O "querer" é uma atividade da vontade, e esta faculdade se move no âmbito das escolhas. A questão da escolha introduz o tema da "finalidade", na qual a liberdade é precedida, imaginariamente,  por um ato de escolha. Mas assim como a água não pode escolher não ser água, já o sendo, o homem também não pode escolher ser um homem, já o sendo, já o sabendo. Este é o ponto: para escolhermos entre uma coisa ou outra, é necessário que saibamos o que uma coisa ou outra são. É necessário, antes de toda escolha,o pensar. Se já sei,pelo pensar, o que é um homem, também existirei como um, pois não existe pensar autêntico separado de um modo de vida.
A ontologia, o plano do que já se é, antecede o da moral, que é o da escolha finalística, imaginária.E o que já se é , o plano da ontologia, envolve sempre um grau de potência.Quando imaginamos que o que somos,ou o que seremos, depende de um ato da vontade, isto ocorre porque ainda não compreendemos, e experimentamos, a potência libertária do desejo, que é sempre mais próxima ao corpo e à vida do que a vontade.Esta é instrumento apenas da  alma, ao passo que o desejo o é do espírito e do corpo.
Quando escolhemos um caminho, podemos depois constatar que erramos na escolha, se orgulhosos não formos.  Muita teimosia  pode preceder ao reconhecimento do erro. E quanto mais poder se tem, mais o erro pode ser sustentado como se fosse acerto. Porém, pode vir o momento, cedo ou tarde, em que as palavras, ou o dinheiro,  não mais podem criar cenários que escondam o vazio que rodeia o outrora decidido.Pode-se ter a vontade de ser muitas coisas, mas se deseja sempre o que já se é.Ter a vontade  de ser algo não requer nenhum esforço: basta  inteligência e imaginação; mas afirmar o desejo não se faz sem esforço ( o conatus), tal como toda obra singular que é precedida pelo esforço do treino, do exercício ( e não há menos alegria e júbilo no esforço do rascunho do que na obra pronta, pois esta é também rascunho, no infinitivo).
Quando passamos ao desejo, à potência,já nos achamos no caminho. O caminho não precede os passos.Não se afirma o caminho sem afirmar também os passos, sobretudo aqueles que devemos dar com nossas próprias pernas.É um caminho, no entanto, que não se percorre sem riscos,pois nele não existem placas de sinalização dizendo para onde devemos ir, nem “parapeito ou baliza”, como diz Deleuze.
Os passos  que o percorrem não são apenas os dados com as pernas, pois também o pensar é um passo que também se liga aos de nossas pernas, e pensa o rumo de ambos.Esse caminho se rascunha sem que lhe pré-existam modelos prévios de verdade,embora ele já possua sua verdade que nunca é prévia ao percurso, ao processo, já que  é uma verdade imanente ao pensar e agir que a engendram como aquilo que os põe de acordo consigo mesmos, e de resto com toda a natureza.





segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

trecho do livro





Encontramos esboçado em Gilles Deleuze um dos problemas que tencionamos desenvolver, pois nos parece que ele toca de perto aquilo que em Manoel de Barros constitui a experiência do deslimite. Afirma Deleuze que

"Escrever não é certamente impor uma forma (de expressão) a
uma matéria vivida. A literatura está antes do lado do informe
ou do inacabamento. (...) Escrever é um caso de devir, sempre
inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer
matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma
passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido".( Deleuze, Crítica e clínica, Ed. 34, p.11)

A Vida é renascer constantemente, a todo tempo e instante. Por conseguinte, a Vida é metamorfose, arte. A Vida nunca nasce, quem nasce são os indivíduos. A Vida sempre renasce nos indivíduos que nascem. A Vida, portanto, é puro renascer: por nunca nascer, a Vida também jamais morre (quem morre são os indivíduos). A Vida não é uma, mas muitas: são todas as que tivermos a potência de inventar e criar, conjugando nosso viver com a Vida que em si mesma é criação, Arte.
A Vida é um processo que atravessa nosso vivido e rompe os limites utilitários deste; do mesmo modo que o Sentido , quando trabalhado pelo poeta, emerge na linguagem extravasando as significações dominantes que prescrevem à palavra um limite. O deslimite é o processo que faz do inacabamento o estado sempre renovado que não deixa com que as coisas acabem, sendo então reinventadas pelo processo criativo tanto na poesia como na vida.


quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

o espelho de espinosa

Os espelhos côncavos e convexos alteram as coisas. Existem  ainda os espelhos de bufonaria, que distorcem as coisas, deixando-as mais feias ou ridículas do que de fato são. Há  espelhos que aumentam o que é pequeno: eles são antíteses daqueles que diminuem o que é grande. Um espelho pode ser o melhor possível, mas pouco ou nada refletirá se estiver sujo. O espelho comum, o espelho plano, é aquele no qual nos procuramos: nele vemos, com nossos olhos, os nossos olhos vendo-nos. Tal espelho reflete o que somos no momento: ele não mente,e nisto é mais confiável do que a palavra. Todavia,  ele não mostra a face de ontem ou a que será, mas sempre a face de agora,cuja constância não é confiável.O espelho mostra o rosto enquanto parte do corpo, ou pode mostrar o corpo inteiro, se grande o espelho for. 
Mas e o espírito, que espelho o mostra?Segundo Espinosa,o espírito é,ele mesmo, um espelho. Como tal, ele reflete. O espírito  pode ser um espelho de duas maneiras, cada uma delas completamente diferente da outra.
Primeiramente, na vida comum, o espírito se torna imaginação ( imaginatio que reflete  o que ele imagina que as coisas e as outras pessoas são.A imaginação está sempre a imaginar, não a conhecer. O espelho comum  reflete as coisas  porque atrás dele há o aço ou algo fosco  que impede que a luz atravesse o vidro. Na imaginação há um equivalente do aço ou do fosco: são as afecções ou paixões,sobretudo as tristes. As paixões , assim como o aço,impedem que a luz da realidade atravesse o espírito e o torne translúcido a si mesmo. A imaginatio é a opacidade que o senso comum chama de realidade, tal como a hipótese da Matrix
No espelho concreto,porém, o aço faz com que a luz retorne tal como ela tocou o vidro,para assim devir imagem; já na imaginação a paixão emite apenas a si mesma na luz que recebeu. A imaginação passional é como um espelho que recebe luz mas devolve aço, emite o fosco,de tal maneira que ela é um espelho pelo avesso: crê receber o que de fato emite, ignorando o que emite.Na verdade, quando se torna apenas imaginação, o espírito é como um espelho que a nada reflete,a não ser a sua impotência para refletir.
Mas existe ainda outra forma de o espírito ser espelho. Todo espelho se explica por aquilo que vem nele se refletir. Na imaginação, vem se refletir apenas  o que, de fora , age sobre o corpo. A imaginação reflete esse agir das coisas corpóreas sobre o nosso corpo; a imaginação  é a alma reagindo a este agir das coisas sobre nós.Contudo, ela ignora este agir e imagina que as coisas que estão nela nasceram exclusivamente dela,como se ela fosse livre e pairasse acima das coisas corpóreas. Não raro, a imaginação até mesmo despreza as coisas corpóreas e delira que a inspira uma divindade com a qual ela mantém relações privilegiadas, divindade esta que a ajuda a ver o futuro ou mesmo outras vidas, além de dotá-la de poderes que fogem à compreensão da ciência e das coisas terrenas. Todavia, a imaginação passional   ignora que aquilo que ela imagina  nascer apenas dela, nasce na verdade de causas físicas e explicáveis pela natureza, a mesma natureza que ela despreza.
Segundo Espinosa, o próprio espírito é um espelho, um espelho distinto da imaginação. E o que o  espírito, enquanto espelho, reflete?Ele reflete o que nele vem mirar-se. E o que vem nele se mirar?O infinito. O espírito é um espelho que reflete o infinito. Da mesma forma que olhamos de manhã em um espelho para conhecermos  como está nosso rosto, o espírito é um espelho no qual podemos ver/conhecer o infinito: este  é uma aurora que nunca escurece,pois não o pode turvar  o fosco.
O infinito nunca aparece ou pode ser conhecido à parte de um espírito que o reflete, um espírito singular .  Um espírito que  reflete o infinito não é exatamente o que mais livros leu,tampouco o que tem títulos acadêmicos e que tais. O espírito que reflete o infinito é aquele no qual se reflete a simplicidade, a modéstia, a firmeza , a generosidade ,a inventividade, o amor e, também, a coragem. Antes de qualquer coisa, nesse espírito se reflete o corpo do qual esse espírito é o espelho imediato. Contudo,  o corpo não surge sozinho, tampouco aparece como um corpo imaginário,vaidoso , narcísico. O corpo aparece agenciado e conectado com o universo inteiro.Não é mais apenas um corpo que sofre a ação de outro,  assim padecendo;diferentemente, quando refletido no espírito, o corpo se torna a expressão ou parte ativa da Natureza. Refletindo seu corpo, o espírito reflete/conhece a si mesmo como parte do infinito que reflete.

