quinta-feira, 12 de julho de 2012

o desejo como linha de fuga





Eu pertenço de andar atoamente.

Manoel de Barros


A arte barroca também é a arte das fugas. Bach, o grande mestre barroco,  faleceu praticamente debruçado sobre uma Arte da Fuga que ele desejava produzir, deixando-a inacabada. As fugas se fazem a partir de uma linha que faz variar um tema, produzindo neste um sentido novo. A fuga implica um tema. A fuga é uma composição contrapontística. Fugir é , tanto na arte como na vida, compor-se com outro elemento em fuga, um outro ponto ou voz, de tal modo que é sempre compondo-se que se foge, e nunca isolando-se. Para haver a relação contrapontística, é necessário um tema comum aos elementos em fuga, tema este que os une em suas diferenças.
A fuga é uma repetição do tema expressa nos pontos diferentes em fuga. E todo ponto que foge, o faz em contraponto com outro que expressa o mesmo tema que o primeiro, mas em uma variação que se relaciona assimetricamente com o primeiro. A relação contrapontística da fuga é um agenciamento. É por isso que toda fuga é polifônica: ela possui múltiplas vozes, e cada uma diz o mesmo tema de forma diferente. Somente de forma contrapontística é que uma voz tem o que dizer. Isso a livra de emitir uma mera opinião que a isola ou a põe em choque com outras vozes, sem composição. O amor, a amizade e toda forma de relação somente potencializam aqueles que os vivem, e não os adoecem, quando se tornam temas para fugas que se fazem em ponto e contraponto, em composição.Quem assim vive, sua voz não emite mais uma opinião meramente pessoal ou egóica, uma vez que ela se torna a expressão de um tema que somente de forma polifônica, agenciado, se pode dizer e viver o sentido.
Deleuze e Guattari definem o desejo como linha de fuga .O desejo é contrapontístico, polifônico. O tema a partir do qual o desejo produz sua linha de fuga é sempre a vida. A vida é o tema para fugas polifônicas para aqueles que se afirmam no agenciamento que aumenta ainda mais a potência do desejo e, com ele, a potência da própria vida como tema. A linha da linha de fuga nunca se fecha em um contorno: ao contrário, ela impede que o tema se feche nele mesmo. A fuga não vem de fora do tema, ela lhe é imanente, e constitui o ponto onde o tema se expande, diferenciando-se internamente, aumentando de potência. A fuga não é um mero fugir ou escapar: ela faz fugir o próprio tema, desterritorializando-o em relação a si mesmo.
Com isso , Deleuze e Guattari querem dizer que onde há o desejo sempre há uma linha de fuga que faz variar o tema que imaginávamos o mesmo. Assim, o desejo é produção de novas possibilidades para o que imaginávamos nunca poder ser de outra forma, a começar por nós mesmos.
Triste é aquele que quer fugir de si mesmo. E quem a isso quer, não faltam os meios: o prazer alienado e narcísico, os fanatismos religiosos ou de mercado ( ou a combinação de ambos) para isso servem; as anestesias ( químicas , sociais , midiáticas, políticas...) também funcionam para quem quer fugir de si mesmo, bem como as MBA’s em autoconhecimento ,ministradas por seus gurus e mestres bem pagos ; igualmente podem servir para fazer fugir de si mesmo o vender-se em troca das medalhas, dos títulos, das propriedades e bens, dos afetos e favores que fazem a glória de Mefistófeles. Em contraste, a prática de afirmação de si e autêntico autoconhecimento é linha de fuga que amplia e potencializa o que verdadeiramente somos. No autêntico autoconhecimento, somos o tema e a variação do tema, nascendo dessa variação um novo tema.O autoconhecimento, como virtude da alma, da qual nascem a generosidade e a salut, não é meio para obtenção de medalhas ou prêmios, pois a virtude, a virtu, é o próprio prêmio, assim como o verdadeiro prêmio do autêntico músico não se mede por quantos discos ele vende, mas pela potência de variação que ele foi capaz de produzir em um tema ,com o qual ele se liga sem interesse, apenas por afeto e amor à música.E isto que não se pode quantificar com números constitui a verdadeira riqueza.
A fuga sem um tema que com ela fuja é um mero fugir de si mesmo, ao passo que um tema sem uma fuga que o faça variar é como uma identidade rígida, máscara mortuária.Fugir não é se afastar, mas fazer avançar a partir de onde se está. E é sempre em um processo que estamos.Uma coisa é fugir de si mesmo, outra é fazer fugir si mesmo lá mesmo onde estamos, para assim fazermos do nosso existir uma singular expressão do Existir da Natureza em seu infinito variar.Como dizia Espinosa, este variar infinito é o tema que nos deve afetar na produção de nossa linha de fuga.
A lagarta é o tema, ao passo que a borboleta é a fuga.A letra é tema, mas o espírito é fuga. Tema é o prazer, embora fuga seja o desejo. A fuga não é sair para o exterior de um tema, mas fazê-lo variar a partir de um fora que lhe é imanente. Entre a variação e o tema se estabelece uma relação que não é de cópia ou imitação, pois se trata de uma relação assimétrica, na qual a variação, como repetição, produz uma diferença em relação à diferença que constitui o tema. É por isso que uma variação de um tema nasce a partir de uma dramatização espaço-temporal que a torna um acontecimento que nunca acontece duas vezes igual. Disso sabem Coltrane, Charlie Parker, Pixinguinha, Bach, Vivaldi, bem como aqueles que se sentam à mesa de um autêntico partido alto e agenciam suas vozes , singularizando-as, na polifonia contrapontística de uma kizomba. Poli-fonia: múltiplas vozes. E este múltiplo nasce dentro da voz que se singulariza, compondo-se. Somente assim , polifonicamente, uma voz tem realmente o que dizer ou o que cantar.
Cada variação é como um ser novo que nasce e, através dele, é o próprio tema que renasce. Isso vale para o barroco, para o jazz , para o chorinho, para o partido alto e para a própria vida. Os grandes músicos nos mostram que a variação de um tema não é um mero tocar ao acaso, tampouco o reproduzir passivo de um tema. O tema não é uma forma Exata, da qual a variação seria uma inexatidão refém da contingência. O tema e sua variação são as duas metades de um anexato como obra em processo, afirmando a si mesma. Um tema é passível de incontáveis variações. Isto porque um tema possui uma realidade intensiva que não se pode contar ou determinar numericamente. Por isso, um tema é sempre novo a cada variação que o afirma : cada variação afirma a si mesma ao mesmo tempo em que produz a variação do tema.



