quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Fernando & Manoel: empoemamentos...

 

Às vezes me perguntam por qual razão cito tanto Manoel de Barros...rs... Manoel é um dos meus poetas preferidos, há outros. Porém Manoel é mais do que um poeta, ele é um grande pensador, um dos maiores que já tivemos.

Há nele mais do que uma “poética”, há uma original e singular “empoética”. Dessa palavra nasce um verbo-acontecimento: “empoemar”. Para Manoel, ler poesia não é apenas ler rima e versos, ler poesia é, antes de tudo, empoemar-se.

Há os que se empoemam e cantam, há os que se empoemam e pintam, há os que se empoemam e ensinam, há os que se empoemam e aprendem, há os que se empoemam e agem. Empoemar-se é intensificar a vida em nós.

Quando eu fazia o antigo segundo grau, ainda muito jovem, tive uma aula de literatura na qual a querida professora leu para nós um poema de Fernando Pessoa: “Para ser grande”. Confesso que , na hora, não entendi nada do poema.

O poeta não apresentava fórmulas, receitas, palavras de ordem, dogmas.  Ele apenas dizia que para sermos grandes devemos ser sempre inteiros e imitarmos a lua. Eu ouvia a palavra “lua” de forma literal, “coisal”. E a literalidade muitas vezes tolhe as asas que as palavras podem e devem ter, para que assim descubramos nossas próprias asas, como o Eros e suas asas metamórficas de borboleta.

Mas fiquei com o poema na cabeça... A aula era à tarde e havia chovido muito. Quando sai do colégio, já estava anoitecendo. Aqui e ali , poças d’água eu via pelo caminho, o temporal havia terminado há pouco.

Eu vinha de cabeça baixa, olhando para o chão, pensando nos problemas da vida. Até que, de repente, vi numa poça d’água o reflexo da lua. Era uma lua cheia linda, como a que fez   ontem. De imediato, levantei mais do que a cabeça para olhá-la, também levantei a mente, o coração, a imaginação, enfim, o pensamento.

Sem precisar de força bruta, apenas com sua presença luminosa, a lua no céu havia afastado as nuvens carregadas e cinzas  da tempestade, assim brilhando inteira.

Ao brilhar na poça, a lua não se colocava pela metade ou em parte, ela se colocava inteira. Ela nada perdia em se mostrar assim , mesmo na mais simples poça. Ao contrário, ela dignificava a poça e a transformava em um oceano para (auto)descobertas.

Então, compreendi enfim o poema, e a própria lua me ensinou o sentido; e o compreendi não apenas com a mente, o compreendi também com meu  corpo e com tudo o que nele pulsa. Creio que foi ali que vivi meu primeiro empoemamento. E o que hoje sou, nasceu ali.


( Imagem: a lua em van Gogh)








segunda-feira, 28 de agosto de 2023

o que é o comum?

 

O comum é aquilo que é igual tanto no todo quanto nas partes. É Espinosa que nos fornece essa definição.O comum não nasce da mera associação de indivíduos. Estes somente se associam mediante um contrato, contrato este que eles são obrigados a seguir, pois o descumprimento do mesmo pode acarretar alguma sanção ou prejuízo.  O pressuposto dos contratos é a primazia do indivíduo.

O comum não nasce de contratos ou receio de prejuízos.Quando nasce um comum, cada indivíduo se torna parte do comum que os agencia. Equivocadamente, sempre imaginamos o todo como um conjunto fechado.E dentro dele imaginamos seus componentes.O todo seria o continente e os componentes seriam o conteúdo.Imaginamos ainda que apenas os componentes estabelecem relações, e que o todo-conjunto sempre permaneceria o mesmo, independentemente das relações de seus componentes.Imaginamos até mesmo um conjunto vazio, sem componentes.Mas nada disso traduz o que Espinosa chama de comum.