Para Espinosa,o homem não foi feito à imagem de Deus, pois imagem é reflexo,  imagem  não é espelho. Ser apenas reflexo é o que caracteriza a imaginatio, ao passo que ser espelho, e refletir, é o que expressa o espírito. O homem não é imagem ou reflexo de Deus,ele é o espelho que reflete o infinito, assim pensa/reflete Espinosa.  O espírito reflete o infinito não como uma imagem,  ele o reflete como afeto e  ideia. O homem livre não é o que vive à parte, ele é  o que vive ou se esforça por viver de acordo com aquilo que seu espírito reflete. O homem  da imaginação vive como um reflexo das coisas,ao passo que o homem livre se esforça por viver de acordo com aquilo que seu espírito reflete. A luminosidade translúcida da realidade que nele se reflete já o lustra e o torna apto a refletir ainda mais adequadamente, potentemente, ativamente  - assim o  libertando do aço refratário do passional  e do fosco das opiniões. 

Mille Deleuze

domingo, 24 de novembro de 2013

Espinosa: o geógrafo das paisagens da alma



Muitas traduções da obra de Espinosa perdem em clareza quando não atentam para a distinção entre dois termos : afeto e afecção. Algumas traduções, as mais danosas para a compreensão do pensamento de Espinosa, traduzem ambas por uma única palavra: "paixão". Outras ainda as traduzem por "sentimento". E há aquelas que mantêm apenas o termo afeto,reduzindo o sentido de afecção à mesma coisa que afeto.Todos esses procedimentos lançam confusão não apenas sobre o que Espinosa quer dizer, como também sobre o próprio sentido desses termos em nossas vidas diárias. Sem dúvida, a dificuldade maior para os tradutores reside no sentido do termo "afecção" ( affectio, em latim).Isso porque há um certo materialismo no sentido original deste termo, fato que os tradutores mais idealistas ou espiritualistas reputam indigno de colocar de forma essencial na compreensão de todas as coisas, inclusive o homem. Mas é um erro conceber o termo afecção apenas em sua acepção materialista.
Etimologicamente, afecção pode ser traduzido por "tocar", no sentido de que o artesão toca o barro, o pintor toca a tinta, o sol toca o nosso rosto, etc. A afecção é uma ação de um agente ( nos exemplos dados, o artesão, o pintor e o sol).Ao tocar aquilo que ele toca, o agente produz uma modificação naquilo que ele toca. Essa modificação é sempre instantânea, e modifica o corpo tocado.Nos exemplos que demos, a afecção é a modificação que um corpo sofre ( a tinta, o barro, nosso rosto) devido à ação de um outro corpo que lhe permanece externo. Esse primeiro sentido de afecção envolve a relação de determinação de um ser finito sobre o outro ( mesmo o sol, embora imenso, é um ser finito tanto quanto o nosso rosto que ele toca).Ora, toda ação engendra um resultado, um efeito. O efeito ou resultado de "tocar" é "ser tocado". O "ser tocado" é um índice ou sinal de que houve um "tocar". O ser tocado não é uma ação, como o tocar, mas um resultado, um padecer. O fato de ser tocado torna um ser paciente, no sentido de ele ser aquele que sofreu a ação.Enquanto o tocar é imediato, o ser tocado é sempre mediato: ele expressa uma ação que se fizera. O tocar envolve sempre uma percepção, ao passo que o ser tocado permanece existindo apenas na memória ou na imaginação, como uma imagem presente de uma ação ausente. Ou melhor, essa imagem se torna presente pelo esforço que nossa alma faz para recordar ou imaginar o tocar que se fizera em seu corpo, e do qual a imagem é o resultado, o indício ou signo. Na verdade, o ser tocado é a continuação do tocar persistindo na memória ou imaginação daquele que sofreu a ação. O "ser tocado" é exatamente o sentido de afeto ( em latim, affectus).
