quinta-feira, 28 de março de 2024

Uma das palavras mais bonitas

 

Uma das palavras mais bonitas da filosofia grega  é “eudaimonia”. No coração dessa palavra está o nome “Daimon”, pois “eudaimonia” é : “estar na companhia de um bom Daimon”.

Em português,  “eudaimonia” significa  “felicidade”. Para os gregos, felicidade não é andar sozinho, mesmo que seja numa carruagem de ouro; felicidade é andar na companhia de um “bom Daimon”, agenciado.

Na mitologia, o Daimon não mora no inacessível e aristocrático Olimpo, o Daimon mora onde houver a necessidade de uma travessia, pois ele é a divindade dos caminhos, sobretudo    dos caminhos que urgem ser criados quando precisamos atravessar  desertos  ,  escapar de labirintos ou transpassar  rochedos. 

 Para os gregos, a felicidade não é propriedade egoica de um indivíduo, a felicidade é   agenciamento coletivo: impossível o indivíduo ser feliz se a pólis está triste, tampouco pode o indivíduo ter saúde com a pólis  doente.

Aristóteles dizia que a felicidade é o que a ética  visa alcançar , já Espinosa ensina que felicidade não é um prêmio por sermos éticos, a felicidade é a vida ética mesma. A felicidade não está no ter, e sim no ser.

Mas o Daimon só nos faz companhia se aprendermos a ser companhia. Nietzsche diz que certa vez um Daimon soprou esta lição em seu ouvido: “Não aprecio  seguir ou  ser seguido: para me acompanhar aonde vou, é preciso aprender a amar andar ao lado”.

“Companhia” vem de “com-pane”. E “pane” é, em português, “pão”. Assim, fazer companhia é  saber “dividir o pão”. Companheiros: “aqueles que dividem o pão”.

Há o pão que alimenta o corpo, como aquele que faltou ao povo e trouxe o sofrimento  da fome. A elitista Maria Antonieta, zombando, disse: “Não têm pão? Que comam brioches!”

Quando um povo não aceita  ser rebanho de Marias Antonietas de ontem e de hoje,  nasce nele    a fome por outro pão: o pão da dignidade e da justiça, pão que  tem o fermento da arte, da educação e da poesia,   pão que alimenta a luta contra as tiranias.

 

( este livro é apenas uma sugestão )



 

Em homenagem a Jorge Ben Jor ( que no último dia 22 faria 85 anos):



quarta-feira, 20 de março de 2024

Outonos

 

Certa vez, eu estava explicando para uma turma um poema de Fernando Pessoa. Era uma turma muito simpática e atenciosa, que sempre pedia para eu tocar nesses temas poéticos-filosóficos , apesar de não caírem na prova...rs...

Quando terminei a narrativa, uma aluna  perguntou de repente  : “Professor, qual seu signo?” Quando respondi “touro”, ela ficou incrédula, e disse com humor : “professor, você não pode ser touro, os professores de touro gostam de ensinar apenas coisas utilitaristas sem poesia ...rs...”

Então, ela me pediu a data e hora do meu nascimento, incluindo os minutos,  ela queria fazer meu “mapa astral”. Como eu sabia esses detalhes,  passei a informação para ela. Na aula seguinte, ela entrou sorridente na sala e disse: “Sabia que havia alguma coisa diferente, você  é assim por causa de seu ascendente: Aquário!”

Em homenagem àquela turma simpática  ( e a todos que , presencial ou virtualmente, apoiam meu trabalho), elaborei um pequeno “horóscopo filosófico”, no qual o céu sob o qual nascemos expressa a atmosfera que irradia de  determinado filósofo .

Àquela época, eu morava perto de uma pracinha. De minha janela via as mães com seus filhinhos nos carrinhos de bebê. Deitados dentro dos carrinhos, os bebês ficavam o tempo todo  olhando para o céu. Pensei comigo: “se tudo nos influencia, ainda mais quando somos crianças, deve haver uma profunda influência dessa  primeira imagem do céu na alma e personalidade dos bebês”.

Assim, os que nasceram no verão veem um céu com  um sol intenso. Os bebês que trouxerem  esse sol para dentro deles se tornarão criadores-artistas . Chamei esse céu de CÉU DE NIETZSCHE.

Os que nasceram no inverno, ao contrário, veem um céu cinza, e assim terão que buscar  criar um sol dentro de si . Os que nascem sob esse céu tenderão a ser mais introspectivos, buscando mais a “luz interior” . Chamei esse céu de CÉU DE SCHOPENHAUER.