O comum não existe como um conjunto . O comum nasce das relações: ele é a própria relação.Os contornos de um comum vão até onde alcança o nosso poder de agir e de pensar.O conhecimento, por exemplo, é como uma gaiola que nos encerra em padrões imutáveis existindo em limites delimitados ou é algo que nos amplia?Ampliar-se pelo conhecimento não é aumentar o tamanho físico de nosso corpo, tampouco aumentar a extensão das coisas que podemos dizer nossas, como propriedades privadas; o conhecimento nos amplia pelas conexões que ele nos possibilita, tornando-nos  partes de infinitas coisas: parte da pólis, parte do planeta, parte da noosfera, parte do infinito, parte das descobertas que nós mesmos fazemos, enfim,parte do conhecimento mesmo que nos amplia.

A amizade nasce de um contrato? O amor se mantém por um contrato? E mesmo a justiça, ela é garantida apenas pelos contratos?Amizade, amor, justiça, conhecimento...são noções comuns. São várias as causas que fazem nascer o comum, mas a mais forte é a alegria.Ao contrário,muitas relações tristes somente se mantêm pelos contratos que as obriga.

 Para Espinosa, a alegria é um aumento do nosso poder de agir, do nosso poder de existir. Assim, o comum não nasce para nos limitar, tal como o contrato, mas para nos expandir.Há uma dimensão do afeto na instituição do comum. E destruir o comum é destruir parte de nós mesmos.O comum nasce do agencimento, não da associação ou união.

O comum não nasce no exterior dos indivíduos , assim como os contratos que dependem do Estado e de suas polícias; o comum nasce na imanência dos indivíduos, em seus desejos.

Segundo Espinosa, o todo é maior que a mera soma de suas partes. Assim, quanto mais afirmamos o comum, mais existimos nele, ele que sempre nos aumenta. Mas o comum não existe apenas nele ou nas partes, ele existe tanto nele quanto nas partes. Por exemplo, o conhecimento como o comum que liga professor e alunos não existe apenas nele mesmo, como um céu inatingível, tampouco existe apenas no professor; o conhecimento existe nele mesmo, no professor e também no aluno. O conhecimento não existe apenas naquele que ensina, ele existe também naquele que aprende; e mesmo aquele que ensina, enquanto parte do conhecimento, aprende também com o ensino enquanto todo que é mais do que ele. O comum não é um território com cercas delimitadas, ele é um  processo: nele há lugar para a invenção,invenção do conhecimento e de nós mesmos.

A amizade que une Pedro e Paulo não está apenas em Pedro ou em Paulo, está em ambos e mais na própria amizade enquanto ideia comum que os torna amigos.Pedro é parte de Paulo enquanto ambos são partes da amizade, pois o comum não existe sem partes.Um conjunto pode existir sem componentes, como conjunto vazio, mas não pode existir amizade sem amigos, amor sem amantes, ensino sem professor e aluno.

O amor que liga Pedro e Maria não está apenas em Pedro ou em Maria, mas está em ambos enquanto eles são partes, partes singulares,do amor que os agencia. Pedro não ama Maria por obrigação e nem mantém o laço por obrigação, a não ser que reduzamos o amor a um contrato, inclusive um contrato apenas moral.

Não se deve confundir indivíduo e singularidade.Por se oporem como átomos isolados, os indivíduos somente se unem mediante contratos que eles realizam por suas respectivas vontades.A primazia do indivíduo o faz existir como um todo à parte: onda sem mar,mão sem braço,nuvem sem céu, fruto sem árvore.Mas somente quando produz o comum que também o produz, o indivíduo devém singularidade, pois é somente como parte de um comum  que podemos nos singularizar.Singularizar-se não é enrijecer nossos contornos de acordo com uma identidade,mas descobrir que são as relações que nos constituem também intimamente.E toda relação que singulariza é composta de três, e não de dois. Ela é constituída por aqueles que se agenciam e mais o comum que dá sentido ao agenciamento.

Quando entre os indivíduos não existe um comum que os agencia, eles passarão a existir de tal forma que um quererá impor ao outro a sua maneira de ser, o que dará nascimento a esperança de reconhecimento por mero reconhecimento e medo de rejeição, o que acaba por fomentar ódios recíprocos, mantidos ocultamente ou explicitamente.