Vista da perspectiva do corpo que age, a afecção é um agir, um tocar. Entretanto, como ela nasce de um encontro de um corpo com outro, a afecção produz, no corpo que sofre a ação, uma marca, um indício, um vestígio. Esse vestígio ou marca não é um ser, ele é uma ausência do ser que agiu e produziu a marca. Então, no corpo passivo a afecção é esta marca da qual nasce a idéia que lhe é correspondente. Ora, uma ideia não nasce no corpo, ela nasce na alma. A ideia nascida dessa marca, dessa ausência, será exatamente o afeto.Tal idéia, por isso mesmo, será dita confusa, uma vez que uma idéia adequada expressa sempre a existência de um ser, e não a ausência dele. A idéia confusa também é chamada de “imagem” por Espinosa.É por isso que o afeto nascido da afecção é uma paixão.A paixão revela mais o estado do corpo que sofreu a ação do que a essência do corpo que agiu. Mas o corpo que sofreu a ação imagina que a idéia que nasce da ausência do corpo que agiu pode nos fazer conhecer o corpo agente. Essa idéia confusa se alimenta da ignorância de como ela nasceu, ela pressupõe a ignorância de que a afecção é ação de um corpo também. Quando compreendemos isso, percebemos que a afecção é uma ação inserida em uma Natureza que é Causa da ação de tudo que existe, posto que a Natureza é sempre Agente. As idéias confusas, as paixões, nos deixam reféns das imagens, dos efeitos. Sob as paixões, confundimos o efeito com a causa. Se as paixões nascem de ausências, por que elas têm tanta força sobre a alma?
Para Espinosa, é a alma que extrai de seu próprio ser a força para dar existência ao que é um mero efeito, uma imagem, um fantasma. É por isso que as paixões alienam a alma e impedem que ela se torne ativa. A alma se torna ativa pela compreensão nascida das idéias adequadas, que sempre expressam o que existe, e não a ausência do que existe alimentada pela impotência da alma para existir plenamente. Quando compreendemos que as afecções são sobretudo ações, e não o mero resultado passivo delas, conseguimos nos libertar da condição passional de sermos um mero resultado da ação das coisas sobre nós. Além disso, mesmo quando alguém se comporta movido por uma paixão, sobretudo as tristes, tal reagir também é uma ação: uma ação que pode menos do que poderia aquele que assim padece se ele de fato agisse de forma livre, alegre, potente. Quando compreendemos que tudo é ação, positividade, mudamos nossa perspectiva no entendimento daquilo que comumente chamamos de bem e mal, pois percebemos que nenhuma ação , nenhum existente, é um bem ou mal em si. Quando compreendemos a positividade da afecção, compreendemos que ser é existir, e existir é agir: mesmo na ação a mais pequena do mais ínfimo ser, intuímos a Ação da Natureza que nunca age visando outro fim que não seja sua própria Ação, sua própria Existência,que em nós se expressa como ação da alma, o compreender, e ação do corpo, o agir.Ser ativo não significa exatamente fazer muitas coisas que exigem músculos, movimentos agitados e "adrenalina", pois ouvir é uma ação, olhar também o é, e há uma virtude ativa em saber se calar ( segundo Espinosa, o "falar", o "falar muito" sem saber ouvir, é uma paixão muito comum em quem não tem realmente o que dizer).