Os que nasceram sob o céu da primavera veem um sol que é como uma grande semente que faz tudo germinar. Os que plantarem  dentro de si esse sol-semente   tenderão a ter uma crença inabalável na vida, acreditando que a vida pode de novo sempre brotar, apesar do deserto. Chamei esse céu de CÉU DE EPICURO.

Enfim, os que nasceram no outono veem um céu de um azul profundo porém transparente, onde o sol brilha vivamente mas sem ofuscar, um sol como parte do infinito sempre aberto para voos emancipatórios: “Eu tentei me horizontar  às andorinhas” (Manoel de Barros). Os que nasceram sob esse sol e céu , se aprenderem com esse sol e céu a se horizontarem,  crescerão pensadores. Chamei esse céu de CÉU DE ESPINOSA.

Hoje começa o outono. Que a gente consiga   criar uma abertura na mente e no coração para que possam entrar a luz e o azul desse  “Céu de Espinosa”, e que a perseverança do pensar luminoso desse filósofo  nos inspire e fortaleça diante de toda forma de treva.

 

    (Imagem: “Outono”/ Monet)

 

Obs: Nesse “horóscopo-brincativo” ( “brincatividade” é ideia criada pelo poeta Manoel de Barros) poderíamos colocar outros filósofos ainda ao lado desses que mencionei para cada estação poético-existencial. Lucrécio e Sêneca, por exemplo, também são outono; Sartre , creio,  é verão; Epicteto , Bergson e Marx, primavera; e Cioran, inverno.




 

segunda-feira, 18 de março de 2024

Livro

 

Foi publicado recentemente este livro do qual participo. Apoiando-me em Plotino, falo no livro das relações entre poesia, ciência e filosofia.

Plotino possui uma maneira muito poética de ver o mundo, talvez uma das visões mais poéticas que a filosofia já produziu. Na verdade, não era sua visão que era poética, pois poético era o próprio mundo que Plotino sentiu , viveu e pensou. Assim, para ver esse mundo poético era preciso criar em si olhos para vê-lo, olhos também poéticos.

Porém,  não se trata do poético no sentido restrito  de palavra e versos, pois em Plotino, assim como  em Espinosa, poético  significa “produção”( poiésis ), no sentido do pintor que produz seu quadro, ou do músico que produz sua música, ou ainda do maestro que produz a unidade compósita, porém variada, dos diversos instrumentos que participam de uma polifonia.

Plotino diferia dos gregos também no seguinte ponto: os gregos achavam que Eros ( o Amor) deveria escolher entre a Alma ( Psiquê) e o Corpo ( Afrodite). Escolhendo a Alma, tal escolha conduziria ao amor   à filosofia; escolhendo  o Corpo, nasce dessa escolha o amor à arte e à poesia. Para Plotino, ao contrário, o autêntico Eros deve viver entre Psiquê e Afrodite, entre a Alma e o Corpo, para assim ser o elo que une a ambos. Assim, segundo Plotino,  para ser filósofo é preciso ser também poeta, pois em todo poeta existe também um filósofo. 

Referindo-se a Plotino, o filósofo Pierre Hadot afirma: “Hoje se toma por sonhador aquele que vive o que ensina .”

 

“O homem livre  nunca termina de esculpir sua própria estátua, pois a arte viva não está na pedra enfim moldada, mas no ato de fazer-se que nunca termina.” (Plotino)




 

 




"Aqueles que amaram a música e permaneceram puros quanto ao resto,

tornam-se pássaros canoros após morrer o corpo." (Plotino)

domingo, 17 de março de 2024

Elis Regina

 "Descanse tranquilo onde cantam,

  os maus não cantam."

                                    Schiller



Hoje, 17 de março, Elis Regina faria 79 anos.




sábado, 16 de março de 2024

A "caverna" e a luz

 

Em sua famosa alegoria, Platão compara a uma “caverna”  o mundo no qual vivem os homens alienados, ontem e hoje.

Esses homens não entraram  na caverna para  explorá-la. Ao contrário, eles são explorados dentro dela : nela vivem como   prisioneiros acorrentados.

Eles estão acorrentados de costas para a saída da caverna e de frente para o fundo dela. Como esses homens naturalizaram essa  condição, ignoram que são prisioneiros, não se dando conta que estão acorrentados.