O comum não é o mero consenso nascido da semelhança da opinião de indivíduos.O comum é a criação de um terceiro indivíduo do qual me torno parte, não como indivíduo, mas como singularidade.Ou seja, produzimos o comum enquanto potencializamos nossa diferença.Pois potencializo minha diferença quando a faço parte, parte ativa, de uma diferença ainda maior.Somente as diferenças se agenciam : na e pela diferença.São as diferenças que nos assemelham, não a identidade.É uma ilusão profunda imaginar que existe uma ideia geral de amizade, uma ideia geral do amor, uma ideia geral do ensino, que passarão a ser impostas então como padrão ou modelo.O comum não é uma ideia geral.Assim, existem mil maneiras diferentes de se produzir a amizade, o amor, o conhecimento....Um museu produz uma ideia de conhecimento totalmente diferente da escola formal.Mas entre o museu e a escola existe ainda um comum: o conhecimento como ideia plural que cada um realiza de forma diferente.O comum não é paradigmático, ele é sintagmático.

O comum não é um mero efeito, ele é causa: a amizade nos torna amigos, o conhecimento nos torna agentes do conhecimento ( não só o professor é agente, o aluno também o é). O comum não o é apenas em relação a almas, ele também envolve os corpos. Nasce não apenas uma alma comum entre os amigos, nasce igualmente um corpo comum, corpo que não é apenas fisiológico ou orgânico, mas corpo afetivo, qualitativo e intensivo.É um corpo onde ambos se apoiam para agir.

 O corpo tem por virtude a ação. Assim, um amigo é aquele que podemos reconhecer pelas ações, assim como se reconhece pelas ações um professor e um aluno, desde que também exista a educação como o comum que também liga suas almas. O comum não concerne apenas à alma ou ao corpo, mas aos dois.

 

Eu sou mestiço, amigo.

Não sou preto e nem branco.

O amor mistura tudo.

E esse é seu extremismo:

casar extremos.




sábado, 26 de agosto de 2023

Acalântis

 

Acalântis era uma jovem que desafiou as Musas, deusas das artes ( “Musa” significa: “conhecimento que vem das artes”). O desafio não foi por mera vaidade ou pretensão. Acalântis não as desafiou xingando ou ameaçando, ela as desafiou cantando.

Toda criação artística potente é um desafio que o artista lança à arte e a si mesmo, para assim reinventar arte e vida, pois nada de novo se cria sem desafios.

As obras de Van Gogh são um desafio lançado à pintura ; os solos de sax de John Coltrane são um desafio lançado à música; os versos de Manoel de Barros são um desafio lançado à poesia.

Com sua arte, o artista desafia a matéria e o espírito a se amar para serem um único ser na obra que nasce, como um ser vivo.

Essa união singular entre corpo e espírito para formarem um único ser vivo, seja gente ou obra de arte , o poeta-filósofo Lucrécio chamava de “concílio”.

Acalântis cantava estando feliz ou triste, amando ou desgostando, fosse primavera ou inverno. E quem a ouvia era acalantado: aumentando a alegria ou diminuindo a dor.

As Musas se surpreenderam com a arte de cantar de Acalântis. Além da beleza, havia também calor no canto de Acalântis, como se dentro dela brilhasse um sol.

Então , para que o canto de Acalântis ganhasse asas e pudesse ir longe, as Musas transformaram Acalântis num passarinho canoro: o pintassilgo, conhecido como “o passarinho cujo canto acalanta”.

“Acalantar” significa : contagiar com calor, com vida. O pintassilgo acalanta não só aos ouvidos com seu canto , ele acalanta também o ser inteiro de quem sabe achar no canto um ninho.

A arte não é só canto de alegria , ela também pode ser clínica e nos auxiliar a curar a dor , tanto as físicas quanto as psíquicas.

O pintor acalanta com suas cores, a cantora acalanta com sua voz , o poeta acalanta com suas palavras-assobio : para que não morramos do frio desses dias sombrios.

Para quem as sabe ver , ouvir e sentir, cor , voz e palavra também são ninhos, para assim fazermos como ensina Manoel de Barros: “Os raminhos com que arrumo as escoras do meu ninho são mais firmes do que as paredes dos grandes prédios do mundo.”