De um certo tocar pode nascer o afeto do amor ou da amizade como resultado ou efeito ( as paixões alegres), ao passo que de um outro tocar pode nascer o ódio ou o rancor ( como paixões tristes). E o mais estranho: o afeto não é o tocar, mas o resultado acompanhado da idéia confusa ou imagem deste. É por isso que de um mesmo tocar pode nascer , em uns, o amor, em outros, o ódio . Por exemplo, o funk toca da mesma maneira, fisicamente falando, aqueles que o amam e os que o odeiam, pois o amar e o odiar não são o tocar, mas o resultado dele de acordo com a constituição ou modo de ser de cada um: de acordo com a maneira de ser de cada um, de um mesmo tocar nascerão afetos distintos; se uma pessoa se modificar, ou buscar viver de forma desalienada, o que hoje lhe provoca um amor passivo amanhã talvez não lhe provocará mais.Não podemos negar a existência de uma afecção, porém o vínculo entre a afecção e o afeto que dela nascerá dependerá do quanto somos passivos ou ativos diante daquilo que nos acontece. Não há uma causalidade férrea que determine que de uma determinada afecção nasça um afeto determinado. Quando compreendemos as razões que fazem uma afecção existir, nos tornamos capazes de desfazer os laços entre a ação das coisas e nossas reações em relação a elas, sobretudo se tais laços nos fizerem escravos ou passionais, isto é, incapazes de governarmos a nós mesmos.
Os tradutores mais apressados costumam então referir a afecção às modificações do nosso corpo causadas pela ação de outros corpos, ao passo que o afeto seria uma modificação nascida em nossa alma que espelharia a modificação gerada em nosso corpo. Todavia, essa visão dicotômica se torna incongruente quando nos debruçamos sobre um outro sentido de afecção, dessa vez referida não mais aos seres finitos, mas a Deus ou a Natureza. Tudo o que existe, segundo Espinosa, é uma modificação de Deus. Logo, tudo é uma afecção de Deus. As coisas nascem do tocar de Deus. Mas a quem Deus toca? Ora, por ser único, e tudo, Deus não pode ser tocado por algum outro ser que lhe seja externo. Se isso fosse possível, este ser teria que existir à parte de Deus. Todavia, se Deus ou a Natureza é, em Espinosa, tudo, não pode haver algo distinto dele , pois isso seria limitá-lo, o que é um absurdo. Assim, e isso parece e é poesia ( no sentido original de "poiésis", produção), Deus é um tocar que toca a si mesmo. É Deus que produz em si mesmo tudo aquilo que é uma modificação ativa dele mesmo. Deus é imanente a tudo: o que ele produz permanece nele, pois cada ser é uma maneira dele mesmo, uma modificação singular dele . Cada ser que existe é uma maneira de ser de um mesmo Ser que se expressa de infinitas maneiras. Em Deus, a afecção , o tocar, e o afeto, o tocado, são identificados à Potência divina de Existir.Todas as afecções de Deus existem de forma necessária. Em Deus, portanto, só há um afeto: o Amor. Das afecções de Deus não pode nascer outro afeto que não seja o Amor, e isto por uma necessidade que é idêntica à liberdade, necessidade esta que é imanente a cada ser singular que existe.Ser livre não é fazer o que quiser ou seguir uma inclinação, ser livre é agir de acordo com essa necessidade que produz o Amor. A identidade do tocar e do tocado, da afecção e do afeto, é o Amor que nasce do Amor: e por ele, nele e com ele nascemos nós mesmos como expressão singular de sua autoprodução.