segunda-feira, 29 de julho de 2013

evento em agosto:V Seminário Conexões; XII Simpósio Internacional de Filosofia



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1-Uma verdadeira linha de fuga é aquela na qual não se pode, e nem se deseja, retornar ao momento que supostamente a antecedeu, e que ainda não era a fuga como ato de criação e invenção. Isto porque a linha de fuga é exatamente ruptura com aquilo que a antecedeu: na linha de fuga, e por ela, o passado deixa de existir. 
O passado não é exatamente o que se passou, mas a permanência do que se passou como marca ou efeito inscrito em nosso corpo e em nossa alma. Libertar-se do passado exige que nos libertemos dos efeitos de um encontro que perdura em nossa existência atual. Não  podemos mudar nossa relação com o passado sem que antes mudemos nossa relação com a vida atual.Como ensina Espinosa,uma marca ou signo revela mais o corpo marcado do que o corpo que marcou. O encontro perdura no signo que ele deixou.Quando se trata de um bom encontro, o signo nos auxilia a nos  apoderar de nossa própria potência de agir e pensar. No mau encontro, ao contrário, a marca ou signo revive o corpo ausente mediante nossa potência de existir que então se fragiliza, pois a marca somente ganha vida mediante nossa vida, e não através da vida do ser que nos marcou. Esse é o sentido original de re-sentimento: sentir novamente apenas o efeito como se este fosse a causa. Como mostra Nietzsche,o ressentimento nos torna reféns dos efeitos; e se estes ressuscitam, é mediante nós mesmos que nos tornamos causas , causas parciais, daquilo que nos domina e enfraquece. Nietzsche também argumenta que a memória das marcas define a memória do escravo, do impotente.A história muitas vezes nada mais é do que sucessão de marcas, nas quais o escravo de hoje é o senhor de amanhã, e vice-versa.Mas , segundo Deleuze,o devir é desmarca: ele é a produção de um espaço liso como superfície do sentido. E o sentido nunca é uma marca ou um significante: o sentido se expressa em traços a-significantes que atualizam um virtual que é a sua outra metade inefetuável, sempre por vir. Além disso,   os piores fantasmas não são dos que já morreram, mas dos que ainda vivem na marca que ressuscitamos com nossa própria vida, sem que a isto ninguém nos obrigue; e assim existimos menos, passando mais a reagir do que a agir, entregando-nos mais ao imaginar do que ao pensar.Se a marca ou signo é uma ausência, esta passa a existir diminuindo nossa presença , nossa presença a nós mesmos e ao mundo.
Assim, uma linha de fuga nunca é o efeito de um momento que a antecedeu, e ao qual se poderia retornar para compreendermos como ela se deu ,ou então fazê-la diferente.Quando Deleuze afirma que, pela linha de fuga, o passado deixa de existir, ele não quer dizer que a linha de fuga é uma negação do passado; ao contrário, a linha de fuga é uma afirmação de um tempo por vir. O simples negar não cria nada, tampouco muda aquele que apenas nega.
O tempo por vir não é um tempo futuro antecedido pelo presente que amanhã virará passado. Se algo é presente, é porque em algum momento começou. E, por ter começado, pela mesma razão em algum momento vai acabar. O por vir, diferentemente, nunca é presente; por isso, não começa ou acaba: ele está sempre no meio, e somente o vivemos nos instalando no meio dele, ele que desfaz todo limite, toda identidade e toda certeza.A linha de fuga nunca é fuga do passado, mas passagem ao por vir, o qual nunca chega e ao qual nunca se chega, a não ser na experiência de um devir-outro, uma metamorfose. O bom encontro nunca é ir em direção ao outro, ou esperar que ele venha até nós. O bom encontro é uma linha que faz fugir um e outro, para no meio afirmar e recriar um nós. 
O tempo por vir é sempre por vir, e é de imediato que nos instalamos nele, instalando-nos em nós mesmos, abrindo-nos, agenciando-nos.

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2-Deleuze e Guattari falam de inúmeros devires: devir-negro, devir-mulher, devir-criança, devir-imperceptível,devir-animal, devir-verdade, devir-molecular...Em cada devir apenas um termo se repete: o próprio devir. Somente o devir é agente de devir, ele é agente dele mesmo, e não tem representantes. Mas o devir não é um sujeito, ele é um processo.