( bem cedinho, todo dia sou acordado pelo canto de um bem-te-vi . Ele fez ninho numa árvore perto de minha janela. Mal nasce o dia, o bem-te-vi já está cantando . Nem mesmo um carcará imenso que ronda por aqui mete medo no bem-te-vi. Ao ouvi-lo cantando, pensei: “Hoje chove, chove, chove...Mesmo assim ele persevera com sua arte.” Fui à janela : assim que o vi , ele voou atravessando a fina chuva e pousou no galho mais alto. Ele então cantou e apareceu outro bem-te-vi , ambos dividindo o mesmo galho. Olharam para o horizonte, tomaram coragem e para lá voaram... Foram eles que me lembraram hoje “Acalântis” )




 






domingo, 20 de agosto de 2023

Manoel de Barros: a visão fontana

 

Segundo  Manoel de Barros,  poeta não é exatamente quem faz rimas e versos, poeta é quem possui e exerce uma  visão fontana, uma visão que é fonte para a gente potencializar ainda mais o nosso ver.

“Fontana” é a qualidade de tudo o que é fonte, seja fonte de água ou de ideias, e “fontanejar” é a maneira que toda fonte tem de sair de si e se doar, generosamente : “A cisterna contém, a fonte transborda” (Blake).

 A visão fontana não é uma visão que constata o meramente dado; ao contrário, ela é uma visão que vê , antes, o sentido enquanto  alma viva das coisas, sobretudo daquelas que ainda não existem e precisam ser ousadas, criadas, aprendidas e ensinadas.

As águas que nela  fontanejam a  fonte as sorve do chão. Porém, antes de estarem sob o chão,  essas mesmas   águas já estiveram, outrora, no céu  : elas foram gotículas suspensas no alto da atmosfera , e depois caíram  como chuva que entrou pelos poros da Mãe-Terra.

Essas mesmas águas fontanas  também  já circularam no interior dos animais, como sangue e suor ; elas foram igualmente  fluxo de primavera quando a neve no pico das  montanhas   derreteu; essas águas fontanas  já foram orvalho nas flores, seiva nos troncos e ,nos frutos, o doce sumo; elas já foram lágrimas de dor, lágrimas de alegria; e envolvendo e protegendo o feto, essas mesmas águas já foram líquido vital  no interior da placenta.

Um dia tais águas fontanas sustentaram a Terra, como nos faz crer Tales, o pensador originário; e Cristo fez delas vinho, o sangue de toda festa; e é nesse fluxo de vida sem limites  que nada e mergulha, livre, a indomável Moby Dick.

E todos, insetos e humanos, flores e animais, até mesmo a Terra, todos bebem dessas águas fontanas para se manterem vivos.

É esse fluxo que se metamorfoseia e enche de vida tudo ( como a Natureza Naturante de que fala Espinosa) ,  é essa Vida transbordante  que o poeta vê e sente , primeiro nele, para fazer com que a palavra por ele fontaneje e seja como água fértil para os que têm sede de vida potente.

Enfim, como também ensina o pensador-escritor argentino Julio  Cortázar: “Há um estado de intuição para o qual a realidade, seja ela qual for, só pode ser formulada poeticamente, segundo modos poemáticos;  e isso porque a realidade, seja ela qual for, só se revela poeticamente”.




 



quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Hoje, 16 de agosto, Dia do Filósofo/Filósofa

 

Atribui-se a Platão a célebre distinção entre  o filósofo e o sábio. O sábio é aquele que possui a sabedoria, ao passo que o filósofo é aquele que a busca. O sábio é um personagem cuja luz vem das misteriosas  estrelas do céu noturno  do Oriente, já o filósofo está em busca da aurora do sol nascente.

Muito se fala da Sabedoria enquanto objeto que o filósofo busca, e do próprio filósofo, aquele que a busca. Mas pouco se dá atenção ao  que está entre a Sabedoria e o filósofo: a própria busca,  o desejo de buscar. É na natureza desse buscar que se encontra o sentido existencial  da filosofia como modo de vida.

O filósofo não busca fama, poder, dinheiro , ouro : ele não busca nada que os homens do senso comum consideram digno de busca[1]. O filósofo não busca terras desconhecidas ou paisagens ainda não pisadas para se conquistar e ser o dono , ele busca realidades  cuja descoberta e conquista dependem , primeiro, da descoberta e conquista de si mesmo.

