terça-feira, 25 de junho de 2013

utopia






Não é falso dizer que a revolução "é culpa dos filósofos"( embora não sejam os filósofos que a conduzem).(...) É sempre com a utopia que a filosofia se torna política , e leva  ao mais alto ponto a crítica de sua época.A utopia não se separa do movimento infinito: ela designa etimologicamente a desterritorialização absoluta, mas sempre no ponto crítico em que esta se conecta com o meio relativo presente e, sobretudo, com as forças  abafadas  neste meio. A palavra empregada pelo utopista Samuel Butler, "Erewhon", não remete somente a "No-where", ou a parte Nenhuma, mas a "Now-here", aqui-agora.O que conta não é a pretensa distinção de um socialismo utópico e de um socialismo científico; são antes os diversos tipos de utopia, dentre os quais a revolução. Há sempre, na utopia ( como na filosofia) , o risco de uma restauração da transcendência, e por vezes sua orgulhosa afirmação, de modo que é preciso distinguir as utopias autoritárias ou de transcendência, e as utopias libertárias, revolucionárias , imanentes.Mas, justamente, dizer que a revolução é, ela mesma, utopia de imanência não é dizer que é um sonho , algo que não se realiza  ou que só se realiza traindo-se. Pelo contrário, é colocar a revolução como plano de imanência , movimento infinito, sobrevoo absoluto, mas enquanto estes traços se conectam com o que há de real aqui e agora, na luta contra o capitalismo , e relançam novas lutas , sempre que a precedente é traída.

                                                     Deleuze & Guattari, O que é a filosofia? 



Todo limite é ilusório, e toda determinação é negação,
se não está numa relação imediata com o indeterminado.

Deleuze & Guattari, O que é a filosofia?



A utopia é uma maneira questionante, não passiva, de se relacionar com o lugar. "Topos", em grego, significa exatamente "lugar". Assim compreendido, o lugar não é apenas uma parte do mundo físico, pois  há lugares mentais, desejantes, incorporais, nos quais nunca se pode estar, apenas acontecer, devir. As palavras "estátua", "estático", "estar" e "Estado" se originam de um mesmo termo latino, stare , que significa "parada". Como dizem  Deleuze e  Guattari, a etimologia é o atletismo do filósofo. Ela é um exercício do pensamento que nada tem a ver com as semânticas do dicionário, pois se trata de encontrar o acontecimento que dá origem às palavras.Assim, há lugares que são de parada, como o é também um túmulo; são lugares de poder e de morte, enfim. Mas há lugares que são de processos, de devires, de metamorfoses, de agenciamentos. Os lugares de parada podem ser circunscritos por contornos ou limites, ao passo que há lugares cujas fronteiras são limiares em vizinhança  com outros lugares deles diferentes.
A geometria euclidiana pensa o lugar  como algo que mora dentro de uma cerca, de um limite determinável; já o lugar da utopia cresce à medida em que ousamos habitá-lo: são lugares que crescem conforme crescemos, tendo a liberdade como tamanho.A utopia compreende um lugar ligado umbilicalmente com a Terra, o infinito.
O lugar , o topos, expressa um "aqui"; já o "u" de "utopia" significa um "agora". Erradamente se traduz "utopia" como "não-lugar", dando à partícula "u" a função de negação ou privação. Na verdade, a tradução mais adequada de "utopia" é "aqui-agora": de tal modo que é no agora que podemos libertar o aqui de seu imobilismo, mas também é no aqui que podemos pensar o que desejamos ser a partir de agora , e não a partir de amanhã...O aqui-agora não é espera, não é esperança: é liberdade em ato, no espaço e no tempo. Todavia, não se trata de um espaço meramente físico, ou de um tempo tão somente cronológico.É um espaço de criação que pede um tempo que é de ruptura, de inovação. 
Do ponto de vista físico, os lugares são simultâneos: eles estão dados, sem sucessão, em um mesmo presente histórico, cada um com sua respectiva identidade. Do ponto de vista da utopia, os lugares são coetâneos: eles co-existem e se conectam, pela diferença. A coetaneidade dos lugares utópicos são espaços de rizoma e heterogênese.
Do ponto de vista da física social, estudantes, trabalhadores, artistas, negros, brancos, homossexuais, heterossexuais, favelados, intelectuais, etc., ocupam lugares euclidianamente estanques, delimitados que são por contornos determinados, muitas vezes construídos com arame farpado.Da perspectiva da coetaneidade da utopia, esses lugares se abrem e se comunicam pela experiência de um agora que faz do aqui o espaço comum daqueles que , em devir, desejam criar agora um outro lugar que seja aqui, e não em outra vida ou em outro mundo.Como dizem Deleuze e Guattari, " a revolução é a apresentação do infinito no aqui-agora : a revolução é a desterritorialização absoluta no ponto mesmo em que esta faz apelo  à nova Terra, ao novo povo"  ( O que é a filosofia?, p. 131).

Os que nascem em um mesmo lugar se identificam chamando-se reciprocamente de "conterrâneos": os que têm " uma terra em comum".Como desterritorialização absoluta, a Terra de que falam Deleuze e Guattari não se confunde com um território ou Estado. Somente afirmando essa Terra é que nos tornamos conterrâneos de tudo o que é vivo. 
Essa afirmação é dupla: ela implica a coetaneidade dos lugares utopicamente vividos como lugares de diferenças em conexão e agenciamento para instituir o comum, e supõe também a experiência de um devir planetário que nos torna conterrâneos por aquilo que criamos e ousamos, contra todo fascismo e apequenamento da vida.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Nietzsche, Espinosa e a multidão





Eu amo as ruas.

João do Rio, "A alma das ruas".


Lua que não muda,
não muda a maré.

Wilson Moreira.


