quinta-feira, 24 de abril de 2014

a carruagem de dioniso

A literatura é o esforço para interpretar engenhosamente os mitos 
que não mais se compreende, por não sabermos mais sonhá-los ou produzi-los.

Gilles Deleuze


Sê sempre  poeta, mesmo em prosa.

Charles Baudelaire


No Fedro, Platão nos apresenta uma alegoria que retoma, com roupagem poética, a doutrina das faculdades. Platão se valera da idéia da carruagem como modelo para a compreensão da alma humana. A carruagem de Platão compõe-se de três elementos: o cocheiro e dois cavalos. Na carruagem de nossa alma, diz Platão, o cocheiro é a Razão: é esta que tem as rédeas e guia a carruagem para um rumo determinado, ao passo que aos cavalos cabe a obediência à disciplina imposta pela razão-cocheiro. Um dos cavalos, de cor branca, é dócil e receptivo aos comandos da razão: trata-se da Vontade. Mas o outro cavalo, de cor preta, é indisciplinado, convulsivo, rebelde. Quanto mais a razão quer comandá-lo, mais rígida ela precisa ser.Por mais que tente forçá-lo a seguir em linha reta, é sinuosamente, barrocamente, que o cavalo preto insiste em ir. Este cavalo preto é o Desejo.
Segundo Platão, na carruagem de nossa alma a razão e o desejo, o cocheiro e o cavalo preto, estão sempre em conflito. A beligerância nasce pela impossibilidade que a razão encontra de pôr o desejo na direção dos valores morais que ela visa atingir. A disciplina moral é a rédea da razão, às vezes também seu chicote, mas o desejo não se dobra, resiste, e segue atraído pelas aparências do mundo sensível . Seguir o desejo é perder-se, desorientar-se, maldizia Platão. Mas a alma não pode prescindir desse rebelde cavalo preto, uma vez que é dele que provém a maior parte da energia que a faz mover-se.
Curiosamente, uma outra imagem da carruagem inspirou Nietzsche.Trata-se da Carruagem de Dioniso, o Deus das Artes. Segundo o mito que cerca este Deus ( ou semi-deus, pois a mãe dele foi humana), Dioniso se locomovia em uma carruagem, sendo ele próprio o cocheiro. Mas, ao invés de cavalos, sua carruagem era puxada por panteras. Eram temíveis feras transportando o deus e mostrando o grande poder de Dioniso para guiar a natureza. A arte não nega ou reprime a natureza ( como o faz o cocheiro de Platão), mas a põe a seu serviço conforme uma disciplina que não é estrangeira à potência das panteras. Na natureza, as panteras são solitárias e jamais se unem. Porém, sob as mãos da arte, as panteras se tornam forças que se conjugam, que se agenciam, e conduzem a alma por sendas onde a razão não ousa ir.
Dioniso transforma a agressividade destrutiva e mortífera das pulsões-panteras em potência criativa afirmadora da vida. Dioniso é o próprio desejo que se tornou guia, cocheiro, domador: somente se pode segui-lo com a condição de metamorfosear-se, conjugando disciplina e inventividade na condução da carruagem . Esta segue para onde não se sabe, pois seu destino é o próprio percurso enquanto este se faz.

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nota : As panteiras da carruagem que Dioniso conduzia não eram domesticadas, elas eram feras. Sem lhes roubarem a liberdade e agressividade, Dioniso as conduzia, sem usar chicotes ou mordaças. Dioniso , porém,não lhes ia sobre o dorso. A arte de conduzir o pulsional/passional, sem reprimi-lo neuroticamente, requer também a arte das distâncias; nem muito longe, em uma transcendência, nem muito perto, como um psicótico.

trecho do livro:









segunda-feira, 21 de abril de 2014

manoel de barros: voz de poeta

Quem ama mais a língua: o gramático que a estuda e conserva suas formas, ou o poeta que a transforma?