quarta-feira, 11 de julho de 2012

diálogo 4





- Você já reparou: os pardais estão sumindo...
- Também estão sumindo a beleza, a justiça , a honra , a dignidade...e outras idéias assim.
- Talvez tenham ido em bando, juntos, os pardais e as idéias: foram atrás de jardins que aqui já não florescem  mais.
- Quem sabe se nas amendoeiras das ruas suburbanas ou no interior das almas das pequenas crianças   possamos encontrar o ninho dos pardais e das ideias. Quem sabe se  aí não encontremos também ,   ainda que dentro do ovo, algumas de suas crias .E maior do que a alegria desse feliz achado  será a alegria nascida do esforço que implica o cuidado com tudo aquilo que somente com liberdade  pode nascer, crescer e viver.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Espinosa: o desejo como metamorfose







O mundo da arte não é o da imortalidade,
o mundo da arte é o da metamorfose.

                               Malraux


Como se sabe, Espinosa escreveu sua Ética em latim. Nesta obra ele faz uma das afirmações mais ousadas e surpreendentes que um filósofo já fez, e que confere à sua filosofia uma atmosfera de vida que toca de alguma maneira mesmo aqueles que não estudam filosofia.Não estranharíamos encontrar essa afirmação em um poeta ou em um artista. É uma afirmação de alguém que vive da melhor forma, e não apenas teoriza sobre a melhor forma de viver. “O desejo é a essência mesma do homem”. Essa é uma das sustentações da Ética de Espinosa,uma vez que o é de toda vida que se quer mais viva. Todo homem segue seu desejo, embora pouquíssimos sigam a si mesmos quando seguem o que imaginam ser seu desejo. Segundo Espinosa, o desejo nunca é cego, embora cego possa estar o homem que deseja.A cegueira em questão não diz respeito ao objeto do desejo , ela concerne ao que é o desejo: quando o desejo ignora a si mesmo, isto tem por causa a ignorância do homem acerca de sua essência , pois a essência do homem é a essência mesma do desejo.
Em latim, o termo correspondente a desejo é cupiditas.Este termo se refere ao deus Cupido .Em grego, Eros. Cupido era um daimon, isto é, um ser das fronteiras, dos limiares. O daimon guia a quem quer fazer a travessia entre o que nasce e morre e o que é eterno. O daimon é o habitante desse espaço que é travessia, meio, devir.Trata-se de um meio de passagem: não passagem de um lugar para o outro, mas passagem de uma existência a um grau dela mais potente. É por isso que Cupido possuía asas. Todavia, a maioria das representações que temos de Cupido estão impregnadas com a visão cristã do mundo. Tal visão chama de “anjo” o que os romanos designavam como daimon. A principal diferença entre o daimon e o anjo reside no seguinte: os anjos possuem asas feitas de penas, como as que possuem os pássaros, ao passo que o daimon, incluindo o Cupido, possuía asas também, mas estas eram asas de borboleta. Isso não é um mero detalhe. Há uma razão para Cupido ter asas de borboleta, e não de pássaro   . Entretanto, as representações cristãs fizeram essa adaptação, trocando as asas de borboleta pelas de um pássaro ( embora seja com asas de borboleta que às vezes é representada a ressurreição). Os pássaros já nascem com asas. Contudo, as asas da borboleta nasceram quando houve um segundo nascimento : elas são a expressão de uma metamorfose ,tal como ocorre com o garoto do filme espanhol A língua das mariposas (cuja tradução mais correta seria A língua das borboletas ): contagiado pela Natureza, ele vive a alegria de um conhecer que é metamorfose .
Foi de um ser que rasteja pelo chão, a lagarta, que as asas da borboleta nasceram. Para estas nascerem, foi preciso que a lagarta se dobrasse sobre si: é assim, dobrada sobre si, inventando para si um casulo, que a lagarta pôde desabrochar. O desabrochar é um desdobrar aquilo que nos é imanente. Isto nos mostra que a re-flexão, o dobrar sobre si, é um acontecimento da própria natureza. Este acontecimento é uma metamorfose da qual nascem asas, asas estas com as quais não nascemos em um primeiro nascimento. A metamorfose também é uma prática de paciência. A paciência não é uma passividade, ela é uma ação.Ela não significa exatamente suportar o que nos acontece, mas nos preparar para sermos o que de fato somos independentemente das flutuações dos fatos ao redor.A paciência é uma virtu, uma força da alma.A paciência não é uma espera por algo, ela é a conduta que devemos ter para produzirmos aquilo pelo qual não devemos esperar que um outro faça por nós. O casulo expressa a arte da paciência da qual nasce a autêntica autoconfiança. Padecer é tornar-se paciente de uma ação externa.Todavia, quando agimos sobre nós mesmos é com paciência que se obra.A paciência não é o tempo de espera por algo que virá, ela é o processo de afirmação e produção do que já se é.
Não se deve confundir o desejo com o prazer. O prazer quase sempre faz o desejo cessar quando o tomamos como a finalidade ou fim do desejo. Quando possuímos de fato nossa capacidade de desejar, fazemos com que o prazer esteja subordinado ao desejo, e não o inverso; de tal modo que reinventamos o prazer, ou conseguimos extrair prazer das coisas mais simples. Decerto que vivemos em uma sociedade do prazer, mas raros são aqueles que vivem conforme o seu desejo. As drogas, o consumismo e processos semelhantes evidenciam que a mera busca pelo prazer pode ser movida pela infelicidade ou alimentá-la.
Há no desejar autêntico uma potência de metamorfose. É por isso que Espinosa afirma que o desejo é a essência mesma do homem. Mas o desejo também constitui sua existência. A passagem da existência à essência não se faz em linha reta , atravessando uma porta ou percorrendo um caminho sinalizado. A passagem é, na verdade, um atravessar de fronteiras, de limiares, de zonas intensas como aquelas que apenas Cupido sabia como nos fazer atravessar, conduzindo-nos não sobre as costas dele, mas guiando-nos pelas mãos, pois é preciso que nos apoiemos sobre nossas próprias pernas, mesmo que seja para saltar. Do contrário, não há travessia, não há passagem, tampouco conhecimento e autoconhecimento. A passagem para a essência do desejo é uma metamorfose . Nós não nascemos com tais asas, e é por isso que a visão cristianizada das asas nos representa como tendo caído aqui na Terra. Além disso, o cristianismo e outras religiões tentaram reduzir a experiência da metamorfose a uma espécie de "conversão". Contudo, a conversão é um morrer para uma determinada vida para renascer em outra reputada a 'Vida Verdadeira', ao passo que a metamorfose é um potencializar a vida: é um aumentar a vida através da Vida.A visão da metamorfose não nos introduz em outro mundo : ela é um amar este mundo , é um "dizer eu-te-amo para todas as coisas", tal como acontece na experiência poética descrita por Manoel de Barros. A metamorfose é um afirmar que nasce do amor à Imanência.Em seu livro sobre Espinosa ( Espinosa e outros hereges), Yovel se refere ao terceiro gênero de conhecimento como uma “metamorfose mental”. O desejo é a causa dessa metamorfose: as asas que nascem são a expressão de um pensar e agir livres.