O filósofo não busca porque está perdido, ele busca porque já se encontrou: ele se encontrou na própria busca pela sabedoria , busca essa que se mede pelo quanto que nela se avançou : “O andarilho abastece de pernas as distância”, filosofa o poeta-pensador Manoel de Barros.

O filósofo não busca a sabedoria apenas lendo livros de filosofia, pois mesmo numa pintura, numa música , num filme, num poema, numa obra literária e até mesmo no desenho colorido de uma criança,  ele sabe achar  o caminho que o conduz à sabedoria.

O filósofo não busca a sabedoria apenas com a mente, tal como faz o mero teórico, nem apenas em palavras, como o propagandista-retórico; o filósofo busca a sabedoria com a mente e com as palavras , sem dúvida, porém ele também a busca    com o coração, enquanto sede do Afeto Transmutador, e ainda mais ele a busca com suas ações  e  práticas.

 



[1] Esse é o principal tema do livro Tratado sobre a emenda do intelecto, de Espinosa.








domingo, 13 de agosto de 2023

Ao Dia dos Pais

 

Sou o mais velho de cinco irmãos. Filho mais velho, dizem, precisa  dar o exemplo. Porém, quando criança fui vizinho de um garoto chamado Edinho. Ele era quatro anos mais velho que eu, diferença que contava bastante.

Edinho foi não só meu primeiro amigo, ele também era o irmão mais velho que eu não tinha: com ele eu podia ser  irmão caçula ( não em sangue, mas em afeto).

Foi Edinho que me despertou a vontade de querer aprender a ler, pois quando eu tinha 5 anos via Edinho sempre com  gibi na mão, lendo. Como eu o imitava em tudo, também queria aprender a ler para fazer amizade com os gibis, que tanto roubavam a companhia do meu amigo de mim.

Aos olhos do meu pai, Edinho tinha apenas um defeito : ele era “botafoguense” ( meu pai era flamenguista de “carteirinha”).

Sabendo de sua influência sobre mim, quando fiz 6 anos Edinho juntou dinheiro e me deu, como presente de aniversário, uma camisa do botafogo novinha. Não pensei duas vezes: coloquei a camisa, virei botafogo...

 Quando meu pai me viu com a camisa, a expressão de decepção no rosto dele era indescritível, mas ele  nada disse.

Pouco tempo depois , ele me  falou: “filho, vamos ao maracanã?” Era a primeira vez que eu iria ao maraca! Fomos assistir a um flamengo X bonsucesso, numa quarta à noite, mais de 40 mil presentes. O jogo estava difícil, o bonsucesso tinha um bom time.

 Mas eu não estava nem aí para o jogo, eu era botafogo! E meu pai, querendo me agradar, pagava tudo o que eu pedia para comprar dos ambulantes: sorvete, biscoito, doce...

Começou o 2º tempo,  zero a zero ainda . Até que, à beira do campo,  começou a  aquecer um garoto para entrar no flamengo. Meu pai me segurou no braço e disse, cheio de esperanças: “filho, não tire os olhos desse garoto que vai entrar!”

Olhei para o garoto sem entender as palavras esperançosas de meu pai: o garoto era magrinho, o uniforme o engolia... Pensei comigo, enquanto saboreava um sorvete: “Meu pai não sabe nada...”

Até que o garoto entrou...A primeira vez que ele tocou na bola, esqueci o sorvete, pois ele fez um lançamento maravilhoso que gerou o primeiro gol do flamengo. O garoto parecia um artista, um pensador da bola. Enfim, ele acabou com o jogo.

Aquele foi um dos primeiros jogos do Zico (embora com a bola no pé fosse um craque, lamentavelmente  esse jogador não teve o mesmo talento em suas escolhas políticas, descobri isso depois que cresci).

Quando saímos do maraca, esqueci o botafogo e, pela primeira vez, divergia  do meu querido amigo Edinho. De mãos dadas com meu pai , olhei para ele com meus olhos de menino e disse comigo: “Meu pai sabe tudo.”


