sexta-feira, 30 de julho de 2021

manoel & deleuze: agenciamentos

 

O filósofo Deleuze ensina que só conseguimos mudar alguma coisa fazendo agenciamentos, pois ninguém muda nada, inclusive a si mesmo, sozinho . No coração da palavra agenciamento se encontra o termo “agente”. Mas o que é um agente?

Um agente pode ser qualquer coisa que favoreça um agenciamento. Por exemplo, uma música pode ser o agente de um agenciamento. Também podem ser o agente de um agenciamento um livro, um filme, um quadro... Mesmo algo considerado inútil pelo poder dominante pode servir a agenciamentos cuja “utilidade” não se mede em dinheiro.

Nem sempre um agente para um agenciamento se mostra evidente. De certo modo, é preciso saber achar um agente para nossos agenciamentos, ou até mesmo criá-lo . Sobretudo, é preciso aprendermos nós mesmos a sermos um agente para agenciamentos que potencializem os outros quando eles se encontram conosco. Quando nos agenciamos para mudarmos uma situação social, por exemplo, nos tornamos agentes uns dos outros.

Há um poema de Manoel de Barros que narra a potência que pode ter um agenciamento: o agente do poema é um pote que o poeta encontra no meio do mato jogado fora de "barriga vazia para cima". Não faz muito tempo esse pote deve ter sido o centro das atenções: todos ficavam felizes e o queriam perto. Ele assim era tratado por guardar algo que despertava interesse: ele era um pote cheio de sorvete...

Tamanha deve ser a dor que o pote sente agora, abandonado . Rejeitado pelos homens após estes o sugarem, apenas a natureza quis o pote. A natureza nunca despreza: ela recebe e regenera, preenche vazios - disso também já sabia Espinosa.

“Inútil”, o pote já não servia para nada, a não ser para metamorfoses, pois é isto que a natureza produz em tudo aquilo que, ao receber os cuidados dela , sofre um contágio, uma comunhão: "depois desse desmanche em natureza, as latas podem até namorar com as borboletas", pressagiou o poeta.

Tempos depois, o poeta teve que passar pelo mesmo lugar ermo. Lembrou do pote e se preparou para rever aquela imagem triste do sofrimento.

Porém, nesse intervalo de tempo , sem que o poeta soubesse, um passarinho passou voando “atoamente” sobre o pote e cuspiu uma semente em seu ventre vazio. Ali já havia areia e cisco que a natureza depositou: “as chuvas e os ventos deram à gravidez do pote forças de parir". E onde antes crescia o vazio, um poema vivo o pote partejou: do ventre do pote um pé de rosas desabrochou... "Se a gente não der o amor ele apodrece dentro de nós”, agradeceu o poeta ao pote por essa lição que recebeu sob a forma de rosas. Em seu agenciamento com o pote, o poeta metamorfoseou as rosas que recebeu em poesia que nos oferta.


















domingo, 25 de julho de 2021

o guri de Ouro Preto

 

Uma das melhores aulas de minha vida recebi nas ruas de Ouro Preto. Ao sair para conhecer a famosa cidade histórica, fui abordado  por um guri de uns 12 ou 13 anos.  Ele vestia um sapato que já calçara muitos outros pés antes dos pés dele; e sua calça , também muito usada, estava amarrada com barbante na cintura. Mas quando olhei no rosto dele, vi a riqueza de um sorriso que expressava uma alegria que vinha do lugar onde a vida resiste, tal como a alegria de que fala Espinosa  .

Havia nele uma dignidade na postura e maneira de falar, bem como uma confiança em si mesmo nascida de uma força que vinha de seu sangue, da luta de seus ancestrais. Pensei que ele me pediria algo, mas na verdade ele queria me oferecer.

O guri  se oferecia para ser meu "intercessor" no conhecimento da cidade  de Ouro Preto. Enfim, ele se oferecia para ser meu professor no conhecimento daquele patrimônio histórico. “Intercessor” significa: “aquele que cria intercessões, abrindo os conjuntos fechados”. O intercessor nos desabre e horizonta , diria o poeta Manoel de Barros.