As correntes não são de ferro ou aço, elas são feitas de um material que vem dos próprios homens aprisionados: elas são feitas com  suas passionalidades reativas e opiniões ressentidas, limitadas .

Ódio, ressentimento,  preconceito, medo...são exemplos de “paixões tristes”  que , como ensina Espinosa, tornam os homens prisioneiros deles mesmos e partes de um rebanho manipulável.

O mundo da caverna não é totalmente escuro, pois entra nele um pouco da luz que vem de fora.  Por isso, no fundo da caverna se projeta  o reflexo, apenas o pálido reflexo, das coisas reais que existem fora da caverna.

Mas como os acorrentados não sabem que existe um mundo fora da caverna,  aprisionados que estão ao negacionismo, eles imaginam  que o reflexo distorcido  do mundo é o próprio mundo, e assim tomam por real apenas sombras, “fake news”.

Os prisioneiros carregam a caverna não importa onde estejam:  ela é o mundo estreito dos que estão acorrentados na ignorância  e submetidos aos que os mantêm nessa condição de servos voluntários.

Na abominável caverna militar-teológico-política em que está aprisionada parte da sociedade brasileira,    os prisioneiros dela , autointitulando-se “homens de bem” , estão sempre falando em pátria e Deus;  mas a pátria e Deus deles são apenas sombras no fundo da  obscura caverna  da ignorância.  

Platão chamava de “espertalhões da caverna” os que  se aproveitam dessa  alienação  trevosa : eles  posam de governantes  e “líderes espirituais”, quando na verdade são tiranos do corpo e da alma.

Ontem e hoje , os tiranos da caverna odeiam a luz e contra ela fazem sua suja guerra , pois temem o lume  da educação emancipadora.

Pois a razão de ser dessa luz  é fortalecer quem a conhece e se autoconhece a partir dela, adquirindo assim força para agir individual e coletivamente em defesa  da dignidade e   da justiça,  para enfim pôr os tiranos  da caverna num outro lugar igualmente  em penumbra, lugar esse    que  deve ser o destino  deles : após o devido processo legal, sem anistia, a cela de uma cadeia.


( este livro é apenas uma sugestão)



 

 

Um dos “bons conselhos” de Foucault para uma vida não-fascista : “nunca se apaixone pelo poder”. Como ensina Espinosa, poder ( do latim “potestas” ) não é o mesmo que potência ( “potentia”).



quinta-feira, 14 de março de 2024

A porta de Marielle

 

No Museu da Maré há um espaço dedicado a Marielle Franco. Na exposição que leva seu nome, foi escolhido um objeto singular para nos fazer lembrar a vereadora: a porta do seu gabinete .Em sua atuação política, Marielle costumava colar mensagens na porta , além de sempre mantê-la aberta àqueles que vinham procurar por sua ajuda.

Pela ação de Marielle , aquela porta continha uma potencialidade de sentidos. E “potencialidade de sentidos” é o outro nome pelo qual atende a poesia enquanto prática de ressignificar as coisas e o mundo.

Pois poesia não é só versos: poesia também é produção de sentidos que podem transformar uma simples porta em um agente coletivo de enunciação . Transportada então para o interior do Museu da Maré, aquela porta se tornou um símbolo-mensagem do próprio ser de Marielle: porta aberta, receptiva, como seu sorriso.

Não por acaso, na mitologia era sob uma porta aberta, espaço de travessias, que se manifestava Hermes, a divindade associada à comunicação das mensagens que requerem a prática da interpretação.

Em grego, “interpretação” se escreve “hermenêutica”: “arte relativa a Hermes”. Mensagem não é a mesma coisa que informação. “A capital do Brasil é Brasília”, “dois mais dois é igual a quatro”, tais coisas não são mensagens. Mensagem é tudo aquilo cujo sentido requer a atividade de interpretação: “A palavra abriu o roupão para mim: ela quer que eu a seja”, este verso de Manoel de Barros não é informação, é mensagem. “O homem é um ser político”, outra mensagem. Mensagens não são para se decorar ou reproduzir, mensagens existem para despertarem nosso pensar e nosso sentir , para assim aprendermos a ler mais do que frases ou palavras: crítica e criativamente, aprendermos a ler também o mundo.

Nem sempre mensagens se vestem com palavras, às vezes as mensagens vêm inscritas nas coisas ou são as próprias coisas portando sentidos a serem interpretados.