( Imagem: o filósofo Gilles Deleuze com o pequeno  Julien , seu filho )




 



sábado, 12 de agosto de 2023

indignação não é ódio

 

Segundo Espinosa, não se deve confundir “ódio” com “indignação”. A indignação é um afeto ativo nascido da compreensão de que  uma injustiça sofrida por outro cidadão de nós diferente   é uma violência  que também nos atinge, ao passo que o ódio é um sentimento reativo transformado em vontade de destruir o outro   , física ou simbolicamente .

Indignação é desejo de construção da justiça, ódio é vontade de  vingança. A indignação nos une  na luta pela defesa do que nos torna dignos, já o ódio arrebanha os que fazem da ignorância bandeira e partido.

 O ódio geralmente se arma com preconceitos, intolerâncias , fake news...ou ainda  com o estúpido revólver mesmo, ao passo que a indignação se expressa não apenas em passeatas ou manifestos, mas também   na arte e pensamento críticos.

 Enfim, o que caracteriza um cidadão, diz Espinosa, não é exatamente votar  ou empreender negócios, mas ser capaz de se indignar com a injustiça sofrida por um outro. E a indignação deve ser  ainda maior , nos unir ainda mais,  quando o ódio autoritário quer destruir  a própria democracia.

Pois não foi a democracia que criou a indignação , foi a indignação que criou a democracia , pois antes mesmo de existirem as leis democráticas e seus Tribunais com magistrados togados, foi a indignação corajosa de  libertários e libertárias que primeiro derrotou  a tirania medieval dos que impunham  servidão e    vassalagem.

Indignação não é um ódio ao que é indigno, mas um amor ao que é digno, transformando esse afeto em  ação que nos diferencie e agencie coletivamente. A vacina não age diretamente na destruição do vírus, a vacina  fortalece nossa saúde para que esta, afirmando-se, destrua o vírus.

Certa vez, um fanático do ódio quis matar Espinosa com uma punhalada pelas costas. Rápido, Espinosa desviou do golpe. Ao invés de apenas alimentar ódio  a tal homem, Espinosa se indignou com a simbologia do covarde ato, cujo alvo não era apenas ele ,  mas  o próprio pensar livre e democrático de não importa qual tempo.

Compreender Espinosa não é  apenas decifrar  intelectualmente a lógica do seu  texto, mas fazer ressoar em nós a sua voz calma e doce, porém firme e indignada, para que ela se some à nossa e  potencialize o nosso coro plural de indignados contra a existência da fome, da desigualdade social, do feminicídio, da lgbtfobia, do fanatismo religioso, do fascismo, do etnocídio dos povos originários...enfim, indignação contra a ignorância e todas as suas obscuras faces.

Ler Espinosa é, antes de tudo, não deixar calar em nós , individual e coletivamente, essa voz da indignação pensante e atuante .

Educadora e emancipadora,  essa voz também pode ser ouvida na voz do poeta, na voz do artista e na voz de quem, aprendendo, igualmente  com ações  ensina, fazendo disso a sua perseverante prática.

Ver o inelegível criminoso ainda solto é fonte de nossa justa indignação , que sua prisão esteja , enfim, próxima...


( este livro é apenas uma sugestão )





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No último dia 7, Caetano fez 81  anos... Viva o Poeta!



domingo, 6 de agosto de 2023

Eros & Psiquê

 

Afrodite manda chamar  Eros, o Deus do Amor, que era seu servo. Dirigindo-se a Eros, Afrodite ordena :"Quero que você vá onde vivem os homens, encontre uma jovem chamada Psiquê  e atravesse o coração dela com sua flecha . Faça Psiquê se apaixonar pelo homem mais pobre, burro e feio que houver em toda Grécia..."

Até então Afrodite era a divindade exclusiva da beleza. Mas chegou aos seus ouvidos no Olimpo  a  notícia de  que havia surgido entre seres humanos um ser com mais beleza ainda do que ela, porém era uma beleza diferente, de todos desconhecida. Era Psiquê, a Alma, a portadora dessa beleza singular e imprevista. Assim, o desejo de Afrodite era, mediante o Amor, se vingar da Alma.

Mas o Amor nunca havia visto a Alma. Afrodite esquecera-se desse detalhe, pois o que poderia acontecer nesse encontro entre o Amor e a Alma? Apenas ouvir  falar da Alma não é conhecê-la. A Alma somente pode ser conhecida diretamente, sem intermediários.