Ao olhá-lo , me veio à mente Chico Buarque e sua música "Meu Guri" , interpretada por Elza Soares. A letra de Chico fala mais do que de um guri, fala de uma situação social excludente que rouba dos guris o direito ao futuro. A voz de Elza é canto de Gaia, voz da Terra-Mãe que chora a dor da injustiça que violenta seus filhos . Ouvindo-a, revejo o guri de Ouro Preto caminhando ao meu lado, um pouquinho à frente, feliz por me ensinar. Quem ama o que faz sente alegria. Com certeza, esse guri faria a Elza sorrir , assim como me fez.

Eu, “Professor Doutor”, aceitei ser aluno do guri. Por meio da fala e explicações dele , a cidade deixava de ser histórica: ela vivia , entrava em devir. Houve um momento em que olhei para o menino e vi o libertário Zumbi dos Palmares; noutro momento, ele parecia o poeta Cartola. Ali, o bisavô do menino foi escravo. Mas em seu bisneto o bisavô se libertava no conhecimento que produz outra história : um devir-memória dos acontecimentos que a História Oficial não conta.

O guri entrou numa mina abandonada e me mostrou onde ficava o ouro que agora adornava o trono onde estava sentado o Papa; ele adentrou numa igreja , subiu ao altar e abriu os braços em cruz, e o Cristo nele eu vi, com a cor e a face do menino-Zumbi.

Por fim, ele me levou à torre bem alta de uma igreja. De lá, ele me apontou sua simples casa: o morro onde o guri morava parecia o Morro de Mangueira... Sobre a majestosa colina, seu casebre estava mais alto e perto do céu do que todas as torres das igrejas








- Sugestão de leitura:


sexta-feira, 23 de julho de 2021

Espinosa e o "direito de resistência"

 

Parecendo antever  os obscuros dias de hoje, o filósofo  Espinosa defende em suas obras políticas   um “direito de resistência”. O sentido original de “resistir” é : “pôr-se novamente de pé”, após ter caído. “Pôr-se de pé” não apenas no sentido físico, também  é preciso pôr-se de pé no sentido ético e político, sobretudo quando o poder tirano nos quer de joelhos, com medo.

Esse direito de resistência não é um direito  que dependa exclusivamente de procuradores ou ministros do Supremo para ser evocado e defendido. Quem o pode evocar  e defender é quem se vê em perigo, sobretudo quando até  juízes e procuradores se põem de quatro perante o fascismo.

Esse direito de resistência é mais do que um direito: ele é um dever quando estamos sob a ameaça de autoritarismos. Para Espinosa , não se esquivar a esse dever é o que caracteriza o autêntico pensar em sua dimensão prática e emancipadora.

O contrário da resistência é a obediência. Segundo Espinosa, enquanto a resistência produz cidadãos , a obediência reduz o homem à condição servil , fato ainda mais grave quando a servidão é voluntária.

O direito de resistência significa exatamente isto: o pôr-se de pé de cada  indivíduo na imanência de um pôr-se de pé coletivo que não se deixa prostrar diante da ameaça de tiranos.


“Os filósofos levantam  questões muito importantes para a sociedade. Por isso, não podem ser apenas eles a debaterem  essas questões.” (Cícero)





No Rio:





quarta-feira, 21 de julho de 2021

alma acesa

 

Muitas são as cores. Porém três, apenas três , são as cores-fontes das quais todas as outras cores nascem. As três cores primárias são: o amarelo, o vermelho e o azul.

O amarelo simboliza o sol, é a cor mais quente. É por isso que os girassóis que Van Gogh pintou expressavam sóis que nele irradiavam, vivamente. Das páginas de Nietzsche também irradia um amarelo intenso, chama que é de mais de um sol: "Para brilhar e ter luz própria é preciso ter sóis dentro de si", dizia ele para nos incendiar de poesia libertária.

O vermelho simboliza o sangue, fluxo da vida. Vida que corre e transpõe toda barreira, vida que não pode parar, como o sangue nas veias. As revoluções democráticas tingem de vermelho suas bandeiras, às vezes compondo-a com outras cores, para ser o sangue a correr na veia comum de um povo que luta. A bandeira brasileira carece dessa cor que simboliza afeto e vida ( temos apenas o amarelo do ouro que não é do povo, mas de milicos e empresários  pseudonacionalistas; mais o verde da floresta que a motosserra fascista extermina...).