1-Segundo Nietzsche, "quando queremos lutar contra as monstruosidades que existem no mundo,devemos  tomar o máximo cuidado para que nós mesmos não nos tornemos monstros". Há uma outra ideia de Nietzsche que dialoga com essa. Esta outra ideia, como todo pensamento de Nietzsche, é endereçada sobretudo aos jovens. Não ao jovem que, com o passar dos anos, envelhece e passa a servir ao mesmo poder e modo de vida que combatia quando jovem ( e não faltam exemplos disso nos parlamentos e academias...). O jovem ao qual Nietzsche fala é o espírito de não acomodação, que exerce, política e existencialmente, a sua potência de crer. "Crer" e "criar" provêm de um mesmo termo latino: "creare".Somente quem crê de fato cria. O poeta que cria sua poesia, crê na arte; se criamos um vínculo com alguém, é porque cremos no agenciamento. Crer é a mais elevada forma de criar. Quando o crer se separa do criar, passamos a esperar que um outro nos dê o que somente nós poderíamos obter, seja esse outro o Estado, o dinheiro, a sorte ou mesmo Deus. Afastado do criar, o crer se torna apenas uma espera que pode dar vez ao desespero, quando não se tem a potência e coragem de criar. O grau máximo de afastamento do crer em relação ao criar acontece quando o crer passa a esperar por um além , uma outra vida, que seria a "vida verdadeira". Mas como diz Deleuze, a grande prova do crer é crer nesta vida, e este crer também significa criar a própria vida, tornar-se ativo.Se alguém não crê, também não cria. Quem não crê pode até criticar, julgar, depreciar, zombar...Mas desse destruir nunca nasce o criar. E o criar não é tarefa fácil, assim como não o é o crer que serve ao fazer e ao produzir, e não à espera. A referida frase de Nietzsche é: "Só podemos destruir sendo criadores". A destruição é a crítica, o protesto, a indignação e até mesmo a revolta. Mas o criar é alegria, afirmação, agenciamento, arte, vida. 
Os monstros de que fala Nietzsche não estão no fundo do mar ou na floresta negra. Eles estão à nossa volta, na tela da tevê, nos parlamentos, nas negociatas, na mercantilização do ensino  e da saúde, na música vulgar e cinemas do clichê. Aliás, o clichê é um dos maiores monstros que podem devorar a criação autêntica. Os monstros são modos de vida consumistas, individualistas, banalizadores das experiências realmente revolucionárias, sobretudo as micro-revoluções do desejo. Os monstros também são a violência , a miséria, a corrupção, a ignorância. Os monstros são físicos e simbólicos. Se ao lutarmos  contra tais monstros viramos também monstros, nossa força se adiciona à força deles, de tal modo que lutamos pela nossa própria destruição.Não se vence os monstros monstruosamente. Os monstros apenas destroem, diminuem, negam. Para lutar contra eles, é preciso primeiro afirmar o que nos distingue e dá força, confiança e potência. A afirmação da ideia adequada é, ao mesmo tempo, afirmação dela própria e destruição da ideia inadequada, ensina Espinosa. Não é meramente querendo destruir a ideia inadequada que se a vence, mas afirmando a ideia adequada, fazendo-a ter mais vida, mais potência.Quando Nietzsche afirma que "só podemos destruir sendo criadores", ele quer dizer que é o que somos que autoriza o que podemos. E o que somos nunca é destruição, mas criação, afirmação, invenção. Quem não é, também não pode, ou pode menos do que se de fato fosse, do que se de fato criasse seu próprio ser, ativamente.Quem não é, também não age, apenas reage, por ressentimento. 
2-Segundo Espinosa, a  multitudo , a multidão, não é um grupo com extensão máxima.O grupo ainda está sujeito à lógica do eu e do tu. O grupo é um eu ainda, um eu ampliado; o grupo  é uma soma de eus. O outro grupo é, por isso, um tu ampliado.Os grupos se opõem, eventualmente se associam, como um eu ao tu.Quando o grupo toma   consciência de seus interesses de poder, disto poderá nascer um partido político.Entre este e as facções de todos os tipos a diferença não é em relação aos fins, mas aos meios.Quando da multidão se destaca um grupo, este passa a querer poder, potesta.
A multitudo não é um grupo, ela escapa à lógica do eu e do tu: enquanto entre estes pode nascer um contrato, na multidão há apenas direito em estado nascente. E direito em estado nascente é potência. A potência é sempre um direito em estado nascente, que nunca deixa de nascer e questionar os direitos "morrentes", que são perpetrados  por letras mortas e togados bem pagos ( além das forças policiais).A multidão é sem centro. Ela é fluxo, sem margens. A multidão não mora em palácios, casa ou mansões: ela mora na rua, na praça; ela mora se movendo , e cresce absorvendo o que já faz parte dela, por natureza e não por contrato( jurídico,  político ou moral). A multidão tem uma única potência, da qual nascem todas as outras: a potência  de instituir. E é por isso que a multidão é espontânea, sem limites. A multidão nunca é triste nem age apenas por ódio ou raiva, embora a mova a indignação. A multidão não tem líderes ou chefes.  A multitudo é um nós.Deste nasce o afeto pelo comum. O comum nunca é uma propriedade, esta sempre o é de um eu ou de um tu. Há propriedades em comum, o que nada tem a ver com o comum que não é propriedade de ninguém, posto que é o comum.A multitudo deve nascer  dentro de cada um, como multiplicidade de percepção e riqueza de vida, e não de bens, posses ou títulos. A multitudo não possui nada, a não ser a ela mesma, que sempre se transforma, múltipla que é. Os partidos, as classes sociais, etc., são sujeitos históricos, ou têm a pretensão de ser; mas a multitudo está sempre em devir, sempre contra este tempo, não importa qual, sempre a favor de um tempo por vir.A história é linear, tem começo e se pretende ter um fim; mas os devires são multidirecionais, abertos, não lineares, pois inventam caminhos onde se acreditava não poder mais ir.
A multitudo tem dois "inimigos": o poder totalitário que, colocando-se transcendente a ela, usa a força  (física e simbólica) para mantê-la na escravidão e na impotência; e o "estado de natureza" como "guerra de todos contra todos", que impede que a multitudo possa se constituir e adquirir consistência. Esses dois inimigos são as duas faces do fascismo: ele já  formado ( o Estado Totalitário) e o berço no qual ele nasce  (os indivíduos que , confundindo criação com destruição, potência com força física, colocam-se à parte da multitudo, incapazes que são de pensar e fazer o comum).
Um grupo possui limites definidos pela sua identidade;a multitudo possui limiares que vão até onde vai sua potência.A multitudo visa produzir uma alma e um corpo comum; isto não significa um pensar e um agir igual.O comum não é uma propriedade, não é uma opinião. Ele é aumento de potência de pensar e agir; logo, de existir. O comum  é aumento da potência de pensar e agir de cada um. O comum não é propriedade, ele é comunidade da qual participamos com nosso desejo.A multitudo não é exatamente o povo ou a nação,  muito menos a massa. Povo, nação , massa...são recortes na multitudo feitos a partir de fora.A multitudo habita não um país, ela habita a Terra, embora seja sempre em um país, uma cidade ,ou mesmo em um bairro, que ela se manifesta.E onde a multitudo se manifesta, neste local também se expressam as questões sem fronteiras determinadas, que concernem à humanidade inteira.