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Pela voz poética de Manoel de Barros também se tornam sujeitos,mas sujeitos larvares, uma quantidade infindável de seres: lagartixas, girinos, bocós, pedras que dão leite, patos atravessados de chuva, arames de prender horizonte,tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma... enfim, o que não se pode vender no mercado:

coisas se movendo ainda em larvas, antes de ser idéia ou pensamento.

Manoel de Barros nos diz ainda:

Quem atinge o valor do que não presta é, no mínimo,
Um sábio ou um poeta.
É no mínimo alguém que saiba dar cintilância aos
seres apagados.
Ou alguém que possa freqüentar o futuro das palavras.

Mais do que tudo, o que por sua voz fala é a própria língua que, despida da forma da gramática, “voa fora da asa”:

Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimento  
O verbo tem que pegar delírio.


trecho do livro:



domingo, 20 de abril de 2014

eros e psiquê

                                                  

Existiu na Grécia uma jovem chamada Psiquê. Sua beleza era tanta, que a própria deusa da beleza se sentia inferiorizada diante  de Psiquê. A deusa da beleza era Afrodite. Mas  Afrodite era portadora da beleza física, esta que vemos com nossos olhos. Antes de Psiquê , conhecia-se apenas aquele tipo de beleza da qual Afrodite era a deusa. Psiquê, diferentemente, portava uma beleza distinta, pois “Psiquê” é o nome grego da Alma[1].
A Alma é bela, essa a mensagem que nos deixam os gregos. Sua beleza rivaliza com a beleza do corpo, a única que Afrodite conhecia. Todavia,  enquanto Afrodite era uma deusa, Psiquê era uma simples mortal.Por não conter sua inveja, e querendo atingir a sua rival,  Afrodite resolveu  vingar-se ...
Afrodite ( A Deusa da Beleza): "- Como!? Existe entre esses seres efêmeros , que mais parecem um pó rasteiro que o vento leva, existe entre os homens alguém mais  bela do que eu? Como pode!?E que nome estranho esse ser tem : Alma (Psiquê)...Como a alma pode ser mais bela do que eu, que sou o Corpo!Só em mim pode haver beleza, já que beleza só existe para os olhos! E são os homens mesmos que me adoram com os olhos!Não apenas os homens me adoram.A prova disso é que meu servo maior é o Amor, que não tira os olhos de mim e me cobiça para ser posse exclusiva sua. Mas eu não cedo e jogo com ele, uso ele para reinar sobre todos.Essa Alma não pode ser mais bela do que eu! Mas não quero ir conferir ou ficar em dúvida..."
(Afrodite manda chamar então Eros, o Deus do Amor, que era seu servo)

(Dirigindo-se a Eros, Afrodite ordena) :"Quero que você vá onde vivem os homens, encontre uma jovem chamada Alma e atravesse o coração dela com sua flecha . Faça ela se apaixonar pelo homem mais pobre, burro e feio que houver em toda Grécia..."
O Amor só tem olhos para a beleza, ele detesta a fealdade. É preciso entender  a fealdade em um sentido bem amplo, pois existem também palavras e ações feias. Nunca o Amor se enamora de tais palavras e ações: quando as vê, o Amor desvia os olhos. Por  isso tais palavras e ações têm dificuldades em germinar, pois para que algo se reproduza é preciso a influência do Amor.
De tudo o que o Amor havia visto no céu e na terra,  Afrodite era, sem dúvida, a coisa mais bela. Por isso, ele a acompanhava e fazia o que fosse do desejo dela. Em troca, a única coisa que o Amor exigia de Afrodite era vê-la e estar-lhe perto . Valendo-se dessa situação, Afrodite resolveu fazer de Eros  a arma de sua vingança contra aquela que possuía uma beleza que não pertencia ao seu império.
E lá veio o Amor  descendo do céu em busca da Alma na terra. O Amor nunca havia visto antes a Alma. Afrodite esquecera-se desse detalhe, pois o que poderia acontecer nesse encontro entre o Amor e a Alma? Ele nunca a tinha visto antes. Ele não sabia o que ia encontrar. Guiava-o a memória da Beleza do Corpo, pois tal Beleza era Afrodite. Nada do que seus olhos vissem fora dele poderia ser mais belo do que a recordação que vivia em sua memória, assim pensava o Amor antes de encontrar-se com a Alma.Afrodite era a coisa mais bonita que ele vira, e essa verdade o completava , desde que ele estivesse perto dela.
Porém, nem o Amor e nem o Corpo sabiam o que podia a Alma, sobretudo quando a vemos, quando nos encontramos com ela.Ouvir apenas falar dela não é conhecê-la. A Alma somente pode ser conhecida diretamente, sem intermediários.