O azul é a cor do céu, é cor que “horizonta”. Também é a cor da paz ,mais do que o branco, pois  o azul é a cor da paz de espírito. A felicidade, dizem , é azul : é céu que se abre dentro. Sêneca vestia azul, a mesma cor preferida de Espinosa. A voz que "celesta as coisas do chão", voz da poesia, "é voz pintada de azul"( Manoel de Barros).

Porém, existe ainda a luz .Esta não é o branco. Pois o vermelho,o azul , o amarelo...todas as cores, enfim, são expressões ou variações da luz, não menos que o branco. A gramática das cores nasce da  poética da luz.

A luz também não é a claridade que emana do sol, dado que esta nasce do amarelo. Há na luz mais paz e paciência do que há no azul; há na luz mais paixão do que há no vermelho; há na luz  mais calor do que há no amarelo de todos os sóis juntos.

Plotino dizia que a autêntica beleza não está na proporção do rosto, muito menos na cor da pele , como pensavam os estreitos estetas gregos, que diziam ser belo apenas o rosto de pele branca, grego.

Para Plotino, a beleza está no rosto que emana luz, não importando a cor da pele, idade  ou forma do rosto. Rosto belo é um rosto  iluminado por uma  alma acesa, como os rostos  de Clementina, Cartola , Dona Zica e Carolina de Jesus.

 

 

“Borboleta é uma cor que avoa.” (Manoel de Barros)

 

( imagem: Clementina, Cartola & Dona Zica, Carolina de Jesus)










sábado, 17 de julho de 2021

platão : os nove tipos de seres humanos

 

Platão ensina que existem   nove tipos de  seres humanos . Esses nove  tipos formam uma escala: do mais nobre ao mais vil. A nobreza, no caso, não era devido a títulos  ou  posses. Mas o que caracterizava essa nobreza?

Valendo-se de alegorias para se expressar ( pois as alegorias servem para tentar dizer o que não é apenas palavra), Platão dizia que o ser mais nobre é aquele que possui uma forma especial e rara de asas , asas que permitem elevar, para assim nos transportar  até o lugar   onde vivem as Ideias. Porém, não é a razão a dona dessas asas, a razão é apenas os “olhos que veem” as Ideias. Sozinha, entregue apenas às suas teorias e raciocínios, a razão não tem força para  nos elevar.

 As asas que conduzem  às Ideias pertencem a um “Daimon”: Eros, o Amor ( em grego, “eros” também significa “asas”). Somente consegue chegar bem perto das Ideias, e ficar face a face com elas, aquele em cujas costas não há peso e sim asas , como as asas do beija-flor que o põem diante de seu néctar. Enquanto Daimon ( isto é, ser que auxilia nas travessias ), Eros   é a  força  do Afeto transmutador . Assim, na escala proposta por Platão ,   mais nobre é o ser cujas asas têm força para conquistar proximidade com as Ideias. Quem vê de perto as Ideias, também as vive e sente: torna-se pensador.

Mas as asas de Eros não são como as de Ícaro, cujas asas eram artificiais e colocadas com engodo,  asas que fazem subir apenas para aumentarem o tamanho da queda. As asas de  Eros também não são como as dos pássaros, pois estes já nascem com asas. As asas de Eros eram como as da borboleta:  asas que nascem  de uma  metamorfose.

O segundo ser na  escala é o  que busca a justiça; o terceiro é aquele  que cuida da saúde do corpo; o quarto é o que tem engenho e arte... E assim segue Platão descrevendo e enumerando os tipos de seres humanos.

O penúltimo em tal escala ( o oitavo, portanto) é aquele que usa as palavras não para ensinar, mas para iludir e enganar, como os que hoje fabricam “fake news” . Por isso, quem assim procede está mais perto da vileza do que da nobreza. Segundo Platão, esse penúltimo na escala é  o ardiloso sofista .  Os sofistas  prometem asas, porém asas  artificiais como as de Ícaro.

E o último ser nessa escala, o ser humano mais vil, é aquele que possui a alma de tirano. Platão dizia que devemos manter o tirano longe   da educação dos jovens e mais distante ainda do governo da sociedade. O tirano recebe também outro nome:  “antifilósofo” . Todo tirano , ou antifilósofo,  é cego às ideias e cultua a ignorância e o ódio. O tirano não tem asas, o tirano é peso soturno que, chegando ao poder,ameaça  afundar a sociedade no abismo.