quarta-feira, 23 de maio de 2012

Zaratustra




Há uma passagem do livro Assim falou Zaratustra, de Nietzsche, na qual o personagem que dá título ao livro cede às lamúrias de um anão que o seguia. Queixando-se de fragilidade, o anão suplicava misericórdia a Zaratustra, e lhe  pedia para ir em seus ombros.Uma vantagem o anão disse que Zaratustra extrairia desse favor: o anão veria o caminho e guiaria Zaratustra. Então, Zaratustra instalou o anão sobre seus ombros e seguiu sua viagem. Porém, não seguiu muito, pois logo o anão começou a advertir Zaratustra dos perigos do caminho, perigos estes que o anão acreditava divisar logo ali em frente. Zaratustra, contudo, nada via. O anão insistia, desesperado. Afirmava que logo ali havia um abismo, e antes deste um muro, e antes destes ainda ladrões, e lobos, e armadilhas, e a maldade, enfim. Chorando pelo infortúnio dos dois, já se imaginando roubados, envenenados, traídos, mordidos, dilacerados, enfim, vencidos, o anão julgou que o melhor seria parar, sentar, talvez se ajoelhar, e implorar ao destino perdão. Zaratustra já se inclinava para isso quando, de repente, um grito que veio de dentro dele, de dentro da vida que avança, protestou: “Pera lá, anão! Ou você ou eu!”. Zaratustra venceu em si mesmo o sentimento de se julgar vencido antes mesmo de enfrentar a luta , bem como os favores da autopiedade, e assim expulsou o anão de suas costas. O anão é o espírito da gravidade, o espírito do peso; ele é a visão curta, que em tudo vê um muro, uma impossibilidade, uma morte. Aceitando o risco de ir, Zaratustra avançou.

Zaratustra é o nome do antigo deus Zoroastro, que era admirado pelos iranianos, antes destes se ajoelharem diante do Alcorão, esquecendo desde então o que é ficar de pé. Singularíssimo é Zaratustra: ele não é grego ou romano, muito menos chinês ou hindu, tampouco ele andou por onde andaram os judeus. Zaratustra é o Oriente, próximo. Ele é o distante tornado perto. Ele não é migrante ou retirante, ele é o deus itinerante, o deus que dispensa templos e igrejas, e que acompanha todos aqueles que avançam.


sábado, 19 de maio de 2012

Manoel de Barros e Espinosa ( trecho do livro)




Espinosa distingue o Afeto da Afecção. Na vida cotidiana, em meio aos encontros que fazemos com os outros seres e coisas, vivemos o afeto reportado quase sempre às coisas exteriores que agem sobre nosso corpo e alma. O afeto pertence à nossa alma, e expressa o sentimento que temos de nossa potência de existir e ser.Ao agirem sobre nós, os outros seres nos produzem afecções . Estas são efeitos das ações dos outros seres sobre o nosso ser. Espinosa também nos diz que essas afecções são “idéias confusas”, uma vez que elas não nos revelam nada acerca da essência do ser queage sobre nós. Elas são apenas o efeito de tal ação.Quando essas ações geram dependência do nosso ser em relação àquele que age sobre nós, nossa capacidade de sentir e existir se torna refém dessa afecção: ficamos prisioneiros de idéias confusas que nos roubam o pensamento e a ação.
É como se nos sentíssemos existindo somente por intermédio de outra coisa. Nossos afetos se fragilizam, levando nossa capacidade de agir e pensar ao mais baixo grau de potência e afirmação. Espinosa designa de “paixão triste” a esse estado no qual o afeto se vê submetido a uma afecção, a uma idéia confusa, que nos despotencializa. A “paixão alegre” , ao contrário , nasce quando a afecção que sofremos não nos despotencializa, embora ainda deixe o afeto na dependência da ação de um ser exterior a nós.
Ora, Espinosa ainda nos diz que nós mesmos podemos ser causa de nossos afetos, independentemente da ação das coisas exteriores sobre nós. Isto porque também somos uma idéia. Uma idéia que não podemos representar, mas expressar. Nós podemos agir sobre nós mesmos, mas com a condição de nos sabermos uma expressão da própria Natureza e seu rejúbilo de Vida.
Somos uma afecção singular da Natureza. Em nós, a afecção é sempre o produto de certa passividade decorrente da ação dos outros seres sobre o nosso. Porém, as afecções da Natureza são o resultado de sua atividade necessária. Cada afecção dela é uma maneira diferente que ela tem de expressar a si própria. Cada afecção é completamente única e diferente da outra. Reportada então à Natureza, nossa essência, ou Idéia, é uma afecção da potência absoluta de existir da Vida.
A realidade objetiva dessa idéia que somos é o nosso corpo . Quando percebemos nossa idéia/ser como afecção da própria Natureza-Artista, e sentimos a necessidade imanente às suas expressões, produzimos em nós um afeto/alegria, um afeto/amor, do qual somos a causa, e fugimos das idéias confusas, ordinárias, que nascem da despotencialização de nosso ser. O afeto assim concebido é inseparável de uma existência que , no seu devir, inventa a si mesma afirmando-se não como efeito de outra coisa, mas como expressão da Vida ― esta mesma Vida sobre a qual não se pode “passar régua”.
Em Manoel de Barros, o afeto está na gênese do processo que rompe o limite das significações, manifestações e designações, e faz a palavra “pegar delírio” : “empoemando”, ela se torna expressão . Ao “empoemar” o significado das palavras, o poeta faz nascer a “despalavra”:
Hoje eu atingi o reino das imagens, o reino da
despalavra.
Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades
humanas.
Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades
de pássaros.
Daqui vem que todas as pedras podem ter qualidades
de sapo.
Daqui vem que todos os poetas podem ter qualidades
de árvore.
Daqui vem que os poetas podem arborizar os pássaros.
Daqui vem que todos os poetas podem humanizar
as águas.
Daqui vem que os poetas devem aumentar o mundo
com suas metáforas.
Que os poetas podem ser pré-coisas, pré-vermes,
podem ser pré-musgos.
Daqui vem que os poetas podem compreender
o mundo sem conceitos.
Que os poetas podem refazer o mundo por imagens,
por eflúvios, por afeto.