Então, o Amor achou  a Alma, Eros conheceu Psiquê.O Amor sentiu nascer dentro dele um outro, esse outro era um amor novo,  que era o Amor mesmo,  porém renovado, potencializado, mais amor do que nunca. Esse amor pela Alma não era uma negação do antigo amor ao Corpo, mas o conhecer algo novo que afirma mais o que já somos. Enquanto o amor pelo Corpo submetia Eros a caprichos e prazeres exigidos pelo ser amado, como se fosse um preço a ser pago, esse amor nascido do encontro com a Alma o fazia voltar-se para si mesmo e descobrir uma graça nascida de um desejo que não se esgota na posse e no imediato .O Amor percebeu então que ele podia ser reinventado, experimentar uma nova maneira de ele ser . E que ele próprio, o amor, desconhecia tudo o que o amor pode. Ele viu que se desconhecia e que havia nele potencialidades de amar que somente poderiam se tornar reais se ele se unisse à Alma.A união dele com o Corpo era exterior ; contudo, o Amor sentia que para ele se unir à Alma ele deveria morar dentro dela: cada um seria no outro, sem carência ou falta. Mas o que é a Alma? Ela é invisível, intangível, porém como tem realidade e potência para quem a conhece! E quem a vê nunca mais a esquece.E ela não está nos céus, nem no Olimpo, ela vive dentro do homem.O Amor é eterno, mas não o é a Alma. Ela nasceu ninguém sabe como, pois onde menos se esperava , ali  nasceu ela. Ela não nasceu divina, nasceu humana. Sua divindade seria conquistada por Justiça, e não por nascimento ou aparência. Só uma divindade pode gerar uma divindade. Mas a Alma, embora não fosse divina,   fez nascer no Amor um ser novo, que era o Amor mesmo com  olhos outros, diferentes,capazes de verem  o que se esconde de belo nos homens, apesar de toda feiura que eles frequentemente são, dizem  e fazem.
O Amor, no entanto, não se revelou imediatamente. Ele guardou-se para o momento oportuno. E lá foi ele embora, com sua própria flecha atravessada no peito.A Alma, por sua vez, nada viu, porém sentiu atravessar-lhe um vento estranho.