A porta de Marielle é mensagem que simboliza o sentido da travessia e da abertura ao outro, sobretudo ao outro que é marginalizado, injustiçado, explorado, perseguido.

Os Museus Casas são espaços que já foram residência, quase sempre palácios e mansões (em geral de gente oriunda da elite) . O museu Casa de Rui Barbosa, por exemplo, foi a casa de verdade de Rui Barbosa.

Mas pessoas do povo como Cartola, Nelson Sargento, Lima Barreto, Maria Carolina de Jesus, e tantos outros, não tiveram casa para ser patrimônio musealizado. A casa deles é a favela, a cultura popular, a criatividade e a inventividade do povo que luta.

A porta de Marielle é parte de uma casa assim: uma casa plural, aberta, heterogênea...espaço de resistência à Casa-grande f-a-s-c-i-s-t-a.

Exatamente há seis anos, 14/3/2018, Marielle foi assassinada. Mas a porta que ela simboliza , enquanto abertura à justiça, à educação e à cultura, esta porta nós não podemos deixar fechar, nem sua luta esquecida.

E permanece a pergunta a ser respondia: quem mandou matar Marielle ?

 

 

 

                                          (Imagem: a porta de Marielle e suas mensagens)





Este texto da postagem é parte de um artigo que escrevi:

https://ateliedehumanidades.com/2019/10/26/fios-do-tempo-a-porta-de-marielle-por-elton-luiz-leite-de-souza/


Link para a Dissertação de Mestrado de Marielle:

https://app.uff.br/riuff/bitstream/handle/1/2166/Marielle%20Franco.pdf;jsessionid=DC59CA9C61AA2067470A98419FE2CFA5?sequence=1


Uma visita virtual ao Museu da Maré e sua exposição sobre Marielle:



sexta-feira, 8 de março de 2024

Sofias...

 

A filosofia não nasceu na Grécia. Ela foi deixada lá ainda criança, como aqueles bebês deixados   à porta de alguém que inspira confiança. Inclusive, a tez da filosofia é mais escura e mestiça do que a branca pele grega.

Há quem diga que seus pais eram Egípcios,  povo da África ancestral; outros afirmam que foram sábias gentes do Oriente que  a conceberam; e há quem defenda ainda que os pais da filosofia foram os nômades do deserto que se guiavam pelas estrelas e que nenhum império  , por mais que tentasse, conseguiu prender e escravizar .

A porta em que a filosofia foi deixada para ser cuidada pertencia à casa de um ser humano  digno chamado Tales, morador  de Mileto.

Tales deu o nome de Sofia  à criança, dedicando-lhe amor e amizade. Em grego, amor e amizade se escrevem assim: “philo”.

Tales   criou Sofia e a ensinou a ficar de pé, nunca de joelhos. Com Heráclito , Sofia aprendeu a brincar; com Nietzsche, a dançar; e  a fazer-se mais viva Sofia aprendeu com Espinosa, diante dos  obscurantistas  que a querem morta.

 

(Neste   Dia Internacional de Luta das Mulheres , este livro sobre Sofias é uma boa sugestão)



Outras sugestões:















sábado, 2 de março de 2024

Midas

 

Midas era um homem que alimentava por dentro uma ambição desmedida por posses , dinheiro e  poder.

Querendo aparentar ser o que não era, certa vez Midas  ajudou um homem em dificuldades , e a essa ajuda Midas  deu grande publicidade, querendo dela extrair popularidade. 

Parecia que ele se preocupava com o outro, mas na verdade ele estava usando o outro como meio de obter fama, poder.

Dioniso viu Midas ajudando o homem em dificuldades , pensou que ele agia por  genuína bondade  e quis recompensar Midas dando-lhe o poder de realizar seu mais íntimo desejo. É no que mais se deseja que cada um revela como é por dentro.

Midas então revelou em seu pedido o quanto era pobre interiormente: seu desejo era que virasse ouro tudo o que tocasse. Midas imaginava que assim teria a felicidade.

Dioniso compreendeu que Midas não era por dentro como aparentava ser por fora. Mas realizou seu mesquinho desejo, pois sabia que dali viria uma lição, ainda que dolorosa.

Assim, sob o toque ganancioso de Midas viravam ouro  a colher, a mesa, a cadeira, o copo...Mas viravam ouro também , uma estátua de ouro, alguém  que ele abraçava, o cão que ele afagava, o passarinho que vinha pousar na sua  mão...