 

( segue uma sugestão de leitura)




A visão de Platão acerca dos sofistas é muito  crítica e redutora. Já Aristóteles vê alguma positividade na retórica  dos sofistas, embora também lhes faça duras críticas . A retórica é elevada a estilo filosófico apenas no período romano, em Cícero por exemplo. Em sua “reversão do platonismo”, Nietzsche exalta os sofistas, tidos como precursores, junto com Heráclito, de seu perspectivismo. Além disso, a retórica  sofística compreendia várias correntes: política, judiciária, literária, pedagógica.  Somente a primeira delas , a retórica política visando o poder, pode ser associada ao que hoje se chama “pós-verdade”.  Antes de tudo, os sofistas foram os primeiros grandes pensadores da linguagem. 

http://www.filosofianaescola.com.br/2012/01/linguagem-trecho-do-filme-waking-life.html



quinta-feira, 15 de julho de 2021

a aula

 

Tempos atrás, o Teatro do Oprimido , de Augusto Boal, foi fazer uma apresentação na Uerj. 

Na primeira cena ,  um jovem da elite entra sorrateiramente   no quarto da mãe , surrupia  um relógio caro e vai  trocá-lo por drogas. Ao se dar  conta do furto,  a dona do relógio   grita: “Maria!!!” .

Mal a trabalhadora  doméstica entra,  já a fere um grito acusador: “Cadê meu relógio!?”Por ter feito faculdade, a patroa empregava sua destreza   com as palavras  para fazê-las de arma a serviço do preconceito e do ódio .

No auge da violência simbólica,  entra o Boal e diz: “parem a cena!”, e pergunta  à plateia variada de estudantes (sendo eu  um deles , um aluno da filosofia ) : “alguém quer tomar o lugar do oprimido para  tentar vencer o opressor?”

Uma estudante de psicologia levantou a mão, foi até  ao Boal  e pegou a vassoura da personagem (a vassoura  era o elemento cênico a simbolizar o oprimido). Como não havia roteiro, a estudante poderia interromper o fluxo verbal da opressora quando quisesse. Porém, a atriz-patroa, extremamente hábil e agressiva, pôs abaixo com facilidade as táticas psicológicas da estudante.  A aluna pediu para  sair...

Outro estudante levantou o braço ,  um estudante de direito.  Boal passou-lhe a vassoura , recomeçou a peça. O garoto argumentava bem , era confiante. Mas ele tinha um ponto fraco: comportava-se  mais como um advogado, não como a vítima de fato. Ele não sabia o que era ser mulher, pobre, preta, explorada...Também não resistiu.

Ninguém mais levantava a mão, fez-se um silêncio. Pensei comigo: “Será que a teoria nada pode contra a ignorância armada com palavras?”

Até que olhei para trás e vi, na entrada do banheiro feminino, a faxineira de verdade da Uerj espreitando a cena.  Ela estava “invisível” a todos. 

Quando  o Boal perguntou se deixaríamos a opressão vencer,   a faxineira  tomou coragem e gritou: “eu vou enfrentar ela!”, e  foi atravessando de vassoura na mão por entre os alunos .

O Boal a recebeu com um sorriso, perguntando o nome dela.  “Maria da Anunciação ”, respondeu nervosa.  Boal deu-lhe a vassoura da personagem  e  Maria passou ao Boal a vassoura que era seu ganha pão. E as vassouras, a da arte e a da vida, eram exatamente iguais!

Quando a peça recomeçou, a elitista retomou seus protofascismos. Maria ficou em silêncio, mas não de resignação. Ela segurou firme a vassoura , seu “ganha pão”,  e fez dela também seu instrumento de  indignação e "ira santa":  Maria saiu dando vassouradas na opressora casagrandista... E batia de verdade!

Foi preciso toda a equipe para segurá-la,  Maria era forte, muito forte... Explicaram para ela que era tudo de mentira. Maria respondeu: “Mentira!? É que isso não acontece com vocês!”.

Ainda nervosa, pediu água com açúcar. Bebeu,  foi se acalmando, recuperou-se. Cheia de dignidade, Maria  se despediu do Boal  e retornou para o seu trabalho  .

Quando ela passou por mim, sorri agradecido para ela e falei: “Obrigado pela excelente aula!”