O devir tem primazia: o "ter primazia" não constitui eminências, pois o que é primeiro é sempre a potência. "Não se pode passar régua no devir", diria Manoel de Barros. No devir-criança, por exemplo, não se trata de se identificar com uma criança, mas alcançar uma zona de vizinhança na qual ocorre um duplo devir: devir que concerne àquele que cria e entra em devir, e devir da própria criança enquanto fase cronológica da vida.Não é apenas o adulto que deixa de ser adulto, a própria criança deixa de ser o que identificamos como criança, para assim se metamorfosear em uma matéria de expressão que varia conforme a arte implicada.Paul Klee, por exemplo, fabricou um devir-criança expresso em cores e linhas.
O devir é sempre duplo: ele não liga dois pontos com identidades fixas, o adulto à criança, ele passa entre dois pontos, ele acontece no meio, na Diferença.
Segundo a lógica, o homem adulto não é uma criança, o homem é racional.Dentro do conjunto das coisas que são racionais,o homem é um de seus componentes.Dentro do conjunto dos seres que são crianças, o adulto não é um deles.O conjunto define a Identidade que permite reconhecer seus componentes. O "é", o verbo "ser", indica pertencimento ou não pertencimento à identidade de um rebanho enquanto conjunto fechado, molar.No devir, diferentemente, afirma-se o conectivo: entre o adulto e a criança há uma zona de vizinhança, uma fronteira. Mas esta fronteira não é uma linha que separa ou liga  dois países ou territórios  com identidades fixas. Enquanto fronteira ou limiar, o devir é passagem não de um ponto a outro: ele é passagem entre ambos, e os abre a uma terra incógnita , molecular, onde nos tornamos estrangeiros pelo que  experimentamos e vivemos  , na potência de  um  encontro.Só nos agenciamos realmente com os seres quando entre eles e nós vivemos e experimentamos um "e" como conectivo que relaciona diferenças pela Diferença: a multiplicidade, a multitudo, nunca é um rebanho: "o E não é um ou outro, o E está sempre entre os dois, é a fronteira, há sempre uma fronteira, uma linha de fuga ou de fluxo, apesar de não ser fácil percebê-la. É sobre esta linha de fuga que as coisas se passam, os devires se fazem, as revoluções são rascunhadas" (Deleuze).
É no agenciamento que construímos um devir, pois nenhum devir é dado pronto. Ninguém acha ou recebe um devir, mas o faz, o inventa - segundo um critério que não é teórico ou acadêmico, e sim existencial, vital. Somente o devir é agente, e é por isso que é ele que vem primeiro e se repete, diferencialmente, em cada devir diferente. Por ser ele o agente, é sempre em devir que se faz um agenciamento: este é a conexão entre dois pontos através de uma linha que passa no meio, linha esta que nunca se fecha em contornos - linha labiríntica, linha nômade, linha da vida:  linha de fuga.
Não há território sem um processo de territorialização. O território nunca é um dado apenas físico. O território é criado pelo processo de territorialização. Este pressupõe a criação de uma realidade expressiva feita de signos, que antecede ao próprio território. É esta realidade expressiva, semiótica e artística , que antecede e produz um território , e não o inverso. O território de um pássaro canoro vai até onde alcança a potência do seu canto. O canto é um processo de territorialização. Obtido um território, nele poderão ocorrer comportamentos explicáveis pelas funções e pelos órgãos, como é o caso da procriação e da agressividade. Mas a territorialização não se explica pela utilidade e pelos órgãos, uma vez que a territorialização é um processo expressivo, e que sugere a existência de um corpo sem órgãos como corpo idêntico à potência e ao desejo.  A territorialização é a produção de um território que nasce como produto de uma arte, e não comportamento circunscrito a um órgão ou função. Os órgãos dependem de um território já constituído, ao passo que a territorialização é sempre constituinte. Daí os riscos advindos da territorialização.
Mas além do território e da territorialização existem a desterritorialização e a reterritorialização. Estas se explicam pela relação do território com a Terra, que é desterritorializada e desterritorializante.A própria Terra é um imenso corpo sem órgãos, uma Potência Absoluta de produção,  que nunca se explica funcionalmente. A territorialização é uma codificação de fluxos. Todavia, por toda parte os fluxos fogem, atestando que todo território é aberto. A Terra é pura fluxão: é dela que vêm os territórios a criar, não os já criados. A Terra é manancial de sentidos que nunca podem ser remetidos a coisas ou referentes que lhes sejam prévios. "Imanência" provém de i-manare: ir para dentro do manancial ou fluxo.