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NOTA SOBRE A DISTINÇÃO ENTRE AFETO E AFECÇÃO

Muitas traduções da obra de Espinosa perdem em clareza quando não atentam para a distinção entre dois termos : afeto e afecção. Algumas traduções, as mais danosas para a compreensão do pensamento de Espinosa, traduzem ambas por uma única palavra: "paixão". Outras ainda as traduzem por "sentimento". E há aquelas que mantêm apenas o termo afeto,reduzindo o sentido de afecção à mesma coisa que afeto.Todos esses procedimentos lançam confusão não apenas sobre o que Espinosa quer dizer, como também sobre o próprio sentido desses termos em nossas vidas diárias. Sem dúvida, a dificuldade maior para os tradutores reside no sentido do termo "afecção" ( affectio, em latim).Isto porque há um certo materialismo no sentido original deste termo, fato que os tradutores mais idealistas ou espiritualistas reputam indigno de colocar de forma essencial na compreensão de todas as coisas, inclusive o homem. Mas é um erro conceber o termo afecção apenas em sua acepção materialista.
Etimologicamente, afecção pode ser traduzido por "tocar", no sentido de que o artesão toca o barro, o pintor toca a tinta, o sol toca o nosso rosto, etc. A afecção é uma ação de um agente ( nos exemplos dados, o artesão, o pintor e o sol).Ao tocar aquilo que ele toca, o agente produz uma modificação naquilo que ele toca. Esta modificação é sempre instantânea, e modifica o corpo tocado.Nos exemplos que demos, a afecção é a modificação que um corpo sofre ( a tinta, o barro, nosso rosto) devido à ação de um outro corpo que lhe permanece externo. Esse primeiro sentido de afecção envolve a relação de determinação de um ser finito sobre o outro ( mesmo o sol, embora imenso, é um ser finito tanto quanto o nosso rosto que ele toca).Ora, toda ação engendra um resultado, um efeito. O efeito ou resultado de "tocar" é "ser tocado". O "ser tocado" é um índice ou sinal de que houve um "tocar". O ser tocado não é uma ação, como o tocar, mas um resultado, um padecer. O fato de ser tocado torna um ser paciente, no sentido de ele ser aquele que sofreu a ação.Enquanto o tocar é imediato, o ser tocado é sempre mediato: ele expressa uma ação que se fizera. O tocar envolve sempre uma percepção, ao passo que o ser tocado permanece existindo apenas na memória ou na imaginação, como uma imagem presente de uma ação ausente. Ou melhor, essa imagem se torna presente pelo esforço que nossa alma faz para recordar ou imaginar o tocar que se fizera em seu corpo, e do qual a imagem é o resultado, o indício ou signo. Na verdade, o ser tocado é a continuação do tocar persistindo na memória ou imaginação daquele que sofreu a ação. O "ser tocado" é exatamente o sentido de afeto ( em latim, affectus).
Vista da perspectiva do corpo que age, a afecção é um agir, um tocar. Entretanto, como ela nasce de um encontro de um corpo com outro, a afecção produz, no corpo que sofre a ação, uma marca, um indício, um vestígio. Esse vestígio ou marca não é um ser, ele é uma ausência do ser que agiu e produziu a marca. Então, no corpo passivo a afecção é esta marca da qual nasce a idéia que lhe é correspondente. Ora, uma ideia não nasce no corpo, ela nasce na alma. A ideia nascida dessa marca, dessa ausência, será exatamente o afeto.Tal idéia, por isso mesmo, será dita confusa, uma vez que uma idéia adequada expressa sempre a existência de um ser, e não a ausência dele. A idéia confusa também é chamada de “imagem” por Espinosa.É por isso que o afeto nascido da afecção é uma paixão.A paixão revela mais o estado do corpo que sofreu a ação do que a essência do corpo que agiu. Mas o corpo que sofreu a ação imagina que a idéia que nasce da ausência do corpo que agiu pode nos fazer conhecer o corpo agente. Essa idéia confusa se alimenta da ignorância de como ela nasceu, ela pressupõe a ignorância de que a afecção é ação de um corpo também. Quando compreendemos isto, percebemos que a afecção é uma ação inserida em uma Natureza que é Causa da ação de tudo que existe, posto que a Natureza é sempre Agente. As idéias confusas, as paixões, nos deixam reféns das imagens, dos efeitos. Sob as paixões, confundimos o efeito com a causa. Se as paixões nascem de ausências, por que elas têm tanta força sobre a alma?
Para Espinosa, é a alma que extrai de seu próprio ser a força para dar existência ao que é um mero efeito, uma imagem, um fantasma. É por isso que as paixões alienam a alma e impedem que ela se torne ativa. A alma se torna ativa pela compreensão nascida das idéias adequadas, que sempre expressam o que existe, e não a ausência do que existe alimentada pela impotência da alma para existir plenamente. Quando compreendemos que as afecções são sobretudo ações, e não o mero resultado passivo delas, conseguimos nos libertar da condição passional de sermos um mero resultado da ação das coisas sobre nós. Além disso, mesmo quando alguém se comporta movido por uma paixão, sobretudo as tristes, tal reagir também é uma ação: uma ação que pode menos do que poderia aquele que assim padece se ele de fato agisse de forma livre, alegre, potente. Quando compreendemos que tudo é ação, positividade, mudamos nossa perspectiva no entendimento daquilo que comumente chamamos de bem e mal, pois percebemos que nenhuma ação , nenhum existente, é um bem ou mal em si. Quando compreendemos a positividade da afecção, compreendemos que ser é existir, e existir é agir: mesmo na ação a mais pequena do mais ínfimo ser, intuímos a Ação da Natureza que nunca age visando outro fim que não seja sua própria Ação, sua própria Existência,que em nós se expressa como ação da alma, o compreender, e ação do corpo, o agir.Ser ativo não significa exatamente fazer muitas coisas que exigem músculos, movimentos agitados e "adrenalina", pois ouvir é uma ação, olhar também o é, e há uma virtude ativa em saber se calar ( segundo Espinosa, o "falar", o "falar muito" sem saber ouvir, é uma paixão muito comum em quem não tem realmente o que dizer).