O tempo passou , as irmãs de Psiquê se casaram e Psiquê permanecia só. Embora todos a considerassem bela, ninguém a pedia em casamento, tampouco ela se apaixonava por alguém. Contudo,  o que ninguém sabia, nem mesmo Psiquê, é que era o próprio Amor que evitava que a Alma  se apaixonasse.
Achando a situação por demais estranha, o pai de Psiquê resolveu levá-la  até ao Oráculo de Delfos, para que o deus Apolo revelasse qual seria o futuro da jovem. Chegando lá, ambos ouviram da Sacerdotisa  de Apolo uma revelação trágica: Psiquê deveria ir até um determinado castelo próximo dali. Chegando lá , Psiquê aguardaria pela chegada da noite. Sob a escuridão da noite, chegaria também o dono do castelo, que seria também seu noivo. O dono do castelo era um monstro. Então, à noite, Psiquê deveria deitar-se  na cama do monstro, para assim ser sua esposa; pela manhã, ela deveria deitar-se na mesa, pois ela seria o café da manhã desse terrível esposo.
Apesar da natureza trágica desses acontecimentos por vir, Psiquê  não pensou em escapar , pois isso era impossível. Àquela época, os gregos acreditavam que a vida de cada um era governada pelo Destino, do primeiro ao último instante da vida. Por isso, a Alma aceitou seu Destino. No dia seguinte, ela rumou sozinha para o encontro com a morte.
Ao entrar no castelo, cuja porta estava aberta, Psiquê não encontrou ninguém em seu interior. Então, ela subiu até ao quarto para arrumar-se para aquela que seria , ao mesmo tempo, a sua primeira noite como esposa e a sua última noite de vida.
Quando veio a noite, a Alma deitou-se no leito, e passou a aguardar, conformada,  o noivo-monstro. A janela estava aberta, como se fosse uma pálpebra. Através dela,podia-se ver  a lua imensa a observar o quarto . Uma súbita brisa entrou pela janela e rodeou a Alma suavemente. Mas aquela não era uma brisa comum. Como se tivesse braços, a brisa envolveu a Alma, e  a apertou vagarosamente. Então, como se adquirisse boca, a brisa soprou no ouvido da Alma as seguintes palavras: “Psiquê, só lhe peço uma coisa: confie em mim. Se você confiar, no fim será  feliz”. Após ouvir essas palavras, a Alma sentiu aquele abraço invisível apertar cada vez mais. O abraço provocava na Alma sensações  nunca antes por ela sentidas, sensações de prazer e satisfação. Por fim, a Alma  perdeu os sentidos, mergulhada que estava em um transe nunca antes por ela vivido.
Ao acordar  pela manhã, Psiquê se viu sozinha na cama. Contudo, o lençol ao seu lado estava amarrotado,como se alguém tivesse dormido ao seu lado. E o mais importante: o monstro não havia aparecido.
Na noite seguinte, a Alma repetiu o mesmo comportamento da noite anterior, e se pôs a esperar  a morte. Todavia, novamente a brisa entrou pela janela e a envolveu. A última coisa que a Alma viu antes de desfalecer de novo foi, através da janela, a lua a lhe sorrir.
Na manhã seguinte, o mesmo fato da manhã anterior: o lençol amarrotado  indicava  que alguém dormira com Psiquê, mas partira bem cedo. Quando veio a noite, novamente o mistério se apoderou da Alma, e com ela dormiu. Pela manhã, ninguém...Isso se repetiu por noites e manhãs seguidas....e nada de a  morte vir para  devorar a Alma. 
Certa vez, no meio da tarde, bateram à porta do castelo. Eram as irmãs de Psiquê: a Desconfiança e a Dúvida. Estas ficaram surpresas ao verem a Alma ainda viva. E mais surpresa lhes causou a alegria estampada no rosto da Alma. De imediato, as irmãs de Psiquê pediram para que esta lhes contasse o que afinal aconteceu e, principalmente, qual o motivo de toda aquela felicidade que a Alma  não conseguia esconder, embora tentasse.
Enquanto ouviam a história, as irmãs de Psiquê começaram a se sentir incomodadas com aquela felicidade da irmã. Pois parecia que a Alma havia experimentado algo que elas, mesmo sendo casadas, nunca experimentaram.
Então, a  Desconfiança  se aproximou da Alma e lhe dirigiu palavras que visavam pôr aquela felicidade da Alma em suspenso. A Dúvida, por sua vez, aproveitando-se de seu poder sobre a Alma , disse-lhe para descumprir o prometido, e ver quem era de fato aquele ser que lhe visitava todas as noites.   Descontrolada  pela influência da  Desconfiança e da Dúvida, a Alma ficou insegura de si e do que sentia . Por fim ,ela perdeu  sua capacidade de acreditar. Com isso,   foi-se embora  a felicidade que nascera dentro dela. 