É a experiência desse Amor que leva o poeta, como afirma Manoel de Barros, a dizer “eu-te-amo a todas as coisas”.Esse Amor é uma Ação, não uma paixão ou um padecer. Esse Amor é uma Ação: ele é ação de produzir autoproduzindo-se , ele é Poiésis.
Somos uma modificação de Deus; logo, somos o resultado ou o produto desse Amor em Obra. Deus e o Amor são o mesmo, assim como são o mesmo, nele, o agente e o paciente. Ou melhor, em Deus há apenas o Amor como Agente: o paciente fica por nossa conta, quando desejamos aprender a Amar esse Amor, pois é com paciência que se o pratica. O afeto nascido assim é idêntico à idéia adequada que aprendemos a fazer de nós mesmos e da Natureza.
Deus é Ação, jamais uma paixão. Por não ser paixão, Deus jamais tem raiva ou fúria, tampouco pode modificá-lo o que os homens fazem ou deixem de fazer. Ele não espera devoção ou culto, nem obediência, pois somente os tiranos vaidosos, passionais, a isto querem.Deus não recompensa ou castiga. Ou melhor, a única recompensa é compreendê-lo, e viver de acordo com o Amor que ele é.Somos o produto desta Ação, somos uma parte dessa Ação, e compreender isso não se faz sem a Alegria que é idêntica ao Amor.Se somos um produto da Ação, é nossa essência o agir, e não o padecer ou sofrer.Deus é Perfeito porque ele é Ação de modificar-se: e é por essa razão que o homem mais sábio é aquele que se esforça para aperfeiçoar-se, e isto consiste em modificar-se. Em Espinosa, tudo o que existe é uma modificação ou afecção de Deus. Não apenas os corpos, as ideias também são afecções de Deus. Nesse sentido, há afecções que não são materiais, embora sejam tão reais quanto os corpos. Quando experimentamos e compreendemos nosso corpo e nosso espírito como afecções de Deus, dessa compreensão nasce um afeto que é a expressão de que somos tocados por aquele Amor, e a partir dele tocamos, produzimos, agimos, enfim, existimos.
Não existe o "mal em si", existe o mau em nós, não fora de nós. O mau é tudo aquilo que diminui nossa força, nossa potência.O mau é a tristeza e o ódio.Estes não existem fora de nós, eles não são ações, mas reações, padeceres.A tristeza e o ódio existem em nós como aquilo que diminui nossa existência e nos afasta de nossa saúde ( salut). Não é a partir de outra coisa, uma coisa que lhe seja exterior, que o homem age ou existe, já que toda ação se constitui  de acordo com a relação com a Potência que lhe é imanente. Não é subordinando-se a "fins externos" , teleológicos, que o homem age, pois toda ação nasce da nossa afirmação da Potência que é Ação Pura, Potência esta que não existe exterior a si mesma.É em relação com essa Potência ou Força que a alma conquista sua própria força e potência, sua confiança, sua virtu, sua firmeza, o que a torna apta para tomar posse de si mesma. Só quem dispõe de si pode exercer a generosidade.A Moral exige que a alma tenha força sobre o corpo, para assim dominá-lo e reprimir suas inclinações.A Ética de Espinosa afirma, ao contrário, que a alma só se torna potente quando conquista sua própria força,  agindo a partir desta.