 A desterritorialização é um ir do território à Terra, ao passo que a reterritorialização é um ir da Terra a um novo território. Ir do território à Terra e da Terra a um novo território constituem as duas direções de uma linha de fuga. Essa duas direções, no entanto, não são como as duas mãos contrárias de uma rodovia, dado que as  duas mãos de uma rodovia se explicam por movimentos relativos que têm por referência os pontos fixos  que a rodovia liga. A linha de fuga é desterritorialização e reterritorialização sem que ambos os sentidos ou direções sejam contrários, dado que a linha de fuga é uma só linha, e não duas: ela não  liga  dois pontos, mas sim abre os dois pontos a um  meio, o qual é sempre desterritorialização e reterritorialização  ao mesmo tempo.
O meio é sempre a Terra, como meio de criação e invenção: somente a Terra é desterritorializada e desterritorializante.Experimentá-la produz também cantos, mas são cantos diferentes daqueles da territorialização. E os próprios passarinhos cantores , poetas por natureza,  a isto também nos ensinam.O tordo, por exemplo, produz um misterioso canto que ele somente canta em horas específicas do dia: no fim da tarde, quando o sol se vai e a noite se aproxima, e na aurora, quando a escuridão começa a se ir , pois já vem, no horizonte, o dia. É um canto de limiares, de passagens.Nenhum cientista consegue explicar qual a função de tal canto . Mas quando o pequeno pássaro a isto se entrega, ele o faz correndo riscos: pois o canto o revela para a coruja, que  o tem  como uma de sua presas.À noite, aquele mesmo território pertence à coruja; de dia, ele pertence ao tordo. Mas entre o dia e a noite há um meio, uma zona de vizinhança , uma Pura Aurora, que também tem seus riscos, como tudo aquilo que envolve a liberdade .Ao cantar seu canto desterritorializado e desterritorializante, o pássaro-poeta salta e voa, "voa fora da asa", como diria Manoel de Barros, mas no mesmo lugar, uma vez que é no lugar mesmo que ele encontra a Terra, e conquista para si uma vida que nunca a coruja poderá predar: "Os raminhos com que arrumo/as escoras do meu ninho/são mais firmes do que as paredes/dos grandes prédios do mundo" (Manoel de Barros).

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3. A ORQUÍDEA E A VESPA

A vespa é um inseto, isto nos ensina a ciência. A orquídea é uma planta, também a ciência a isto nos informa. "Informar": dar uma forma, um limite. A vespa é um indivíduo membro de uma espécie. A espécie fornece a "identidade", ao passo que é graças à semelhança com a espécie que podemos reconhecer um inseto como uma vespa. Porém, apesar das aparências, o princípio de recognição, ou reconhecimento, não vai do indivíduo à espécie: ao contrário, ele vai da espécie ao indivíduo, da Identidade à semelhança. É a Identidade que vem primeiro: é a forma universal da espécie que nos permite reconhecer algo, e determiná-lo,  como isto ou aquilo. Até aqui, parece que Platão, Aristóteles e  Kant, além de Darwin,  têm razão...
O que vale para a vespa vale igualmente para a orquídea: cada orquídea que vemos é um indivíduo que pertence a uma espécie.Cada individuo é uma existência cuja essência é a espécie quem fornece. É a espécie que tem a Identidade mediante a qual os indivíduos se assemelham não apenas a ela, como também entre si .Um indivíduo vespa se assemelha à espécie vespa bem como a outro indivíduo vespa. Mas nenhum indivíduo vespa é idêntico à espécie vespa, assim como nenhum indivíduo vespa é idêntico a outro. Nenhuma vespa é "A" vespa: o artigo definido acompanha apenas a espécie ( aos indivíduos acompanha tão somente o artigo indefinido...). Somente a espécie pode ser definida, já que os indivíduos são sempre habitados por uma indefinição que nunca se separa totalmente deles.O que faz cada indivíduo diferir de outro é a mesma coisa que o faz não ser idêntico à espécie. Tal realidade é a matéria ou potência. A potência é a Diferença sem identidade e semelhança.
Todavia, como mostram Deleuze e Guattari inspirando-se em Proust e na etologia,algo de extraordinário acontece entre uma  orquídea e uma vespa. Uma orquídea é diferente de outra orquídea, isto é certo. Apesar da diferença que as separa, há a semelhança que as une mediante a Identidade da espécie. Mas a diferença que há entre uma orquídea e uma vespa é completamente distinta da diferença que existe  entre os indivíduos de uma mesma espécie. Não obstante essa diferença, uma orquídea é capaz de estabelecer uma relação singularíssima com uma vespa.