Então, buscando-a, o Amor encontrou   a Alma, Eros conheceu Psiquê... O Amor sentiu nascer dentro dele um outro, esse outro era o Amor mesmo,  porém  potencializado, mais amor do que nunca. Se com Afrodite ele era servo, com Psiquê o Amor  se viu livre...  

Enquanto o amor por  Afrodite ( símbolo da beleza do Corpo) submetia Eros a caprichos narcísicos exigidos pelo ser amado, o amor nascido do encontro com a Alma o fazia voltar-se para si mesmo e descobrir  um desejo que não se esgota na posse e no imediato .

O Amor percebeu então que ele podia ser reinventado, experimentar uma nova maneira de ele ser . E que ele próprio, o Amor, desconhecia tudo o que o amor pode. 

A união dele com o Corpo era exterior ; contudo, o Amor sentia que para  se unir à Alma ele deveria morar dentro dela: cada um seria no outro, sem carência ou falta.

 Psiquê não está nos céus, nem no Olimpo, nem nos livros. Ela vive dentro do ser humano. Ela nasceu ninguém sabe como, pois onde menos se espera , mesmo no meio da indigência e da miséria, ali  nasce ela, pondo no mundo um novo poeta, como Carolina de Jesus.

Ela não nasceu divina, nasceu humana. Mesmo  assim   fez nascer no Amor um ser novo, que era o Amor mesmo com  olhos outros, diferentes, capazes de verem  o que se esconde de belo nos seres humanos, apesar de toda feiura que alguns homens frequentemente  dizem  e fazem.

Lição assim também se lê no poeta  Manoel: “Se a gente não der o amor, ele apodrece dentro de nós.”

 

( este livro é apenas uma sugestão de leitura)




Poema de Maiakóvski na voz imortal da Gal:



sexta-feira, 4 de agosto de 2023

os monstros

 

Tempos atrás fui convidado para dar um curso de Direitos Humanos para as forças policiais da Bahia. Àquela época, essas forças policiais  eram consideradas as mais violentas do Brasil. Os policiais não estavam no curso porque queriam, e sim em razão de receberem benefícios ( frequentar o curso aumentava o soldo deles)  .

Quando entrei na sala no primeiro dia de aula, reparei que a maioria estava  armada , pois muitos vinham de operações policiais ou estavam indo para uma.

Antes mesmo de eu me apresentar, um agente de segurança me fuzilou com uma pergunta : “O senhor já subiu uma favela?” Respondi indo ao quadro para escrever  uma  frase de Nietzsche, que usei como escudo para me proteger daquele  fuzilamento feito com palavras preconceituosas. Foi esta a frase :  “Quando queremos lutar contra as monstruosidades que existem no mundo, devemos tomar o máximo cuidado para que nós mesmos não nos tornemos monstros.”

Depois respondi que não só já subi o morro de uma favela , como também já morei no alto  de uma: morei no Morro dos Macacos, em Vila Isabel, terra da Escola de Samba Vila Isabel, berço de poetas.

 Morei lá quando era estudante de filosofia na UERJ, que fica ali perto. Também disse que várias vezes li Nietzsche e Espinosa no interior de um trem da Central do Brasil, e inúmeras  vezes também subi o morro com livros de filosofia e poesia na mão, pois são essas as armas nas quais acredito , e é com elas que luto.

Disse também  que esses filósofos e poetas agora me acompanham na sala de aula, na minha fala de professor. E que eu acreditava que potencializou ainda mais suas filosofias o fato de   Espinosa e Nietzsche   terem andado de trem e subido o morro  .

A monstruosidade de que fala Nietzsche não é apenas a violência física , a monstruosidade também é a brutal e desumana  injustiça social geradora de fome e miséria;  a monstruosidade também é a falta de creche e escola para as crianças da favela, roubando-lhes o futuro; monstruosidade são os juros aviltantes ; monstruosidade também é a milícia que veste uniformes da polícia; monstruosidade maior é termos tido um presidente miliciano-genocida, hoje representado pelo governador de São Paulo e sua PM fascista.