A multitudo , a multidão, não é a mera soma  de vários “uns” : ela não é um todo que nasceria  apagando o “um” de cada  um. O prefixo “multi” indica um ato de multiplicação. A multitudo é a multiplicação do  ser um de cada um : ela é o um que nasce da ampliação do direito de cada um de  existir como  um. Na multitudo, cada um encontra ampliado, potencializado, o seu direito de ser um, singular. Por isso, ela não nasce da soma da potência de cada um, mas da ampliação ou multiplicação da potência de cada um. Quando a potência de cada um é ampliada  , nasce o um da multitudo. Um que é, ao mesmo tempo, vários, posto que este um é  inseparável  de cada um que ela, a multitudo,  amplia. Por isso, jamais a multitudo é homogênea: ela é heterogênese, isto é, expressão da diferença singular que a produz e que ela dá a ver no seu ser um, ampliando-a. 
A adição de potências  ocorre na multitudo em favor da co-instituição do imperium, isto é, da autoridade política. O um do imperium não é multiplicação ou ampliação  do um singular de cada um, uma vez que seu um nasce da adição de potências . Adicionar, somar, não é multiplicar. Por isso mesmo, o imperium, o poder do estado,  pode ser dissolvido quando não se somam mais as potências que lhe deram nascimento, ou quando o detentor do imperium subtrai sua potência da potência da multitudo, ambicionando existir como um todo à parte, transcendente à multitudo
A multitudo nunca pode ser dissolvida, pois ela não é a soma de potências, mas potência nascida da ampliação de cada potência  una. Somente o que nasce da soma pode ser dissolvido, como o muro que nasce da soma de tijolos. A multidão pode estar a dormir, mas sempre há a possibilidade de ela acordar.
 Um indivíduo pode querer se furtar ou se subtrair à multitudo: ele o faz quando pretende retornar ao estado de natureza, ambicionando impor seu direito natural sem medir conseqüências. Mas quando assim procede, tal indivíduo não agride apenas o um de um indivíduo particular , mas ao um da  multitudo como um de todos. Sua ilusão é supor que seu direito , ou existência,  se potencializa negando , subtraindo. Ao contrário, subtrair-se à multitudo é diminuir o direito próprio. A verdadeira potência afirmativa não é adição,  mas multiplicação: afirmar-se verdadeiramente não é colocar-se como “um todo à parte”; afirmar-se é multiplicar-se sendo um com o um de todos, para além de todo contrato,  para assim instituir o comum. 
Vivendo em   sociedade o homem vence o que mais o ameaça no estado natural: não poder organizar os encontros que faz. Assim, a vida social é , sobretudo, organização dos encontros: favorecimento dos encontros que produzem afetos que aumentem o poder de agir de cada um ( educação, conhecimento, paz, cordialidade, civilidade, cidadania, etc.); diminuição dos encontros que podem ameaçar a conservação de cada um ( os ilícitos, a pobreza, a doença, etc.). Uma sociedade somente se conserva quando é expediente para a conservação do direito natural de cada um. Se ela põe este direito natural em risco, a própria sociedade, enquanto indivíduo, torna-se um mau encontro que precisa ser destruído, para que uma outra sociedade, da imanência da multitudo, venha a nascer.
Contudo, como observa Deleuze, o direito natural é abstrato quando isolado da sociedade civil. Ele só se torna concreto quando o vemos como causa eficiente da sociedade,  esta se tornando também causa eficiente para a ampliação do direito natural. Ninguém no direito natural é “tirano” ou “corrupto”, pois “tirania” e “corrupção” são práticas que pressupõem uma sociedade já constituída. A dificuldade de se abordar o direito natural é que ele, sendo pré-social, não pode ser compreendido com os valores da sociedade, com seu universo axiológico. Porém, há ainda um  risco, um risco moralizante que afasta o homem de compreender a si mesmo em sua realidade natural,  quando os teólogos de toda ordem aplicam sobre o estado de natureza valores que só têm sentido com o estado social já constituído, valores estes que extraem sua força (reativa) da desqualificação que fazem do estado natural  em nome de idéias transcendentes.  
O homem não nasce razoável, cidadão ou religioso; ele pode tornar-se tais coisas apenas em sociedade, afirma Espinosa.  Porém, o estado de natureza  não é um estado irracional, tampouco ele é anti-social  ou a-social, pois anti-social e a-social são noções cujo sentido pressupõe o de social, assim como as noções de desvio ( quando se diz que um comportamento é desviante)  ou de margem ( quando se atribui a um comportamento ser marginal). Se os comportamentos desviantes e marginais existem, sempre o são em uma sociedade  estabelecida, não no estado de natureza. Assim , mesmo “mentir”, “dissimular” , “corromper”, “agredir”, etc. são comportamentos imediatamente sociais , e não naturais. Se pudéssemos abstrair a sociedade na qual tais comportamentos acontecem e tentássemos apreendê-los do ponto de vista puramente do direito natural, o que seria uma tarefa  ao mesmo tempo difícil e abstrata ( pois só podemos imaginar tal coisa e não compreendê-la), tais comportamentos não teriam o mesmo nome , tampouco o  mesmo significado que atribuímos a eles , uma vez que o uso da linguagem , reconhecendo  uma unidade semântica para as palavras, já pressuporia uma sociedade. 
É por isso que todo processo revolucionário , quando evoca o poder constituinte originário, isto é, a potência constituinte da multitudo ( a multitudo é a unidade heterogênea, pré-social, das potências de agir com poder de co-instituir uma ordem social, isto é, a multitudo é a causa eficiente do social e do campo jurídico ), é por isso que todo processo revolucionário  suspende não apenas a ordem jurídica, como também , não raro, a ordem simbólica: o que  na semântica da ordem suplantada era crime, na nova ordem pode ser considerado ato justo; alguém que na ordem antiga era prostituta, descobre-se militante na ordem nova ( como no filme Terra e Liberdade). Esta  suplantação da ordem simbólica estabelecida  constitui ,em toda revolução, tanto na revolução social como na pessoal , a sua  produção de sentido.
Mas para além dos valores está a potência. Os valores são dicotômicos ( justo/injusto, lícito/ilícito, racional/irracional, etc.), ao passo que a potência é múltipla em sua essência singular, una. A potência é mais do que o justo, é mais do que o lícito, é mais do que o racional. Ela é mais porque  seu negativo, a impotência, é tão somente seu enfraquecimento, e não uma outra realidade que lhe faz oposição dicotomicamente. Em latim, potentia também se diz jus, direito. Este direito é natural. O direito jurídico, nascido que é de uma sociedade, traz os valores e dicotomias dela, ao passo que o direito natural, idêntico à potência da multidão, tem por principal critério a existência e a conservação do direito de existir da multidão, pois é seu direito natural se opor a tudo aquilo que quer diminuir sua existência, tornando-a impotente, triste, escrava. Em Espinosa, somente o que é produzido pode ser conservado. Assim, a conservação não é um algo  estático, dado que conservar uma potência é garantir seu direito de expressar-se, de expandir-se, tais como os direitos de agir e de pensar. E estes são direitos que se conservam pensando e agindo, e nunca de outra forma. 