De um certo tocar pode nascer o afeto do amor ou da amizade como resultado ou efeito ( as paixões alegres), ao passo que de um outro tocar pode nascer o ódio ou o rancor ( como paixões tristes). E o mais estranho: o afeto não é o tocar, mas o resultado acompanhado da idéia confusa ou imagem deste. É por isso que de um mesmo tocar pode nascer , em uns, o amor, em outros, o ódio . Por exemplo, o funk toca da mesma maneira, fisicamente falando, aqueles que o amam e os que o odeiam, pois o amar e o odiar não são o tocar, mas o resultado dele de acordo com a constituição ou modo de ser de cada um: de acordo com a maneira de ser de cada um, de um mesmo tocar nascerão afetos distintos; se uma pessoa se modificar, ou buscar viver de forma desalienada, o que hoje lhe provoca um amor passivo amanhã talvez não lhe provocará mais... Não podemos negar a existência de uma afecção, mas o vínculo entre a afecção e o afeto que dela nascerá dependerá do quanto somos passivos ou ativos diante daquilo que nos acontece. Não há uma causalidade férrea que determine que de uma determinada afecção nasça um afeto determinado. Quando compreendemos as razões que fazem uma afecção existir, nos tornamos capazes de desfazer os laços entre a ação das coisas e nossas reações em relação a elas, sobretudo se tais laços nos fizerem escravos ou passionais, isto é, incapazes de governarmos a nós mesmos.
Os tradutores mais apressados costumam então referir a afecção às modificações do nosso corpo causadas pela ação de outros corpos, ao passo que o afeto seria uma modificação nascida em nossa alma que espelharia a modificação gerada em nosso corpo. Todavia, essa visão dicotômica se torna incongruente quando nos debruçamos sobre um outro sentido de afecção, dessa vez referida não mais aos seres finitos, mas a Deus ou a Natureza. Tudo o que existe, segundo Espinosa, é uma modificação de Deus. Logo, tudo é uma afecção de Deus. As coisas nascem do tocar de Deus. Mas a quem Deus toca? Ora, por ser único, e tudo, Deus não pode ser tocado por algum outro ser que lhe seja externo. Se isso fosse possível, este ser teria que existir à parte de Deus. Mas se Deus ou a Natureza é, em Espinosa, tudo, não pode haver algo distinto dele , pois isso seria limitá-lo, o que é um absurdo. Assim, e isso parece e é poesia ( no sentido original de "poiésis", produção), Deus é um tocar que toca a si mesmo. É Deus que produz em si mesmo tudo aquilo que é uma modificação ativa dele mesmo. Deus é imanente a tudo: o que ele produz permanece nele, pois cada ser é uma maneira dele mesmo, uma modificação singular dele . Cada ser que existe é uma maneira de ser de um mesmo Ser que se expressa de infinitas maneiras. Em Deus, a afecção , o tocar, e o afeto, o tocado, são identificados à Potência divina de Existir.Todas as afecções de Deus existem de forma necessária. Em Deus, portanto, só há um afeto: o Amor. Das afecções de Deus não pode nascer outro afeto que não seja o Amor, e isto por uma necessidade que é idêntica à liberdade, necessidade esta que é imanente a cada ser singular que existe.Ser livre não é fazer o que quiser ou seguir uma inclinação, ser livre é agir de acordo com essa necessidade que produz o Amor. A identidade do tocar e do tocado, da afecção e do afeto, é o Amor que nasce do Amor: e por ele, nele e com ele nascemos nós mesmos como expressão singular de sua autoprodução.É a experiência desse Amor que leva o poeta, como afirma Manoel de Barros, a dizer “eu-te-amo a todas as coisas”.Esse Amor é uma Ação, não uma paixão ou um padecer. Esse Amor é uma Ação: ele é ação de produzir autoproduzindo-se , ele é Poiésis.
Somos uma modificação de Deus; logo, somos o resultado ou o produto desse Amor em Obra. Deus e o Amor são o mesmo, assim como são o mesmo, nele, o agente e o paciente. Ou melhor, em Deus há apenas o Amor como Agente: o paciente fica por nossa conta, quando desejamos aprender a Amar esse Amor, pois é com paciência que se o pratica. O afeto nascido assim é idêntico à idéia adequada que aprendemos a fazer de nós mesmos e da Natureza.
Deus é Ação, jamais uma paixão. Por não ser paixão, Deus jamais tem raiva ou fúria, tampouco pode modificá-lo o que os homens fazem ou deixem de fazer. Ele não espera devoção ou culto, nem obediência, pois somente os tiranos vaidosos, passionais, a isto querem.Deus não recompensa ou castiga. Ou melhor, a única recompensa é compreendê-lo, e viver de acordo com o Amor que ele é.Somos o produto desta Ação, somos uma parte dessa Ação, e compreender isso não se faz sem a Alegria que é idêntica ao Amor.Se somos um produto da Ação, é nossa essência o agir, e não o padecer ou sofrer.Deus é Perfeito porque ele é Ação de modificar-se: e é por essa razão que o homem mais sábio é aquele que se esforça para aperfeiçoar-se, e isto consiste em modificar-se. Em Espinosa, tudo o que existe é uma modificação ou afecção de Deus. Não apenas os corpos, as ideias também são afecções de Deus. Nesse sentido, há afecções que não são materiais, embora sejam tão reais quanto os corpos. Quando experimentamos e compreendemos nosso corpo e nosso espírito como afecções de Deus, dessa compreensão nasce um afeto que é a expressão de que somos tocados por aquele Amor, e a partir dele tocamos, produzimos, agimos, enfim, existimos.
Não existe o "mal em si", existe o mau em nós, não fora de nós. O mau é tudo aquilo que diminui nossa força, nossa potência.O mau é a tristeza e o ódio.Estes não existem fora de nós, eles não são ações, mas reações, padeceres.A tristeza e o ódio existem em nós como aquilo que diminui nossa existência e nos afasta de nossa saúde ( salut). Não é a partir de outra coisa, uma coisa que lhe seja exterior, que o homem age ou existe, já que toda ação se constitui  de acordo com a relação com a Potência que lhe é imanente. Não é subordinando-se a "fins externos" , teleológicos, que o homem age, pois toda ação nasce da nossa afirmação da Potência que é Ação Pura, Potência esta que não existe exterior a si mesma.É em relação com essa Potência ou Força que a alma conquista sua própria força e potência, sua confiança, sua virtu, sua firmeza, o que a torna apta para tomar posse de si mesma. Só quem dispõe de si pode exercer a generosidade.A Moral exige que a alma tenha força sobre o corpo, para assim dominá-lo e reprimir suas inclinações.A Ética de Espinosa afirma, ao contrário, que a alma só se torna potente quando conquista sua própria força,  agindo a partir desta.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Assim Falou o Samba