Antes de partirem, as irmãs de Psiquê lhe deixaram  uma vela que tinha poderes especiais, pois tal vela  podia iluminar o invisível. Naquela noite, novamente se repetiu  a visita do mistério . Mas, dessa vez, Psiquê tinha um plano. Ela esforçou-se para não desfalecer como das outras vezes, ficando a fingir que dormia. Antes de o dia amanhecer, ela acendeu a vela e a aproximou lentamente do ser que dormia ao seu lado ainda. Pouco a pouco, a luz foi tirando da penumbra o ser misterioso que nela se ocultava. Quando viu por completo o ser que o mistério escondia, a Alma ficou maravilhada, pois nunca antes ela havia visto ser tão encantador. Pois ao seu lado estava nada mais nada menos do que o próprio Amor[2]. O Amor havia amado a Alma durante todas aquelas noites. Foi o Amor então que a fizera feliz, como  nunca antes ela havia sido. Naquele dia no Oráculo, foi o próprio Amor que, ocultando-se ainda,  falou à Alma, querendo ser desta o destino.
Contudo, tão absorta a Alma se encontrava, que ela não reparara que a cera da vela estava prestes a pingar. Um pingo quente escapou da vela, e caiu sobre o corpo do Amor,  acordando-o de súbito. Sentindo-se traído, o Amor  levantou-se rapidamente do leito. Ao puxar as flechas que pendiam sobre a cama, uma delas feriu a Alma. Tais flechas eram usadas pelo Amor como instrumento para que  alguém, por intermédio delas, se apaixonasse por outrem. Todavia, como a Alma estava olhando para o Amor no momento em que foi ferida, era pelo Amor então que a Alma passou a ter amor. O amor do Amor abrigou-se no coração da Alma, e isso a tornava ainda mais bela. Contudo, antes de partir , Eros lhe disse: “ Psiquê, somente um pedido eu lhe fiz, mas você não foi capaz de cumpri-lo. Sem confiança não há amor.”
Feliz por ter encontrado o Amor,  mas ao mesmo tempo infeliz por tê-lo perdido por não confiar, a Alma viu-se sozinha no castelo. Porém, subitamente ela reparou que  não estava de fato sozinha, pois o Amor se instalara em seu coração, e dele expulsou  a descrença. Mas este Amor no coração era apenas a semente que, para germinar, precisava encontrar o Amor no mundo. Então, a Alma saiu para o mundo, atrás do Amor que um dia teve, e que perdeu por dar ouvidos à  Desconfiança e à Dúvida.
A cada um que encontrava pelo caminho, Psiquê perguntava se em algum lugar esta pessoa viu o Amor ou se sabia onde ele estava. Para sua surpresa, poucos confessavam que o haviam visto, e muitos  outros diziam que ele não existia . Dentre  aqueles poucos que o haviam visto, um dizia que o Amor se chamava Carmem; outro confessava que, no passado, teve um Amor   chamado Ana; uma outra dizia que o Amor, para ela, atendia por Pedro. Ou seja, cada um havia visto o Amor numa pessoa. Mas a Alma procurava pelo Amor cujo nome é, apenas, Amor: o Amor  puro ― que é, ao mesmo tempo, o mais singular e  o mais universal.
Por fim, Psiquê resolveu pedir o auxílio dos deuses. Para seu infortúnio, a primeira divindade que ela encontrou foi exatamente Afrodite. Escondendo de Psiquê a inimizade que por ela sentia, Afrodite fingiu sofrer com o padecimento da Alma, e disse saber como acabar com aquele tormento. Mas o que Psiquê não sabia, e nem desconfiava, é que aquilo tudo era fingimento de Afrodite. Na verdade, esta queria aproveitar o sofrimento de sua rival para melhor derrotá-la.
Valendo-se da situação, Afrodite resolveu vingar-se com uma mentira, e disse a Psiquê que esta somente teria o Amor de volta se fizesse inúmeras  tarefas arriscadas e cansativas.  Psiquê, no entanto, disse-lhe que não mediria esforços para ter o Amor de volta. Assim, Psiquê caía na armadilha de Afrodite. Esta acreditava que o cumprimento de tarefas tão desgastantes findaria com a beleza da Alma. Como conseqüência, a Alma ficaria feia e acabada, e o Amor nunca mais olharia para ela.
Contudo, embora se dedicasse com afinco às penosas tarefas, a Alma nunca  se enfeava. Uma das tarefas penosas era ir a uma praia imensa e separar os grãos escuros dos claros.Na hora, porém, apareceram milhares de formigas que vieram auxiliar na tarefa. Quando a alma se sacrifica para buscar o afeto que a potencializa, a natureza inteira se solidariza e não a deixa sozinha, por mais que ela pense estar.  Assim, o sacrifício pelo Amor, ao invés de a enfear e cansar,  a tornava ainda mais viva e bela.
Enfim, vendo o Amor que a Alma o buscava mais do que a tudo, ele resolveu não se esconder mais , e mandou seu irmão ir até à Alma para dizer-lhe onde ele se encontrava. O irmão do Amor é o Perdão. O Perdão disse à Alma que o Amor se encontrava escondido dentro dela.
O Amor quis então que ele e a Alma nunca mais se separassem. Para isso, seria preciso que a Alma nunca morresse. Era preciso que a Alma também se tornasse divina. Com esse intuito, o Amor procurou a Zeus, o deus da Justiça, e pediu-lhe para que ele imortalizasse a Alma,tornando-a divina. Zeus disse então à Alma: "Aparentemente, parece fácil, em palavras, conquistar a imortalidade, porém é a coisa mais difícil na prática!...Se os homens fizessem na prática o que fazem com as palavras, o Olimpo estaria repleto de homens... ". Então Zeus diz o que é preciso a Alma fazer para se imortalizar: "Basta apenas estar sempre na companhia do Amor, nunca dele se afastar, não importa onde e quando."