sexta-feira, 14 de junho de 2013

Cláudio Ulpiano

             





Não há nunca outro critério senão o teor da existência,
          a intensificação da vida. 

                                Deleuze e Guattari, O que é a filosofia?



           Foi em uma belíssima aula de Cláudio Ulpiano, há mais de 25 anos, que ouvi falar, pela primeira vez, o nome do poeta Manoel de Barros. Era um poeta sendo citado em uma aula que era um poema.  Deleuze e Guattari afirmam que faz parte da compreensão de um conceito filosófico a sua compreensão não-conceitual: os conceitos não remetem apenas a outros conceitos, “os conceitos remetem eles mesmos a uma compreensão não-conceitual. (...) O não-filosófico está talvez mais no coração da filosofia que a própria filosofia, e significa que a filosofia não pode contentar-se em ser compreendida somente de maneira filosófica ou conceitual, mas que ela se endereça também, em sua essência, aos não-filósofos” (O que é a filosofia?, Editora 34, p. 57). Para compreendermos adequadamente toda a potência  que um conceito filosófico possui, é necessário que saibamos ter igualmente uma compreensão não-conceitual do conceito. Esta compreensão não-conceitual implica que saibamos compreendê-lo também politicamente, etologicamente, clinicamente, eticamente, enfim, poeticamente. Esta compreensão poética, heterogenética, não é exterior ao conceito, uma vez que faz parte da compreensão do conceito o seu devir poético, ao mesmo tempo em que o poético devém filosófico: era esse agenciamento conceito-poesia que as aulas de Cláudio generosamente nos ofereciam, e que faziam de Cláudio nosso intercessor. Nesse devir que vai do conceito à poesia, e da poesia ao conceito, o pensamento e o corpo se  mostram  como as duas metades de uma  vida que é Afeto.
         Acerca do seu precioso livro que agora lemos, Gilles Deleuze: a Grande Aventura do pensamento, o próprio Cláudio se refere ao seu trabalho “como se fosse um poema”. Citamos Manoel de Barros porque é nele que podemos encontrar o seguinte verso: “O poeta é aquele que vai até à  infância e volta”. E aquele que vai não é o mesmo que retorna, pois se opera no intervalo uma metamorfose, um devir, uma salut : a prática da inocência. O mesmo pode ser dito de um filósofo, como Cláudio, que nos ensina que “a filosofia é a mais inocente das ocupações”. Nietzsche dizia que “só podemos destruir sendo criadores”. Destruição como crítica, criação como clínica. Crítica e clínica: as duas metades de um devir-criança. 
       Em um de seus últimos cursos ministrados, e publicado sob o título A coragem da verdade, Michel Foucault, que pouco se refere a Espinosa, cita o autor da Ética de uma forma que  revela a admiração que nutria por Espinosa, a despeito das poucas palavras escritas que lhe dedicou. Segundo Foucault,  em Espinosa fazer filosofia é inseparável da produção de uma vida filosófica. Produzir um modo de vida filosófico, este é o principal desejo que tem na filosofia a sua causa eficiente. Em Espinosa, a vida filosófica não é uma vida à parte, ela é a vida mesma. Produzir uma vida filosófica requer não apenas amor à Verdade ou à Sabedoria, requer  sobretudo coragem .E disto a própria vida de Espinosa  dá o testemunho. A philia, como amizade ou amor à Sabedoria, nada é sem a coragem de viver filosoficamente esse amor, esse afeto. Decerto que não faltou amor à sabedoria em muitos filósofos,  mas poucos foram além do amor, poucos exerceram esta coragem que a filosofia pede. Há uma dimensão clínica nessa coragem, pois toda cura começa na coragem. Coragem não exatamente para enfrentar a doença, mas coragem para viver de acordo com  a saúde.E Cláudio, como poucos, é o exemplo vivo de um filósofo brasileiro que resistiu com salut e coragem. Cláudio viveu, desde sua  Macaé, um modo de vida no qual não faltaram amor e amizade, mas estes foram potencializados pela coragem, coragem esta que a própria amizade e amor pedem, para que assim sejam potências do Afeto.
           Segundo Deleuze ( Nietzsche et la philosophie, p. 119), há um devir-verdade que não se opõe ao falso; o devir-verdade dá ao falso uma potência de criação que o liberta de ser o negativo da Verdade que não tem devir . O devir-verdade é a adequação do pensamento ao agir, e que faz da filosofia a mais necessária das práticas: a de  ensinar pela  conduta.
       Falar ou escrever sobre Cláudio Ulpiano  nos põe, como diria Manoel de Barros, em “estado de rascunho”: um  “afloramento de falas” vem ocupar nossa voz.Somente como rascunho, anexatos, podemos conquistar alguma consistência, mas sem perder o infinito.  Falar sobre Cláudio só o podemos  deixando nascer em nós  um sujeito coletivo de enunciação: poli-fonia - múltiplas vozes.  Isto porque Cláudio Ulpiano  assinou seu nome para expressar  singularidades e acontecimentos dos quais ele foi e é o criador. O nome de Cláudio é a assinatura através da qual vemos paisagens, personagens, acontecimentos, afetos, experimentações, devires, beleza, sujeitos larvares, mundos por criar. 