"Um movimento artístico, científico, 'ideológico',pode ser uma máquina de guerra potencial, na medida em que ele traça um plano de consistência, uma linha de fuga criativa."
(Deleuze e Guattari, Mil Platôs)
Não me lembro ao certo como cheguei à filosofia. Quando recuo na memória, deparo-me com algo que não pertence a ela; portanto, é apenas de forma confusa, mutilada, que encontro nela rudimentos de como nasceu esse Afeto em mim. O que me lembro bem é que eu fazia parte de um bando, de um grupo, de uma matilha, de um rizoma. Éramos cinco ou seis, éramos um, éramos múltiplos. Fazíamos o colegial. Nossa amizade nasceu na sala de aula, nas aulas de literatura.Unia-nos a música, a poesia e tudo aquilo que , como diz Manoel de Barros, "não se compra ou vende no mercado". Lembro-me que certa vez resolvemos ir à Bienal de Livro. Não tínhamos dinheiro, não tínhamos meios, mas não nos faltava o desejo . Não o desejo por dinheiro ou meios, mas o desejo. Quando se tem o desejo, inventam-se os meios e , para chegar, não nos impedem as distâncias que os homens, com suas convenções, criam.Chegamos então à Bienal. A viagem foi longa. Vínhamos não apenas do subúrbio, vínhamos também do lugar que fica atrás dos incontáveis muros erguidos pela engenharia da exclusão social. Contudo, escalamos os muros, os atravessamos, os explodimos.E em todos pixamos a nossa assinatura.Chegados então à Bienal, enfim os livros. Circulamos entre corredores, deambulamos entre labirintos.E foi no centro de um deles que eu vi a Terra emoldurando a capa negra de um livro. Sobre a Terra, o título: "Assim falou Zaratustra". E acima do título, um estranho nome:Nietzsche. Não sabíamos bem porque, mas tínhamos que habitar aquele planeta chamado Nietzsche. O nome "Nietzsche" não nos era exatamente desconhecido. Mas ele nos aparecia em uma névoa na qual estavam também, para nós, Gláuber, Lima Barreto, Van Gogh, Cartola, Pixinguinha, Dioniso...Enfim, não sabíamos conceitualmente o que era a filosofia, mas já nos afetávamos por ela porque nos afetava a vida e tudo aquilo que, segundo Manoel de Barros, "é rebeldia, rebeldia sobretudo contra o clichê". O bando viu o livro com os olhos que eram do bando, e não de cada um isoladamente. Todavia, não tínhamos dinheiro, faltavam-nos meios. Em conjunto, a máquina de guerra planejou uma ideia. Víamo-nos em uma batalha na qual era preciso resgatar um aliado do território inimigo. Forço a memória para me lembrar dos detalhes, das ações. Mas o que sei é que, de repente, olhamos para o lado e vimos, entre nós, mais um: o livro de Nietzsche foi embora em nossas mãos.O livro circulou entre nós, e o grupo decidiu que ele ficaria comigo. E comigo até hoje está. Levei-o muitas vezes para conhecer o subúrbio, pegar trem, ir ao samba. Certa vez, lembro-me bem, fui ao Morro dos Macacos com um amigo. Lá no alto desse morro nasceu a escola de samba Vila Isabel.E lá no alto ainda havia o mesmo berço de samba bom. Eu começara a fazer faculdade de filosofia. Um amigo que conhecia o lugar me disse: " o samba é bom, você vai ver. Mas o problema é, infelizmente, a bandidagem que fica por lá e pensa que é dona do morro". Naquela época, o tráfico não era tão violento, mas havia, sem dúvida, o risco. Chegando então lá no alto, havia o samba ( que estava para começar), mas os marginais pareciam a tudo vigiar de perto. Fui apresentado como "o filósofo". Quem me apresentou o fez com indisfarçável ironia, como a me dizer:" você não se diz um homem livre, se vira!". Um dos bandidos, com arma na mão,e que não tinha mais do que 17 ou 18 anos, achou graça na palavra "filosofia" e, sentando à mesa onde já se encontravam outros bandidos, me pediu para sentar também. Não tinha como recusar. Quando me sentei, sobre a mesa estavam, além das cervejas, várias armas dos mais diversos calibres. Vi então um espaço livre e coloquei ali, entre tais coisas, o livro de Nietzsche.O marginal olhou para aquele livro e me perguntou: "O que é isso que você colocou na mesa?".Pondo-me à margem daquela suposta margem, com firmeza respondi:"esta é minha arma".O marginal riu, algo nele parecia que entendeu. Ele me pediu para falar mais alguma coisa, mas eu respondi dizendo que estava ali para ouvir. Então, como se os sambistas tivessem ouvido o que eu falei, começou o samba.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