Uma orquídea não tem pernas, pois a raiz a fixa ao solo. Uma orquídea não tem ouvidos ou olhos, embora ela tenha formas sutis de percepção do mundo que a rodeia. Entre a orquídea macho e a orquídea fêmea há uma distância que a primeira percorrerá nas asas de uma vespa, mas sem sair do lugar:  sem ter olhos ou mãos, a orquídea macho fabrica em suas pétalas o órgão genital de uma vespa fêmea. Diferentemente de um escultor, a orquídea esculpe sua obra em seu próprio ser, em seu próprio corpo, de tal modo que entre ela e sua arte nasce uma indistinção que suspende as leis e regras lógicas que presidem o mundo das espécies e dos indivíduos.Ao ver o que pensa ser um outro indivíduo de sua mesma espécie, a vespa macho se une à vespa fêmea que a orquídea-artista  inventou para amar uma outra orquídea .Ao sair dali do seu ato de amor e ir pousar em uma orquídea fêmea com seu corpo imantado de pólen, a vespa se torna o instrumento de amor entre as duas orquídeas que não se vêem e nem se tocam, mas que se encontram e se amam por intermédio do apetite da vespa.
A orquídea inventou um devir-vespa, ao mesmo tempo em que a vespa entra em um devir-orquídea. A orquídea inventou um estilo-vespa, um ritmo-vespa, uma singularidade-vespa.Não um indivíduo vespa, mas uma singularidade vespa. Como dizem os medievais, uma hecceidade.A espécie é como um molde ou fôrma, ao passo que o indivíduo é feito uma matéria que a fôrma informa, dando-lhe um limite.Mas a singularidade é uma modulação : ela é a implicação de uma forma e uma matéria na imanência das quais vive uma potência sempre em deslimite, como diria Manoel de Barros.A orquídea inventou uma vespa feita de pétalas,assim como Van Gogh criou um girassol feito de tintas.Antes de ser a representação de uma vespa, o que a orquídea produziu foi a expressão de uma potência criativa que é imanente à vida.Enquanto a espécie é uma essência que não muda, posto que forma invariável, o devir-vespa da orquídea é uma essência enquanto "minadouro": dela minam sentidos de uma vida que se auto-inventa.O "minadouro", diz Manoel de Barros, é a fonte de onde a poesia nasce.E é dessa fonte que também nasce a vida que se afirma como processo que nenhuma forma pode reter ou conter.
A arte não é imitação da vida, ela é a vida mesma .A orquídea  inventou uma semelhança a partir de sua diferença, e fez passar uma vida que não se explica pela Identidade da espécie, mas pela potência de invenção.  Esta vida que passa "entre", que está sempre no meio e é meio de devir, nos faz compreender porque Deleuze afirma que "são os organismos que morrem, não a vida". São os organismos também que evoluem segundo um eixo paradigmático que vai do indivíduo à espécie. Mas o devir ocorre segundo um eixo horizontal sintagmático de agenciamento e conexão, uma evolução a-paralela, impensável segundo a concepção que pensa a evolução como progresso do menos perfeito ao mais perfeito. Se pensarmos a orquídea e a vespa como pontos em linhas diferentes, o devir é uma linha que passa entre estes dois pontos, abrindo-os a um processo que os retira de suas respectivas linearidades, de tal modo que cada um se torna uma singularidade a compor um rizoma, um agenciamento.
Se a evolução se estabelece na relação de um indivíduo com sua espécie a partir de um meio, o devir acontece na relação de agenciamento entre diferenças que se tornam mútuas, afirmando uma desterritorialização de cada uma em relação ao território determinado de suas respectivas espécies, e concomitante reterritorialização em um processo de invenção que vence as distâncias.E em tudo o agente é o Afeto que inventa sua própria ideia e realidade: enfim, a orquídea produziu uma linha de fuga com as asas da vespa.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Nélson Rodrigues, Kant, Espinosa e a "cerca"





Vá ouvir um samba antigo
para saber o que há de novo.