       Segundo Espinosa (Deleuze, Spinoza: immortalité et éternité.Paris: Gallimard, 2001. 2 CDs), quando a morte leva uma criança, a morte leva a maior parte desta pequena existência, mas não leva tudo: algo da criança permanece. Isto   nos mostra que o poder da morte não é absoluto. Se a criança viveu ao menos um dia de vida, a morte não tem poder para levar e apagar este um dia. A morte, na verdade, levará  os dois anos da criança, ou os seus 10 anos. Ou seja, a morte só pode levar o que não foi vida. Ela só pode apagar o que não existe ou existirá: os anos que a criança não viverá. A morte só tem poder onde reina cronos, e não onde há a instauração de aion. A morte é ausência, privação. Mesmo  antes de ter nascido,  a criança existiu , como essência, no desejo dos seus pais, como parte da essência destes. E esse desejo também a morte não pode apagar, assim como a escuridão não pode apagar a luz, dado que a escuridão é tão somente a ausência da luz. Por mais estranho que possa parecer, a morte não leva nada, pois ela vem do exterior de nossa essência, e apenas leva o que é exterior a esta. Para Espinosa, quanto mais potência uma essência possui, mais expansão ela é capaz de conquistar, reduzindo ao mínimo o poder de subtração da morte. Quem mais na vida se multiplica, e vida se multiplica com vida, menos subtraído pode ser por aquilo que não é vida.
           Espinosa diz ainda que o homem que soube fazer de sua existência uma expressão da Vida, que é potência absoluta, deste homem a morte apagará a menor parte, pois a outra parte, a maior, não pode ser apagada a não ser apagando o universo inteiro. Por isso, essa menor parte que é levada/apagada em nada diminui aquele que no infinito aprendeu a se fazer inteiro. Inteiro não como algo que aumenta com os anos, e que envolve quantidades numéricas, pois se trata de se tornar inteiro como uma quantidade não numérica, múltipla, uma potência: um “quantum de vida”, como diz belamente Cláudio. A maior parte de Cláudio vive em nós como aquilo que nos aumenta a Vida.
            No  Prefácio que escreveu para o livro de Cláudio,  o Prof° Luiz Orlandi se refere a Cláudio como  um signo-luz. Em suas aulas, víamos e ouvíamos esse signo-luz, e então tudo se clareava e compreendíamos por onde avançar e ir - pelos livros e, sobretudo, pela vida. Hoje esse brilho está também em seu livro, como o clarão de que fala Deleuze, como o relâmpago que canta Paulinho Moska. 
           No conto O livro de Areia, Borges nos relata o seguinte fato: um homem encontra um livro que porta um segredo (tomo de empréstimo essa palavra do Prof° Mário Bruno ao se referir a Cláudio). O homem abre o livro e lê uma de suas páginas, e depois o fecha. Abrindo novamente o livro, ele tenta voltar à página lida, porém não a encontra. A cada vez que o livro se abre, uma página nova se mostra: o livro era uma Diferença que cada página singular repetia, diferencialmente. O livro possuía somente páginas por descobrir, nas quais acontecia um sentido sempre novo, de tal modo que a recognição nada tinha a fazer ali. O livro era um encontro, sempre: e cada encontro tornava o homem também diferente, como se lhe nascessem novos olhos. O homem tentou então  achar o fim do livro, o seu término. Um novo paradoxo se mostrou: o livro não possuía última página, pois novas páginas emergiam da virtualidade da obra. O homem tentou encontrar a primeira página: esta também não podia ser achada, uma vez que novas páginas surgiam redesenhando o começo. O livro não contava histórias, apenas devires. Na verdade, o homem descobriu que o tal livro possuía tão somente páginas do meio, e estas eram infinitas. Infinitas não numericamente, mas infinitas em sentido, em potência de expressão. O livro somente possuía páginas do meio, e estas eram meio para experimentações com o espírito, mais do que com a letra. Era um livro infinito, tal como o inesgotável e belíssimo  livro que o signo-luz Cláudio escreveu. 

(texto publicado originalmente no site do Centro de Estudos Cláudio Ulpiano:http://www.claudioulpiano.org.br/)

sábado, 11 de maio de 2013

evento: lançamento do livro do Professor e Filósofo Cláudio Ulpiano

Mestre na filosofia de ensinar Deleuze para todosPor: Hugo Pernet/ Foto: Weiler Filho
Tese de doutorado de Claudio Ulpiano vira livro, que é lançado no auditório B8, após 14 anos de sua morte


x-alunos, amigos e familiares prestigiaram debate sobre vida de Ulpiano
x-alunos, amigos e familiares prestigiaram debate sobre vida de Ulpiano


Jovens e idosos disputam uma cadeira para se sentar. A sala do auditório B8 ficou lotada, no dia oito de abril, para o lançamento do primeiro livro, Gilles Deleuze: a grande aventura do pensamento, do professor e filósofo Claudio Ulpiano. Após 14 anos da morte do professor, o encontro lembrou as concorridas aulas na Uerj, na UFF e em cursos no Rio de Janeiro, ministradas por Ulpiano, inovador na filosofia de lecionar, desde 1978.