trechos do livro "Manoel de Barros:a poética do deslimite"(Editora 7letras/Faperj)


Uma influência especial em Manoel de Barros: Paul Klee. Manoel de Barros se apropria, à sua maneira, da Máquina de Chilrear de Klee, e a faz de ferramenta de sua oficina poética . Este pintor ensinou-lhe a necessidade de "aprender a desaprender" - que define muito bem o que aqui chamaremos de devir-criança*, e que tão presente está na obra de Manoel de Barros: “palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria”. Por isso, completa o poeta,

Palavras
Gosto de brincar com elas.
Tenho preguiça de ser sério
.


De sua parte, Paul Klee impôs a si mesmo uma espécie de “desaprendizagem”. Embora ele desenhasse de forma precisa e técnica, esta mesma precisão e técnica tornou-se uma fôrma e prisão para as imagens que ele queria exprimir. Uma fôrma/prisão que precisava ser quebrada para que , livres, as imagens pudessem fluir. Então, ele passa a desenhar com a mão esquerda ( como Miró também o fez). O artista descobriu-se novamente criança nesta mão: cada desenho era o desenhar de novo nascendo ─ fazendo-se como novidade, experiência e descoberta. Ao desaprender as formas e códigos da mão direita, Paul Klee redescobriu a pintura e a ele mesmo: reencontrou a alegria da criança cujo brincar e inventar é a coisa mais séria e verdadeira. Assim como a arte de Paul Klee,

A poesia tem a função de pregar a prática
da infância entre os homens.


***
[ *Nota sobre o devir-criança:Quando alguém se torna adulto, a criança que ele foi está no passado;quando tal adulto era criança, o ser adulto era seu futuro.O adulto é o futuro da criança enquanto esta é um estado com uma identidade que lhe prescreve uma definição, um contorno; de maneira análoga, a criança é o passado do adulto enquanto este representa a si mesmo como um estado circunscrito por uma identidade.Sob esta perspectiva,"criança" e "adulto" são estados que se opõem pelas suas respectivas identidades.O devir não possui passado ou futuro: ele é, como dizem Deleuze e Guattari,antimemória. Ou Melhor, se ele nos dota de uma memória, trata-se de uma memória como a que têm os anjos : memória que nos liga à eternidade.O devir está sempre no meio: ele não é uma linha que liga dois pontos, ele é linha que passa entre dois pontos, uma linha transversal( as linhas transversais nunca se fecham em contornos).O devir não é exatamente a diferença entre o adulto e a criança,mas Diferença que está entre o adulto e a criança, e que os faz se comunicarem pelas suas diferenças, criando um contágio, um Afeto. É a História ( pessoal ou coletiva) que possui o passado e o futuro como pontos que o presente liga, ao passo que o devir está sempre no meio. Porém, ele não é uma média, ele é meio : ele é zona indiscernível que constitui a vizinhança entre o adulto e a criança. O presente do devir não é o presente cujos termos complementares são o passado e o futuro, uma vez que o presente do devir é o presente da metamorfose: esquecimento que cura dos fantasmas do passado, criação do novo que nos liberta de todo sentimento de esperança em relação a um futuro que nos deixa passivos.A criança do devir-criança não está no passado: ela co-existe com o adulto, mas não é feita de lembranças psicológicas deste.Ela é uma "criança molecular", imperceptível à percepção que só vê o já visto.Segundo Deleuze-Guattari,molecular é aquilo que é, ao mesmo tempo, elementar e cósmico:elementos mínimos, heterogêneos,conectados ao absoluto.Intensos, tais elementos singulares não podem estar contidos em uma forma:seus limites são limiares trabalhados por dentro por uma Vida que de si mesma transborda.O devir-criança não é uma regressão ao estado de criança, tampouco ele é um mero imitar, infantilmente, uma criança.Quando devimos criança, tornamo-nos algo que a "forma adulto" nos impede de ser, ao mesmo tempo que a criança torna-se outra coisa que a criança definida em oposição ao adulto.No pintor Klee, por exemplo, a criança do devir-criança que ele inventa torna-se uma criança feita de linhas e cores,ao mesmo tempo que ele próprio se torna outra coisa , coisa esta que a obra testemunha e dar a ver.Esta criança que vemos na tela, e que é o produto de uma metamorfose, de um devir, não é menos real do que a criança que vive na nossa memória pessoal.Sua realidade é aquela que a arte engendra, libertando a Vida dos limites estreitos de nossas vivências pessoais. Quando devimos criança, captamos o que na criança há de intempestivo e eterno, cujo futuro não é virar adulto, mas produzir no adulto uma criança que não é a que ele foi. A criança do devir-criança não está no passado, tampouco somos o futuro dela: ela co-existe com nosso presente, libertando este do passado que ele imagina prolongar e do futuro em relação ao qual ele crê ser uma continuação daquilo que hoje é.Como dizia Espinosa, a criança do devir-criança não é um estado, mas uma atividade de re-generar-se, isto é, de nascer de novo para o novo.Devir é revir. Devir é retornar.Mas o retornar do devir não é um revir ao passado. Trata-se de retornar ao hoje, a este mesmo hoje do qual a imaginatio sempre nos afasta. Devir é retornar ao hoje para nele intuir o eterno que nunca é o mesmo a cada vez que a ele retornamos: muda ele, mudamos nós nele, como parte dele.]