Quando o curso terminou, alguns  se desarmaram. Um deles, inclusive, me mostrou um quadro de aviso que ele havia feito com um pedaço de lousa  de  mais ou menos um metro quadrado . Ele me disse que ia afixar o quadro no mural de avisos da delegacia dele. No quadro feito por ele estava escrito: “Quando queremos lutar contra as monstruosidades que existem no mundo, devemos tomar o máximo cuidado para que nós mesmos não nos tornemos  monstros.”

 


( Imagem: “Éramos as cinzas e agora somos o fogo” , da série Pardo é papel, 2018, do artista e morador do Morro  da Rocinha  Maxwell Alexandre )



Esta música é de 1969, era uma canção de resistência à ditatura militar. Martinho da Vila e outros poetas/compositores da Escola de Samba Vila Isabel estavam sempre no Morro dos Macacos em rodas de samba populares. A expressão “homem de bem”, cantada por Martinho na música, tinha à época um sentido diferente do que tem hoje na boca dos fascistas.




quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Sofias...

 

Oriunda do grego, a palavra “filosofia” nasceu da reunião de duas outras palavras: “philo” e “sophia”. “Philo” significa tanto “amor” como “amizade”. Isso quer dizer que a filosofia não é prática apenas  intelectual ou racional, pois ela se nutre também de uma dimensão afetiva, expressa exatamente pelo termo “philo”.

Deleuze afirma, por exemplo, que a filosofia não é apenas Conceito, ela também é Afeto (esse termo não significa a mesma coisa que o mero sentimento   ). Espinosa ensina, por sua vez, que a filosofia é prática que se faz na Alegria. Já Epicuro menciona o Prazer ( não o prazer fugaz com isto ou aquilo, mas o Prazer de Existir). Outros, como Kierkegaard, Heidegger e Sartre, enfatizam o afeto da Angústia. Há ainda Aristóteles, para quem a filosofia começa na Admiração.

Nunca, absolutamente nunca, algum filósofo ensinou que a filosofia pode nascer do ódio, da covardia, do medo ou da intolerância. Ao contrário, a filosofia é um esforço para se tentar vencer essas “sombras”, como diria Jung, ou essas “tristezas”, nas palavras de Espinosa. E é antes de tudo naquele que filosofa que a vitória deve anunciar-se primeiro.

“Sophia” significa “sabedoria”. Assim, uma definição simples e geral da filosofia seria: “amor ou amizade pela sabedoria”, “afeto pela sabedoria”.

“Sophia” não é só teoria, fórmulas, razões. Ela também é Vida, Arte, Poesia. São a essas coisas que o filósofo dedica Afeto , não para guardar para si, mas para partilhar com os outros, com quem o lê ou ouve.

Além disso, mais importante do que ensinar sistemas e teorias, mais importante é despertar o gosto filosófico pelas questões do pensar . Essas questões não se encontram apenas em livros de filosofia, elas também vivem na poesia, na literatura, nas ciências , nas artes, enfim, na vida.

Não por acaso, “saber” e “sabor” são palavras primas, elas possuem uma origem comum. É preciso aprender a saborear as ideias e , também criticamente, saber distinguir as que são alimento daquelas que são cicuta,  veneno. Crítica e clínica, como ensina Deleuze.

Sophia também pode ser um nome próprio. "Sophia", ou "Sofia", é o belo nome que muitos pais escolhem para chamarem a quem trazem à vida. Por outro lado, “Teoria” é tão abstrato que alguém vivo não se deixa chamar assim, tampouco pode ser o nome de alguém “Razão” ou “Ciência”. Não dá para imaginar alguém se chamando “Razão”! (embora muitos imaginam encarná-la e serem donos exclusivos dela...).

 Mas assim como uma pessoa é mais do que seu nome,  Sophia  é mais do que sabedoria, ela também é generosidade, coragem, modéstia, invenção.

Deleuze chamou de “Pop’filosofia”  o agenciamento entre a filosofia e as artes, sobretudo a poesia. Pop’filosofia é Sophia empoemando, cantando, pintando, dançando, esculpindo...para assim nos fazer pensar mais plural e potentemente, pois nos faz pensar sentindo também.

Em Manoel de Barros, Sophia   também atende por outro nome:  Poesia.