– Eu encontro alunos do Claudio que até hoje me dizem: “Ele mudou a minha vida” – afirma Silvia Ulpiano, mulher de Claudio e responsável pela organização do livro, resultado da tese de doutorado do filósofo, defendida na Unicamp.
Sempre com a sala cheia, Ulpiano dava aula para alunos de diversos cursos. Elton Luiz Leite de Souza, professor da UniRio, conta que, nos anos 80, um amigo, estudante de sociologia, o convidou para assistir a uma aula “imperdível” na Uerj, onde ele cursava filosofia. Desde então, começou a frequentar as aulas de Ulpiano, que, segundo ele, “mesclavam intuição poética belíssima com rigor conceitual filosófico”.
– Ele mostrava a importância da filosofia também para os não filósofos. Com preocupação pedagógica no diálogo, o Claudio atraía estudantes de comunicação, direito, engenharia, sociologia, cinema – ressalta Souza.
O cantor e compositor Paulinho Moska foi convidado por um amigo para ir às aulas de Ulpiano, em um curso no Jardim Botânico. Naquela época, Paulinho já havia lançado o primeiro CD. Após convivência com Ulpiano, o cantor diz ter “encontrado um caminho de busca através das palavras e dos sentidos”, para compor as faixas do segundo disco.
– Eu acabei resultando em um compositor de música popular que pretende também fazer com que o ouvinte se force a pensar – argumenta Paulinho, que gravou a música Gotas de tempo puro, com refrão escrito por Ulpiano: Choveu sobre mim/ Gotas de tempo puro/ Trovoadas de passado/ Relâmpagos do futuro.
Em 1995, após convite de Paulinho, o compositor e músico produtor Sacha Amback assistiu à primeira aula de Ulpiano. Para ele, a sala ficava muito cheia, por isso visitava o professor depois dos encontros no cursos livres. Ulpiano tinha a vida restrita ao estudo da filosofia, não frequentava “lugares comuns”, mas, segundo Silvia, gostava de cinema, música, teatro e dança. Sacha, então, se aproximou do filósofo pela afinidade artística:
– Ele tinha um piano na sala da casa, onde eu ficava tocando canções de uns compositores que eu gostava - descreve Sacha, que foi aconselhado por Ulpiano a compor letras de música a partir da leitura dos textos do filósofo Deleuze.
Fundado por Silvia, em 2005, com verbas públicas de Macaé, cidade natal do filósofo, o Centro de Estudo Claudio Ulpiano tem o objetivo de preservar e de divulgar o trabalho do professor. O material, disponível no site www.claudioulpiano.org.br, é organizado a partir de gravações de áudio e de vídeo doadas por ex-alunos.
– No lançamento do livro, tinha uma garotada de 20 e poucos anos que o conhecia via internet, pelo Centro de Estudo Claudio Ulpiano – analisa Souza. - Isso mostra a importância do Claudio para as novas gerações, no mundo de hoje.

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Manoel de Barros e o conatus ( trecho de novo livro sobre o poeta a sair no segundo semestre)






Minha linguagem não tem função explicativa,
só brincativa.

Manoel de Barros



1.No poema Lacraia, o poeta nos fala de uma lacraia cujas partes foram desmembradas. Isto ele viu quando criança.O poeta, afirma Manoel, é aquele que "vai à infância e volta".Inteira, a lacraia se assemelha a um trem: neste, vagões unidos que se seguem a partir da locomotiva que vai à frente;naquela, gomos unidos a partir da cabeça.As semelhanças entre uma lacraia e um trem param sobretudo neste ponto:descarrilado, um trem sucumbe em pedaços que , por conta própria, jamais  voltam a formarem uma unidade; já quando a lacraia é desmembrada, e cada gomo/vagão seu é separado do outro, logo a "força de Deus" mostra-se onde menos se espera: cada parte da lacraia se move e busca a outra, elas se procuram. Busca na outra o todo sob o qual cada uma existe mais. Cada parte se esforça para se integrar ao todo que é mais do que a mera soma das partes.Essa força também é amor.Segundo Espinosa, cada ser se esforça para perseverar na existência. O nome desse esforço é conatus , ou desejo. Co-natus: junto ao que nasce. Assim, o conatus está sempre junto ao que nasce para permanecer existindo, pois o esforço para permanecer na existência nunca está no passado, mas no presente - não como coisa parada ou estática, e sim  como esforço dinâmico, como potência,  desejo e afirmação. Em nós mesmos, cada molécula, cada célula, cada parte que nos constitui expressa o mesmo conatus, o mesmo desejo.Existir é idêntico a esse esforço de tudo aquilo que, nascido, continua a (re) nascer a cada momento.Por isso, o nascer é um ato que nunca se completa, posto que nunca termina para aquele que se percebe como parte da natureza que é sempre nascer, e nunca morrer.Natureza vem de natura, que é exatamente nascer. Em grego é physis, que tem o mesmo sentido. O conatus é o esforço do ser finito para permanecer no infinito renascer da natureza.Manoel de Barros, por sua vez, fala em "natências" , não como data em que nascemos, mas o "tempo quando" , não cronológico,  no qual , como duração viva e intensa, estamos sempre a (re)nascer.
Cortada a lacraia em 5 partes, cada uma das partes expressa um conatus que não pode ser numericamente quantificado, posto que ele é, ao mesmo tempo, um e múltiplo. Mesmo na lacraia inteira cada parte dela, suas infinitas partes, já se esforçam para perdurar expressando o todo-lacraia, que é sua essência e ideia.O desmembramento da lacraia poderia ser em 10 ou cinquenta partes: em cada uma dessas partes o mesmo conatus se expressa de forma única e singular, como potência. É esse todo que dá a cada parte a sua inteligibilidade  e explica o fato de cada parte se mover de forma que não é apenas movimento como resultado de ações externas, pois há uma força que guia cada parte : guia não por fora, mas a partir da imanência de cada uma. As partes desejam  refazer a relação que eram, o todo que eram.Em cada parte está a expressão do mesmo conatus, ao mesmo tempo um e múltiplo, posto que multiplicidade. E mesmo na lacraia inteira cada parte dela persevera no mesmo desejo: o de continuar na sua existência, e essa é a maior perfeição que ela aspira. Uma lacraia  não precisa ser um homem ou um anjo para, enquanto lacraia e permanecendo lacraia, expressar sua maneira de ser, seu modo, sua perfeição enquanto lacraia.Segundo Manoel de Barros, as partes procuram se emendar, elas são movidas por uma emendatio, tal como o intelecto  precisa se emendar quando se acha separado do contínuo existir da vida, a começar pela vida do seu corpo. No Tratado sobre a emenda do intelecto, Espinosa afirma que todo aquele que deseja produzir algo necessita de um rascunho. O rascunho é o esboço de um ser a produzir, não de um ser a imitar ou copiar. Como se participasse dessa discussão, Manoel de Barros afirma que a poesia nos põe em "estado de rascunho", tornando-nos "formas em rascunho".Emendar não é apenas ligar uma parte à outra, mas ligar cada parte à outra em razão de um todo que faz cada parte existir mais.Isto vale para uma lacraia, como vale para um livro, um poema, uma obra, uma vida.