 Para seu desespero, igualmente  virou estátua de frio ouro seu filho  recém-nascido que ele pegou no colo . Depois, viravam ouro  a água, o arroz, a carne, a maçã, o pão...antes que Midas pudesse matar a fome e saciar a sede.

Aflito, Midas suplicou  conselhos a um sábio, ajoelhando-se de cabeça baixa e  segurando sua mão. Diante do silêncio do sábio,   Midas levantou a cabeça e viu apenas   uma estátua boquiaberta. Midas  então chorou, e de longe eram ouvidas  suas lágrimas quicando no chão como moedas.

Midas descobria assim  que a loucura por acúmulo é a pior  das misérias...Então, ele busca  Dioniso e pede uma  cura para aquela  pobreza de apenas no ouro ver riqueza.

Dioniso conduz Midas até um rio que passava perto de uma aldeia pobre e o lava no fluxo de suas águas.   O rio ficou repleto de pepitas de ouro  que Dioniso partilhou com  os necessitados.  Midas enveredou por  uma estrada e sumiu...

Passou o tempo,  todos pensavam que Midas já   estivesse   morto. Até que um dia ele retorna. Vestia-se parecendo um andarilho, tinha a companhia de um  cãozinho  vira-lata e estava pousado em seu ombro um passarinho como se ali fosse um ninho.

Midas se mostrava  simples por fora, mas por dentro parecia enfim rico. Tal  riqueza vinha da cura que lhe fez Dioniso, que escondeu uma das pepitas no peito de Midas  , e de ouro se tornou seu coração renascido solidário.

Midas agora parecia ter aprendido,  praticando-a, esta lição de ouro de Espinosa: "Nossa suprema felicidade consiste em realizar apenas aquelas ações que o amor e a generosidade nos aconselham". (Ética, Parte Dois, proposição 49, escólio)





“Poderoso, para mim, não é quem descobre ouro. Para mim, poderoso é quem descobre as insignificâncias”(Manoel de Barros). Em Manoel, “insignificâncias” são coisas cuja riqueza é ignorada por aqueles que apenas ao dinheiro  e ao poder dão importância.






sexta-feira, 1 de março de 2024

Uma ciência espinosista: a etologia

 

Em uma belíssima passagem de sua obra  , Deleuze explica a relação dos afetos com os seres vivos  a partir da perspectiva de uma disciplina nova, uma disciplina espinosista: a etologia.  

Segundo a etologia, os animais  também possuem afeto, isto é, eles são tocados por acontecimentos que os cercam. Originalmente, “afeto” deriva de um termo latino que significa “ser tocado”.

 O carrapato por exemplo, diz Deleuze, possui três afetos, e tão somente três: pela luz do sol , pelo odor do suor e pelo calor do sangue . Desprovido de visão, o afeto pela luz do sol   leva o carrapato a subir num galho ou árvore  ( embora não  veja a luz do sol , ele a sente: a luz o toca ...). Em cima do galho, o carrapato espera...

Sua espera pode durar dias, semanas, meses...Enquanto espera, ele como que hiberna. Até que o desperta o segundo afeto: o odor do suor de um mamífero que por ali passa. Quando sente que o mamífero está sob seu alcance, o carrapato se solta do galho e se lança em direção ao corpo do mamífero, e sobre ele pousa, enveredando sob os pelos atraído  pelo terceiro afeto: o calor do fluxo do sangue.

Ele então suga o sangue, se intumesce, regozija-se e fica  pleno. Até que  se larga e cai no chão, realizando aquilo que da sua vida é o sentido, a sua razão de ser. Da quantidade infinita de acontecimentos da natureza, apenas três afetam o carrapato. E esses acontecimentos se tornam signos em torno dos quais o carrapato vive.

Não importa se um carrapato , um homem ou qualquer outro ser vivo: são nossos afetos que nos definem e nos fazem agir como agimos. Alguns têm afeto por dinheiro, outros por fama, outros ainda por poder : e se moverão em torno dessas coisas, como o carrapato buscando o sangue.

Outros têm afeto pelo som, e se tornam músicos; outros pela palavra, e se tornam poetas, escritores; outros têm afeto pelo conhecimento, e se tornam cientistas, professores, educadores; e outros raros  ainda , como Espinosa, têm afeto pelo infinito, e pelo infinito regozijam , amam e somente com ele  ficam plenos.


( as obras do etólogo Uexküll)