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O deslimite pode ser compreendido como um processo ao mesmo tempo estético e existencial, no qual vida e poesia se mostram como as duas faces de uma mesma Vida a qual não se pode impor uma forma ou limite . Esta Vida somente se deixa apreender em uma experiência de devir. O devir não é uma forma ou algo de determinado, mas um processo no qual os seres atingem seus deslimites (conforme veremos ao longo do estudo) .
Atingir o deslimite não significa destruir-se ou negar-se. Ao contrário, é o limite que destrói a invenção que se pode e se deseja. O deslimite , portanto, é uma experiência com a Vida, e não com a morte ( nos vários sentidos que essa palavra pode ter).
Embora seja uma experiência eminentemente poética, isso não significa que ela seja suscitada apenas pela leitura de poesia. A essência de tal experiência é exatamente nos ensinar a alargar a compreensão do que seja poesia, como faz Manoel de Barros, para que a vejamos em todas as coisas que, rompendo seus limites, deixam ver a Vida.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

da amizade

"Odeio quem rouba minha solidão sem oferecer verdadeira companhia."
Nietzsche


É preciso ler essa frase de Nietzsche de uma perspectiva que não seja a de um ego, seja a do ego de Nietzsche ou a do nosso.Se não tomarmos essa cautela, corremos o risco de confundir Nietzsche com um pedante, um esnobe, um misantropo ou, o que é pior , com um ressentido; e o mesmo se aplica a nós mesmos se interpretarmos egoicamente a frase em epígrafe.Parece-nos que o entendimento adequado de Nietzsche exige que nos coloquemos no lugar daquele que vai ao encontro de alguém. Primeiramente, devemos evitar projetar sobre o outro, seja o outro quem for, ideias confusas acerca de sua maneira de ser: é preciso reconhecer o outro em sua diferença, e que esta diferença é uma virtude dele, esteja ele consciente ou não dela .Em segundo lugar, devemos considerá-lo como alguém que tem algo a dizer,mesmo que este algo seja seu silêncio, o que nos exige uma disposição de escuta.Enfim, devemos nos esforçar para sermos uma verdadeira companhia para o outro, o que pressupõe que o sejamos , antes de tudo,para nós mesmos. Dessa forma, venceremos os respectivos monólogos ( estes , sim, tristes exercícios de uma solidão a dois...), fazendo nascer, se possível, um bom encontro , como dizia Espinosa, no qual possa existir uma conversação, um diálogo.
Deleuze dizia que em certas horas é preciso desconfiar até mesmo dos amigos.Essa desconfiança é o efeito de uma confiança maior: a confiança nos intercessores. Destes não há desconfiança:sabe-o quem na vida necessitou mudar. Somente os intercessores nos mudam, e nós a eles. Os amigos nos querem o mesmo.Como vencer essa aparente incompatibilidade? Aprendendo a fazer do intercessor um amigo e, se possível, do amigo um intercessor. Um intercessor não nasce da intercessão de opiniões comuns, mas do produzir singularmente uma área de afeto onde não se diz mais "eu" ou "outro": ousa-se dizer um "nós", mesmo que ainda em balbucio ou gaguejando.Um nós não nasce da intercessão de conjuntos com contornos delimitados, pois o intercessor é um "outsider", um "lado de fora" que incorporamos lá onde deveria estar um contorno, para assim inventarmos limiares.O "lado de fora" não é um fora que se opõe a um dentro, mas abertura para o fora que se faz de dentro, encontrando um intercessor . Um intercessor é "aquele que intercede a nosso favor". Mas intercede em relação a quais assuntos e diante de quem?Os assuntos que pedem intercessores são sempre aqueles verdadeiramente essenciais para que nós possamos , como dizia Nietzsche, "nos tornar nós mesmos".O intercessor intercede por nós diante da vida, diante do cosmos, diante daquilo que não podemos conhecer; ele é mão estendida que sempre puxa para cima: não exatamente para cima de um palco ou de um pódio, mas para um ponto onde nos distanciamos de nós mesmos, para assim aumentar nosso horizonte e perspectiva. Ele intercede sobretudo diante de nós mesmos, tornando-se a ponte entre nós e aquilo que verdadeiramente somos. Contudo, um intercessor não existe com uma etiqueta nos avisando:"Eu sou seu intercessor". Não raro, o intercessor está imperceptível aos olhos daqueles que olham mais para os outros do que para si : embora o intercessor possa estar maduro para eles, são eles que ainda não estão maduros para encontrar o intercessor. De certa maneira, somos nós mesmos que produzimos nossos intercessores quando,ativa e singularmente, desejamos produzir a nós mesmos, fato este que expressa não apenas discernimento e virtude, mas também arte. Assim, todo verdadeiro amigo é um intercessor. Descubra isso, ouse isso, creia nisso: produza-o e , antes de tudo, seja-o.

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sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

ano novo




Arrumar a casa.
Limpar a poeira acumulada, para que as cores sufocadas respirem em nova aparição. Cuidar dos suportes físicos, para que eles sejam a imagem externa da integridade do nosso espírito.
Lustrar os vidros, para que nesta transparência nosso pensamento se possa ver.
Reorganizar as distâncias entre as coisas, para que o espaço não seja um vazio, e para que a presença dos objetos não impeça o deambular de nossa percepção.
Praticar o desapego daquilo cujo tempo passou, para que a luz do dia toque de novo os olhos do nosso desejo.
Fazer tudo ao som da música, cantando junto, para que na mente também se opere a faxina.
Depois de tudo revitalizado, alegrar que sejamos nossa primeira visita.

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Entre um segundo e outro do dia, unindo-os para a cotidiana travessia, é aí que se vive o verdadeiro ano novo: em nossas mãos, enquanto avançamos, ao invés de champanhe ou fogos, a água, o pão e o sonho.