2.Há uma diferença entre "parte" e "pedaço".Para se poder compreender a diferença, porém, é preciso que se faça a ideia do todo. Na arqueologia, por exemplo, muitas vezes se acham pedaços. Para que estes virem partes, e se tornem mais inteligíveis e compreensíveis, é necessário fazer uma ideia do todo ao qual tais partes pertenciam, mesmo que este todo não seja dado de forma tangível, como é o caso do todo da cultura. Se não se consegue formar uma ideia do todo, do pedaço não nasce a parte.A parte faz parte, ao passo que o pedaço é o caco que restou de um ser partido.O mesmo vale para a natureza.A maioria dos homens se comporta como pedaços, não como partes.Os pedaços não se compõem, as partes sim.Frequentemente, a passionalidade e a ignorância tornam o homem um pedaço com contornos pontiagudos, prontos para ferir ou supostamente se defender da pontiagudez do outro, o que finda por ferir, primeiro , aquele que assim pensa e age, pois o fere por dentro a ideia confusa e equivocada, fruto que é da  tristeza e do ódio.A natureza não é um Frankenstein, mas uma polifonia.Acumular muitos pedaços quantitativamente é menos do que ter de uma coisa apenas uma parte, por mais diminuta que ela seja.Através da parte sempre se vê o todo do qual ela faz parte, ao passo que quanto mais pedaços se vê e tem menos se enxerga e se conquista, menos se compreende.A natureza não é feita de pedaços, ela é feita de partes. O mesmo vale para nossos desejos e ações.No homem livre cada pensamento e ação é uma parte dele, ao passo que no escravo as ações e os pensamentos são vividos como pedaços sem muito sentido, posto que deles está ausente o todo, que é o que dá vida.No amor e na amizade  cada um é uma parte, não do outro, mas do encontro.A infelicidade acontece quando um quer fazer do outro um pedaço seu , na ausência de um todo, de um bom encontro.As imagens e aparências somente deixam de ser pedaços, e se tornam partes, quando aprendemos a ver para além delas, em busca das essências que elas expressam.A essência não é uma forma estática, ela não é uma figura com contornos e limites  rígidos; a essência , diz o poeta, é “um minadouro”: dela mina e brota um sentido sempre novo,  que ela retira de sua imanência, de seu coração.

Na minha infância havia um personagem louco que caminhava pelas ruas do bairro portando um pedaço de um espelho.Ele nunca olhava para as coisas e pessoas diretamente, mas sempre através daquele pedaço de espelho.Apressadamente, contorcendo-se, ele se esforçava para em muitas posições mover o tronco e a cabeça, virando também o pedaço de espelho em várias direções, como se quisesse apreender dos seres todas as suas faces, tal como o faz o artista cubista.Mas naquele pedaço tudo o que se refletia eram pedaços, um mundo em pedaços.O louco carecia da ideia que, dando saúde a seus olhos, permitiria que ele visse cada coisa como parte de um todo, a começar por ele mesmo. Aquele pedaço de espelho pertencera a um espelho cuja unidade se quebrara e jamais voltaria, talvez, a ser restituída.E, junto com a unidade perdida, perdeu-se para aquele homem a unidade da linguagem, do seu corpo, da sua mente.Assim, procurava ele pela unidade onde ela jamais esteve.E a mera soma de pedaços só faz aumentar o tamanho do todo perdido ( como as muitas fotos guardadas do amor que acabou).
O todo é sempre maior que suas partes. Mas é um maior  que não torna cada parte dele menor do que si mesma; ao contrário, quanto mais cada parte  expressar, em seu íntimo, esse todo, mais ela se torna maior , mais ela existe, mais ela se compõe com a outra parte, mais ela adquire singularidade e afirma sua diferença, sem negar ou destruir a outra parte, que é outra parte do mesmo todo. O que é verdadeiramente maior nunca diminui, nunca age por "comparamentos", mas por "comunhão". Enfim, diminuir é negar ( e como poderia o todo negar sua parte? Se ele o fizesse, estaria negando a si mesmo, o que seria um absurdo!).
Fernando Pessoa narra em um de seus poemas um fato que ele presenciara ainda bem jovem: distraída, a ama deixa cair , do alto de uma escada, um vaso de rara porcelana. O vaso rola pela escada, salta sobre o último degrau e se quebra, esparramando-se pelo chão em incontáveis pedaços, como estrelas sem um céu.Em cada um dos pedaços, Pessoa se viu inteiro, como "outro": "e havia mais cacos do que havia de louça no vaso".
Conforme afirma Arnheim, "um pedaço é como uma melodia interrompida pela metade", enquanto que a parte é feito um momento singular que se conecta com os outros momentos singulares para durarem na continuidade de uma melodia polifônica.O pedaço é sempre incompleto, ao passo que a parte somente se completa por não ser, sozinha, inteira.
A parte é partícipe, e extrai seu sentido não sozinha, mas em conexão. O pedaço, ao contrário, é sempre desconexo, como se fosse um todo à parte: à parte do todo, à parte de si mesmo. Esse existir como um todo à parte é a solidão característica de tudo o que é pedaço, enquanto que a diferença constituinte de toda singularidade se expressa e se afirma em um fazer parte, mesmo que seja um fazer parte de um "todo ainda por vir", como diria Nietzsche. Esta conexão que constitui uma singularidade recebe, em Deleuze, um nome: agenciamento.


quarta-feira, 24 de abril de 2013

jardim de outono





Eu tentei me horizontar às andorinhas.
Manoel de Barros

O plano de imanência é o horizonte absoluto.
Deleuze & Guattari


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                                                           OS ACHADOUROS


                                                               Quando o sábio se vê reduzido à necessidade,
mesmo aí ele acha mais ocasiões de ofertar do que de receber,
pois ele possui um tesouro que nunca se esgota:
o de possuir a si mesmo.
Epicuro.