[1] “Psiquê” está na raiz de “psicologia”, que é o “estudo da alma”.
[2] Sem que Psiquê  desconfiasse, foi o Amor que, tomando o lugar do deus Apolo, falou com Psiquê através do Oráculo. O intuito do Amor era, no tempo oportuno, revelar-se à Alma. Por isso, ele inventou a história do monstro.



O texto acima  é uma versão ampliada de um capítulo deste  livro que escrevi:

































sexta-feira, 18 de abril de 2014

o que dizem os filósofos



Sem vacilar
Sem me exibir
Só vim mostrar
O que aprendi.

Jovelina Pérola Negra




O QUE DIZEM OS FILÓSOFOS
( e que não está nos livros)


Kant dizia que o sangue, antes de passar pelo coração,
vem carregado de impurezas que somente a amizade pode filtrar.

Platão acreditava que é somente quando a alma se procura no espelho do céu, e neste se reflete, que ela se pode ver mais bonita.

Aristóteles ensinava que no amor os braços se movem à semelhança de asas,
o que comprovaria a tese de que um dia o homem voou.

Espinosa dizia que somente o artista, quando ao novo cria, compreende o desejo de Deus.

Pascal professava que quem não sabe rir de si mesmo jamais entrará nos templos do céu.

Nietzsche escreveu com o dedo, nas areias da praia , a única verdade em que acreditou:
soube o mar , antes de todos, a tal verdade ( e, lambendo-a, para si mesmo a guardou).

Heráclito dizia que só devemos crer nas crianças.
E aprender com elas que a brincadeira está não só no criar,
mas também no destruir,
desde que no coração somente haja inocência.






sábado, 5 de abril de 2014

artigo publicado na Revista Conatus: Spinoza e o Sentido




http://www.benedictusdespinoza.pro.br/conatus_v7n15_40.html



(trecho do artigo)




O sentido não é a afirmação de que tudo é igual ou relativo;
o sentido é o relacional: ele é a afirmação do encontro;
não a relatividade do encontro,mas a sua necessidade.