   O geógrafo, de  Vermeer ( segundo alguns, é Espinosa, o próprio, que é retratado por Vermeer como um "geógrafo")

sábado, 16 de novembro de 2013

Cláudio Ulpiano





O PAPEL DA METÁFORA
(manuscritos de Claudio Ulpiano)



- Só a boa metáfora pode dar ao estilo uma espécie de eternidade



O estilo é uma questão de visão e não de técnica. A metáfora é a expressão privilegiada de uma visão profunda: que ultrapassa as aparências para atingir a essência das coisas. O repúdio ao realismo, à arte das notações, que se contenta em dar das coisas uma miserável relevância.


- Liberar as coisas da contingência do tempo pela metáfora

A metáfora não é um ornamento, mas um instrumento necessário para o estilo: para a visão das essências (não para que as essências sejam vistas, como em Platão, mas para que elas vejam, como nas mônadas).

Se o verdadeiro eu não pode viver senão fora do tempo, é que a eternidade é o único meio onde ele pode gozar a essência das coisas.

- Aqui neste escrito, a memória involuntária vai ser observada como se fosse pela primeira vez. Então nem é bom perguntar o que é a memória involuntária, mas como [ela] aparece.

"A memória involuntária só intervém em função de uma espécie de signos muito particulares: os signos sensíveis”.

As reminiscências são metáforas da vida.

As metáforas são reminiscências da arte.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

o muito


Mais importante do que o pensamento
é aquilo que faz pensar.
Proust

O Deus de Espinosa, a Natureza,  é um muito, nunca um pouco. Uma parte do muito é sempre muito, desde que se saiba ver o valor do pouco.Deus é muito porque ele precisa de pouco: pois  ser muito  é depender de pouco para se ser o que se é.Deus é muito porque ele depende apenas de si para ser o que é: cada parte dele é muito porque depende apenas de si para ser expressão dele.
Quando o muito é verdadeiramente muito,uma parte dele nunca é pouca,mesmo que seja a mais simples. O muito não é feito do mero somatório de poucos.O muito autêntico não pode ser medido por números ou quantidades. Mas se saber  parte do muito requer muito, sobretudo requer o  muito de coisas que não se pode comprar, ou herdar, ou furtar.É um muito de potência, é um muito de se deixar afetar. Quem vive como parte desse muito é sempre livre, pois inexiste prisão que possa contê-lo, seja a prisão feita de concreto ou aquela mais sutil,mas não menos tolhedora: a cela  das opiniões  e verdades prontas, sejam as verdades seculares ou aquelas mais midiáticas, das quais a cada dia o sistema lança um modelo novo.
O muito da Natureza não é um muito que possa ser diminuído ou aumentado, pois é um muito infinito ( e se o infinito pudesse ainda ser aumentado, não seria infinito, e se pudesse ser diminuído, deixaria de ser infinito). O muito de Deus é o muito da generosidade, da criatividade, da produtividade. O muito não se conquista por acúmulo de coisas poucas. O autêntico muito é ser muitos, é expressar-se de muitas maneiras, e estar inteiro, íntegro, em cada maneira, seja diante do Rei ou do simples mendigo.
Ser muito não é ser muito de uma coisa só, como o oceano que é muito apenas de água, ou o banco que tem muito apenas de moeda. Ser muito é ser composto de coisas heterogêneas, de coisas raras.O muito de Deus é que cada coisa, por menor que seja, é um muito para ele, e ele não a despreza, pois essa coisa também é ele.Deus é único,singular. Se ele fosse dois, não seria Deus. E este é seu muito: ser raro. Cada parte dele só se sabe muito se aprender a ver sua raridade,bem como a raridade das coisas que são tomadas como meramente comuns.
O muito não pode ser cercado, tampouco possui um centro. O muito não tem verso ou reverso, ele não é par ou ímpar, sim ou não. Ele está sempre no meio e é meio que leva a ele mesmo: ele é o caminho, o caminhar e aonde chegar.E quem por ele caminha nunca se perde, tampouco chega a um fim. 
O oposto do muito de Deus não é o nada, pois o muito não tem oposto ou contrário.O nada pode ser um muito de coisa nenhuma, como o castelo imenso no qual morreu o milionário  Cidadão Kane. No mito, o Rei Midas cobiçou um muito de ouro, esquecendo que o valor do ouro está em ele ser raro, como é raro um bom coração, um coração de ouro.
O muito de Deus não é alcançável por um acúmulo de saberes. Pois só há um saber, e este é raro e múltiplo.O muito é múltiplo, heterogêneo, plural , e ao mesmo tempo raro, singular. O muito não é o excesso, pois o excesso é o oposto do pouco, e o muito de Deus não tem oposto.
O muito de Deus não é um conteúdo que somente aprenderíamos aumentando a nossa inteligência ( tal como uma piscina que é aumentada para receber um volume imenso de água).O muito de Deus é um conteúdo que dá consistência, que intensifica, e não algo que  vem preencher um vazio.Vazia pode se tornar a inteligência quando reduz tudo a objetos, quantidades, cálculos,mensurações...
O muito de Deus  consiste na autêntica riqueza que se possui sem precisar acumular, que se usufrui sem ser pelo comprar , gastar e consumir.  Segundo Espinosa, essa riqueza quem mais a teve foi Cristo.Depois a tem as crianças, sobretudo as que acabam de nascer ( não importando se tem 1 dia de vida, 30, 40 ou 70 anos, quando então tal riqueza se vive como um re-nascer, um re-generar).
E pode ganhar essa riqueza quem perde tudo.E mais pobre dela pode ser quem  muitas coisas tem.