Sidney Miller


Nélson Rodrigues dizia que “a moral é uma cerca: os ricos passam por cima dela, enquanto os pobres passam por baixo; somente a classe média dá com os peitos nos limites da cerca e não a ultrapassa ”. Uma coisa  uniria  ricos e pobres: eles não levam em consideração  a cerca como limite que os regule.  Os ricos a burlam  indo “por cima”, comprando  o que o poder pode obter  como meio para quem quer transgredir, mas sem “sujar as mãos”; já os pobres vão rente ao chão,eventualmente se sujam, posto que se abaixam. 
A moral é um “não”: algo que se impõe limitando. Limitando os apetites, as inclinações, as paixões. Essa história de Nélson apresenta uma imagem negativa da liberdade: ser livre seria  transgredir a cerca, não importando  os meios. Os seres da  classe média seriam os “neuróticos”: eles obedecem a  uma imagem da liberdade negativa também, mas como “respeito à cerca”, “respeito à Lei Moral”. 
Filosoficamente, Kant é o mentor de tal atitude “classe média”: média no agir, média no desejar, média no pensar, sempre com as marcas da cerca no peito. E se os ricos  e os pobres se colocam nos extremos, tais extremos também se definem pela média que eles burlam.
Mas cabe a inocente pergunta, que certamente fariam Nietzsche, Espinosa, Manoel de Barros ou uma criança: “quem fez a cerca?”. Não só quem pára nos limites dela, mas também quem a transgride acredita nela:  quem a ultrapassa extrai prazer dessa transgressão, mas ainda mantendo a cerca como referência, mesmo que para negá-la. Liberdade neurótica e liberdade perversa: ambas ainda se explicam pelo “não”, pelo limite. O “iconofílico” e o “iconoclasta” se explicam pelo mesmo ícone: o primeiro  se ajoelha diante dele,  enquanto que o segundo   o quer  destruir pelo desprezo.  A história  política nos mostra infelizes e bizarras uniões entre os que pulam por cima e os que se arrastam por baixo da lei, e implantam as mais variadas formas de fascismos e demagogias, ou a mistura de ambos.
A liberdade, a liberdade do desejo, e não a do mero prazer, não estaria em pensar e agir sem ser a partir de uma  cerca? Pensar e agir não seriam afirmações de uma outra ordem? O perverso nega a negação, afirmando uma afirmação derivada do que ele nega. Transgredir também é uma reação. Se retirarmos as cercas fica livre não apenas quem elas limitavam , como também quem as transgredia. 
Pensar não é partir de uma cerca, e sim do infinito. É em relação com este que podemos criar algo que seja realmente libertário:  um pensar e agir que criam alguma consistência para si, mas sem perder o infinito. Dar consistência não é cercar, diminuir, limitar, negar; dar consistência não é solidificar, enrijecer. Dar consistência não é objetificar.Virtual procede de virtu, que significa força. Não a força física, a que nasce do corpo orgânico e seus músculos, e que pode servir ao ódio e à destruição exclusivamente, mas sim a força que nasce do espírito,  como potência de criação. Dar consistência ao virtual é aumentar sua força: é torná-lo imanente ao ato que o torna consistente.Dar consistência à potência é afirmá-la como afirmação que afirma a afirmação. Dar consistência à potência é habitá-la, mas sem diminuí-la ou cercá-la. 
Se a moral é uma questão de cercas, a ética é uma atividade que visa criar consistência para nosso modo de vida, ampliando-o, potencializando-o. A ética é uma prática do  desejo. Se Kant é o filósofo da cerca, Espinosa é o pensador da ética: nem classes nem cercas, mas a multitudo, a multiplicidade que não se pode limitar ou cercar. Ética como criação de consistência, isto é,  de agenciamento  que distingue  a lei das “regras de vizinhança”: estas são “noções comuns” , como diz Espinosa, e não leis. A noção comum se assemelha   a um barco no qual entramos para , remando juntos, fazermos a travessia de um fluxo . Daí nasce a liberdade como  prática  de um  perseverante esforço, ao invés  de uma cerca que separa espaços com identidades fixas ; mas tampouco se  afirma a diferença apenas transgredindo essas identidades fixas... Como diz Nietzsche, “só podemos destruir sendo criadores”.
 Não há agenciamento ou  “bom encontro”onde a referência é a cerca, seja como limite que pára ou como limite  que se quer apenas para os outros, e que com prazer se burla. Segundo Deleuze e Guattari, o agenciamento pressupõe uma zona de vizinhança entre cada um que se agencia, e o que  está no meio nunca é uma cerca, nem uma média, mas abertura a um processo que singulariza.