José Américo Pessanha


Só a boa metáfora pode dar ao estilo uma espécie de eternidade.
Cláudio Ulpiano



4.0 A emendatio e o conatus
A emendatio não é uma correção, tal como se corrige uma resposta errada a uma questão que lhe pré-exista.  A emendatio é a libertação do intelecto dos falsos problemas .  Emendar o intelecto não é corrigi-lo, tampouco reformá-lo, mas fazê-lo parte de um todo não intelectual, e do qual é parte igual o corpo.
Há um poema de Manoel de Barros no qual ,em versos (em perceptos), o poeta nos põe diante de uma emendatio que a própria natureza ensina. Trata-se do  poema Lacraia.  O poeta Manoel de Barros nos fala de uma lacraia cujas partes foram desmembradas. Isto ele viu quando criança.O poeta, afirma Manoel, é aquele que "vai à infância e volta".Inteira, compara o poeta , a lacraia se assemelha a um trem: neste, vagões unidos que se seguem a partir da locomotiva que vai à frente;naquela, gomos unidos a partir da cabeça.As semelhanças entre uma lacraia e um trem param sobretudo nesse ponto:descarrilado, um trem sucumbe em pedaços que , por conta própria, jamais  voltam a formar uma unidade; já quando a lacraia é desmembrada, e cada gomo/vagão seu é separado do outro, logo a "força de Deus" se mostra onde menos se espera: cada parte da lacraia se move e busca a outra, elas se procuram. Busca na outra o todo sob o qual cada uma existe mais. Cada parte se esforça para se integrar ao todo que é mais do que a mera soma das partes. Esta força também é amor, ensina-nos o poeta.
Segundo Spinoza, cada ser se esforça para perseverar na existência. O nome desse esforço é conatus , ou desejo. Co-natus: junto ao que nasce. Assim, o conatus está sempre junto ao que nasce para permanecer existindo, pois o esforço para permanecer na existência nunca está no passado, mas no presente : não como coisa parada ou estática, e sim  como esforço dinâmico, como potência,  desejo e afirmação. Em nós mesmos, cada molécula, cada célula, cada parte que nos constitui expressa o mesmo conatus, o mesmo desejo.Existir é idêntico a este esforço de tudo aquilo que, nascido, continua a (re) nascer a cada momento.Por isso, o nascer é um ato que nunca se completa, posto que nunca termina para aquele que se percebe como parte da natureza que é sempre nascer, e nunca morrer.Assim que nascemos, cremos ser viver o afastar-se do nascer enquanto acontecimento, e assim contamos os anos, os aniversários.O filósofo, diferentemente, nunca se afasta dessa fonte que o regenera: o nascer ,sempre no infinitivo.
 O conatus é o esforço do ser finito para permanecer no infinito renascer da natureza.Manoel de Barros, por sua vez, fala em "natências" , não como data em que nascemos, mas o "tempo quando" , não cronológico,  no qual , como duração viva e intensa, estamos sempre a (re)nascer (SOUZA, 2010).
Cortada a lacraia em 5 partes, cada uma das partes expressa um conatus que não pode ser numericamente quantificado, posto que ele é, ao mesmo tempo, um e múltiplo, enfim, unívoco. Mesmo na lacraia inteira cada parte dela, suas infinitas partes, já se esforçam para perdurar expressando o todo-lacraia, que é sua essência e ideia.O desmembramento da lacraia poderia ser em 10 ou cinquenta partes: em cada uma dessas partes o mesmo conatus se expressa de forma única e singular, como potência. É este todo que dá a cada parte a sua inteligibilidade  e explica o fato de cada parte se mover de forma que não é apenas movimento como resultado de ações externas, pois há uma força que guia cada parte : guia não por fora, mas a partir da imanência de cada uma. As partes desejam  refazer a relação que eram, o todo que eram.Em cada parte está a expressão do mesmo conatus, ao mesmo tempo um e múltiplo, posto que multiplicidade. E mesmo na lacraia inteira cada parte dela persevera no mesmo desejo: o de continuar na sua existência, e esta é a maior perfeição que ela aspira. Uma lacraia  não precisa ser um homem ou um anjo para, enquanto lacraia e permanecendo lacraia, expressar sua maneira de ser, seu modo, sua perfeição enquanto lacraia.Segundo Manoel de Barros, as partes procuram se emendar, elas são movidas por uma emendatio, tal como o intelecto  precisa se emendar quando se acha separado do contínuo existir da vida, a começar pela vida do seu corpo.