terça-feira, 12 de novembro de 2013

as infâncias do poeta




Em anos recentes, já  com mais de 80 anos, uma idéia foi apresentada a Manoel de Barros: poeticamente, escrever uma memória.Afinal, muito o poeta já havia vivido e escrito. Tanto, que nem seria uma memória, seriam memórias: da infância, da mocidade e da velhice. A primeira memória, a da infância, veio ao mundo. Ela surgiu expressa em um “inauguramento  de falas” ,  ela  nasceu singular e múltipla , pois  o poeta nos fala não apenas de uma, mas de três infâncias: a primeira, a segunda e a terceira. Parece-nos que não se trata de uma ordem baseada em cronologias, a primeira infância não é mais infância do que a segunda e a terceira. Há apenas uma infância, e esta é múltipla, heterogênea, inumerável. Primeira, segunda e terceira são distinções intrínsecas de uma mesma infância. As distinções extrínsecas são aquelas nas quais os termos distintos permanecem exteriores uns aos outros, como as partes de uma pedra que se parte, ao passo que as distinções intrínsecas expressam partes que, embora diferentes, expressam o mesmo todo que em cada uma se expressa diferentemente, como  o tema de uma polifonia. 
Cada parte é uma distinção intrínseca de um mesmo todo, e este não lhes permanece exterior, dado que  lhes é íntimo, tal como a cor verde é íntima a cada grau seu, a cada grau de verde O todo da vida do poeta é tão vário e amplo, que vai muito além de sua vida pessoal, e é por isso que este todo nada tem a ver com as vivências , perceptivas e memorativas, de um “eu”. O todo, do qual cada infância é uma parte, este todo é um nós, do qual fazem parte outros seres que não o poeta, mas que ao o lerem sentem que aquela infância os concerne e vive em seu íntimo, como Afeto não pessoal de um devir-criança:  "Vou até a infância e volto" , explica-se o poeta.
No poema “Achadouros”, Manoel de Barros afirma que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com elas: “há de ser como acontece com o amor”. E é por isso que o poeta é aquele que diz “eu-te-amo a todas as coisas” . Mais do que pela ação de algo externo que nos torna passivos, o contágio é a comunhão de cada coisa com outra pela experiência daquilo que lhes é íntimo, e que “desabre” cada coisa e as torna “pré-coisas”: matéria de poesia. 
Enfim, vieram ao mundo as três infâncias. Como as memórias da mocidade e da velhice não nasciam, o poeta foi indagado a respeito, no que respondeu: “ só tive infância”. Ele diz que em seu lápis, na ponta do seu lápis, “há apenas nascimento” , “só narro meus nascimentos”. A “velhez não tem embrião” . A velhez não é propriamente uma idade, mas a impossibilidade de se perceber como “forma em rascunho”, como minadouro de sentidos. A palavra que apenas informa tem essa velhez jornalística, uma vez que para o jornal de amanhã, para a vida de amanhã, ela já será cadáver: “A palavra  até hoje  me encontra na infância”.