No poema Achadouros Manoel de Barros nos fala de uma  senhora, a "negra Pombada, remanescente de escravos do Recife", que  contava aos meninos sobre Corumbá ter “achadouros” , que eram buracos  feitos pelos   holandeses  em seus quintais para esconder suas moedas de ouro, antes de fugirem apressadamente do Brasil. Durante muito tempo em Corumbá, movidos pelo desejo de encontrar tais tesouros , os homens  escavaram  quintais para ver se ali achavam ouro.O poeta é aquele que busca os achadouros também, mas o tesouro que ele deseja é outro : ele escava o ordinário e ali acha o extraordinário; ele escava o habitual e neste acha o incomum; ele cava em si mesmo e dentro de si ele acha o mundo ainda por descobrir. Ele acha, em meio ao barro,  ao húmus, ele acha/inventa o ouro de uma vida da qual nunca cessam os inauguramentos.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Deleuze, Manoel de Barros , rizoma



Usa-se a inteligência   para entender a não-inteligência [ o afeto, a  arte, a vida].
Só que depois o instrumento  -  o intelecto - por vício de jogo continua  a ser usado,
 e não  se pode colher as coisas de mãos limpas,
diretamente na fonte.
Clarice Lispector, A Descoberta do Mundo.


Na natureza  há dois tipos de raízes: as arborescentes e as rizomáticas. As primeiras possuem raízes fixas, ao passo que as segundas são constituídas por raízes que se movem, e que fazem da planta um autêntico  andarilho, um Andaleço de espaços lisos de itinerâncias.Filosofias ortodoxas sempre fizeram da árvore um modelo ideal de sistema : raízes fincadas em um solo fixo ( seja este solo a Razão ou Deus), um tronco rígido , a Física, ligando as raízes aos diversos galhos, que são as disciplinas  sustentadas dogmaticamente  pelo tronco.  Descartes,o racionalista, é o exemplo mais célebre de uma filosofia arborescente. Em Deleuze e Guattari, diferentemente, as formações rizomáticas inspiram uma pop’filosofia( Mil Platôs). O rizoma é  constituído por  raízes formando uma multitudo, um espaço sem centro, uma anarquia coroada. O rizoma  não é uma semente, um fruto ou uma flor. Ele é uma raiz que brota de si como se fosse uma semente, ele  guarda em si sua continuidade à maneira de um fruto, ele desabrocha  para fora como só faz uma flor.Ele é sua própria semente, fruto e flor, sem deixar de ser raiz.Ele é plenamente raiz, e como tal o rizoma cresce. Enquanto no modelo arborescente as disciplinas são compartimentadas e segmentadas, o rizoma inspira uma produção de conhecimento trans e interdisciplinar.A essência do rizoma é se expandir:  expandir-se como raiz, sem para tal necessitar de semente, fruto ou flor.Os rizomas são plantas sem “existidura de limites” , como diz Manoel de Barros. São plantas de conectividade, agenciamento, encontros, afetos . Como em Manoel de Barros, os rizomas são as raízes crianceiras , são as raízes da invenção. 

quinta-feira, 11 de abril de 2013

trecho do livro sobre Manoel de Barros






No "Livro de pré-coisas" , na prosa poética intitulada "Agroval", Manoel de Barros descreve um acontecimento ordinário do pantanal. “Ordinário”, aqui, significa a mesma coisa que comum ou regular. À idéia de “ordinário” costumamos opor a noção de “extraordinário”. Vale a pena lembrar a origem matemática destes termos. Na matemática, os “pontos ordinários” de um triângulo são os inumeráveis e indistintos pontos que ocupam cada um dos lados da figura, ao passo que seus três “pontos extraordinários”, ou singulares, localizam-se em cada ângulo do triângulo. Em uma reta, por sua vez, os pontos extraordinários são dois: aqueles que ocupam os extremos da linha.
Todavia, a diferença entre ordinário e extraordinário mostra toda a sua riqueza quando examinamos o círculo. Aparentemente, tal figura geométrica é destituída de pontos extraordinários ou singulares. Mais do que uma linha reta, geralmente costuma-se afirmar que nossa vida é um círculo: o círculo de nossa vida. Então, estaria o círculo de nossa existência destituído de momentos singulares? Estaria nossa vida refém do ordinário?
Mas o círculo guarda um segredo, tanto na matemática como na vida: qualquer ponto ordinário seu pode metamorfosear-se em ponto extraordinário, se por ele passar uma tangente. No encontro da tangente com o círculo, ambos dividirão o mesmo ponto, abrindo assim o círculo a uma força que vem de fora de seus limites e contornos. Quando o ordinário se converte em extraordinário, acontece o deslimite -renovando-se a vida.
Assim, entre o ordinário e o extraordinário não existe uma diferença intransponível: é no seio do ordinário que o extraordinário acontece. “Cada coisa ordinária é um elemento de estima”, afirma o poeta. Pois, complementa, “é no ínfimo que eu vejo a exuberância”. Em "O Guardador de águas", ele revela ainda: “No achamento do chão também foram descobertas as origens do vôo.” É no ordinário do chão que o extraordinário, como vôo, é “achado”. Enfim, “o chão é um ensino”.
"O que eu descubro ao fim da minha Estética da Ordinariedade , afirma o poeta,é que eu gostaria de redimir as pobres coisas do chão".