No Tratado sobre a emenda do intelecto, Spinoza afirma que todo aquele que deseja produzir algo necessita de um rascunho. O rascunho é o esboço de um ser a produzir, não de um ser a imitar ou copiar. Como se participasse dessa discussão, Manoel de Barros afirma que a poesia nos põe em "estado de rascunho", tornando-nos "formas em rascunho” (SOUZA, 2010).Emendar não é apenas ligar uma parte à outra, mas ligar cada parte à outra em razão de um todo que faz cada parte existir mais.Isto vale para uma lacraia, como vale para um livro, um poema, uma obra, uma vida.
Há uma diferença entre "parte" e "pedaço".Para se poder compreender a diferença, porém, é preciso que se faça a ideia do todo. Na arqueologia, por exemplo, muitas vezes se acham pedaços. Para que estes virem partes, e se tornem mais inteligíveis e compreensíveis, é necessário fazer uma ideia do todo ao qual tais partes pertenciam, mesmo que este todo não seja dado de forma tangível, como é o caso do todo da cultura. Se não se consegue formar uma ideia do todo, do pedaço não nasce a parte.A parte faz parte, ao passo que o pedaço é o caco que restou de um ser partido.O mesmo vale para a natureza.A maioria dos homens se comporta como pedaços, não como partes.Os pedaços não se compõem, as partes sim.Frequentemente, a passionalidade e a ignorância tornam o homem um pedaço com contornos pontiagudos, prontos para ferir ou supostamente se defender da pontiagudez do outro, o que finda por ferir, primeiro , aquele que assim pensa e age, pois o fere por dentro a ideia confusa e equivocada, fruto que é da  tristeza e do ódio.A natureza não é um Frankenstein, mas uma polifonia.Acumular muitos pedaços quantitativamente é menos do que ter de uma coisa apenas uma parte, por mais diminuta que ela seja.Através da parte sempre se vê o todo do qual ela faz parte, ao passo que quanto mais pedaços se vê e tem menos se enxerga e se conquista, menos se compreende.
A natureza não é feita de pedaços, ela é feita de partes. O mesmo vale para nossos desejos e ações.No homem livre cada pensamento e ação é uma parte dele, ao passo que no escravo as ações e os pensamentos são vividos como pedaços sem muito sentido, posto que deles está ausente o todo, que é o que dá vida.No amor e na amizade  cada um é uma parte, não do outro, mas do encontro.A infelicidade acontece quando um quer fazer do outro um pedaço seu , na ausência de um todo, de um bom encontro.As imagens e aparências somente deixam de ser pedaços, e se tornam partes, quando aprendemos a ver para além delas, em busca das essências que elas expressam.A essência não é uma forma estática, ela não é uma figura com contornos e limites  rígidos; a essência , diz Manoel de Barros, é “um minadouro”: dela mina e brota um sentido sempre novo,  que ela retira de sua imanência, de seu coração.
O todo é sempre maior que suas partes. Mas é um maior  que não torna cada parte dele menor do que si mesma; ao contrário, quanto mais cada parte  expressar, em seu íntimo, esse todo, mais ela se torna maior , mais ela existe, mais ela se compõe com a outra parte, mais ela adquire singularidade e afirma sua diferença, sem negar ou destruir a outra parte, que é outra parte do mesmo todo. O que é verdadeiramente maior nunca diminui, nunca age por "comparamentos", mas por "comunhão"( SOUZA, 2010). Enfim, diminuir é negar ( e como poderia o todo negar sua parte? Se ele o fizesse, estaria negando a si mesmo, o que seria um absurdo!).
A parte é partícipe, e extrai seu sentido não sozinha, mas em conexão. O pedaço, ao contrário, é sempre desconexo, como se fosse um todo à parte: à parte do todo, à parte de si mesmo. Este existir como um todo à parte é a solidão característica de tudo o que é pedaço, enquanto que a diferença constituinte de toda singularidade se expressa e se afirma em um fazer parte, mesmo que seja um fazer parte de um "todo ainda por vir", como diria Nietzsche. Esta conexão que constitui uma singularidade recebe, em Deleuze, um nome: agenciamento.