Antes de ouvir
Chico, eu o li. Eu tinha por volta de 12 anos. Antes de ouvi-lo como música, eu o
li como poesia: como poesia que se lê para ampliar nosso pensar e sentir. A
primeira vez que li Chico foi na escola, ainda pairava sobre nós a sombra da dit4dura.
Eu já sabia ler livros : de história, de geografia
e até livros de literatura. Porém, até então eu não havia experimentado toda a
potência que pode haver na leitura.
Foi a poesia que
vive na canção popular que, quando
criança, me fez aprender a ler não
apenas a letra, mas o mundo que ela expressa: mundo por descobrir.
Li pela primeira
vez Chico numa aula de língua portuguesa
. Ao invés daqueles livros re4cionários que, na parte de interpretação de textos, empregavam os “parnasianos” , a nossa querida
professora resolveu adotar um livro diferente,
plural :o livro apresentava as letras de
músicas dos compositores que participaram dos Festivais da Canção . Tais Festivais
eram ainda recentes, eu era bem pequeno
quando eles aconteceram, não tinha memória ou vivência deles.
Quando em sala
de aula li pela primeira vez “Construção”, de Chico,
experimentei o que Deleuze e Guattari chamam de “desterritorialização”. Desterritorializar-se é libertar-se do acostumado de toda cartilha ,incluindo as
cartilhas que tentam aprisionar nossa mente
e sensibilidade.
Ao ler Chico, eu
não apenas me desterritorializava : eu também me reterritorializava num
território composto de sensações e
afetos novos que me faziam crescer por dentro. Ao ler o poeta ,enfim, fui por
ele lido: e me descobri também como poema a fazer-se.
Esse novo território não tinha limites ou
cercas, ele era ilimitado, aberto, e me
ampliava para além dos muros da escola: me lançava na rua , me inseria
no cosmos.
Foi a partir
dali que tomei gosto pela leitura e
compreendi que todo ler também é um “ ler-se ” : ler a si e a sociedade
da qual fazemos parte , para que a leitura não seja apenas de palavras, e sim
dos sentidos existenciais que nunca
poderão ser reduzidos apenas a livros ,
muitos menos os de “Moral e Cívica” , a cartilha com a qual os milic0s queriam
nos adestrar.
Embora eu não
entendesse intelectualmente todos os significados imanentes à letra do Chico,
algo em mim ali “desabriu” e “horizontou”, como diz Manoel de Barros. E não sem
alegria, a mesma que depois aprendi em Espinosa.
Chico nos
ensinava que era possível resistir cantando , e que o cantar se torna ainda mais forte quando se canta
junto, sobretudo quando os autorit4rios querem nos amordaçar, ontem e hoje.
E creio que foi
ali que começou a nascer em mim, ainda em embrião, o filósofo. Pois quando o
pensar e o sentir se tornam duas asas abertas para voos de
(auto)descobertas, aprendemos o que
Deleuze assim chamou: pop’filosofia!
E ontem foi o aniversário da grande Bethânia ( 79 anos):
Bethânia lendo Manoel ( trecho do filme "Língua de brincar", de Gabraz Sanna):
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