É Augusto Boal o amigo ao qual se referem Chico & Francis Hime nesta belíssima parceria ( no vídeo, a gente ainda ganha de presente a flauta do inesquecível Altamiro Carrilho). Àquela época, Boal estava exilado em Portugal. A música foi a maneira de enviar uma mensagem ao amigo driblando a ditadura , seus generais e vis censuradores:




 

quarta-feira, 14 de julho de 2021

delírios ônticos

 

Esta história se encontra em La Fontaine ( que aqui interpreto): Eros, o Amor, entrou em conflito com Atena, a Razão ( nessa história, Atena é identificada à Razão que apenas conta,mede e calcula). Eles brigaram porque , ao decidirem andar juntos, Atena só dava um passo adiante ao  ver, antes , o caminho;  já o Amor gostava de ir por onde não havia trilhas: se à frente havia  um abismo, Eros  abria suas  asas e o atravessava ,  confiando em sua força alada. Atena, sempre com os  pés no chão, não aprovava esses ímpetos e voos. Desentendidos, a Razão e o Amor brigaram...

Os deuses do Olimpo  ficaram do lado de Atena. Como punição, Eros foi privado de ver a Luz do Olimpo, tornando-se cego. A luz do Olimpo era como um sol a iluminar o mundo visível onde vivem os homens com suas opiniões e certezas.

Afrodite interveio e pediu a Zeus que fosse dado a Eros ao menos uma bengala para ele poder caminhar. Zeus assim respondeu : “É indigno ao Amor viver apoiado em bengalas e outros tipos de amparo  que não sejam suas próprias pernas e asas.” Dinheiro, posses, dogmas, poder, segurança...Se o Amor se sustentar nessas coisas, atrofiam suas asas.

Zeus não mandou, portanto,  uma bengala para o Amor, e sim um guia:  a “Loucura” . Os gregos chamavam de “Mania”, ou “Loucura Divina”, essa Loucura que guia o Amor. Embora cego, o Amor passou a ver a partir do coração, pois foi no coração do Amor que a Loucura Divina se instalou.

 Essa Loucura deu ainda mais coragem a Eros para  abrir suas asas ( “coragem”: “ação que vem do coração”). Pois  essa   “Loucura” não é uma enfermidade mental negadora da Razão; ao contrário,   ela é  uma força  transmutadora que guia o Amor  a achar  caminhos que a própria  luz da Razão não consegue encontrar sozinha. É essa mesma “Loucura” não resignada  que  guia tanto o poeta  como , no campo pedagógico-político, o libertário. Quem ama o que faz e age, precisa de coragem assim.

O poeta  Manoel de Barros assim chama essa “Loucura”: “delírio ôntico” . Em grego, “on” é “ser”. Enquanto o delírio mórbido, delírio por poder,  é negação da vida e da multiplicidade do ser, o delírio ôntico, delírio poético, é afirmação e criação de novos  sentidos para as mil possibilidades diferentes que há nos seres.

 

“Se uma pessoa fizesse apenas o que entende,

jamais avançaria um passo.”(Clarice Lispector)

 

( este livro é apenas uma sugestão de leitura)



 

domingo, 11 de julho de 2021

a busca pelo tesouro...

 

Era a primeira vez que o menino vinha à minha casa. Ele tinha 8 anos. Diziam que ele não gostava de ler. Ele estava contrariado por estar ali comigo, e não escondia isso.

Até que eu lhe disse: “Você sabia que eu tenho um tesouro aqui em casa?” Ele me olhou de “rabo de olho”, desconfiado. Mas a simples possibilidade de eu ter um tesouro já melhorou seu olhar sobre mim. Ele perguntou: “Cadê?”. “Está lá dentro”, respondi. Segurei ele pela mão e o levei até ao cômodo onde estavam meus livros. Revelei: “Aqui está meu tesouro...” Ele vasculhou o cômodo com os olhos, deu de ombros e , desapontado, falou: “Não estou vendo!” Apontei para a estante : “Meu tesouro tem a ver com os livros...” Ele torceu o nariz , preparando-se  para  fugir  dali  e de mim.

Então, o segurei pelo braço com cuidado e revelei com  voz baixa o meu segredo: “ O tesouro está numa caverna escondida  atrás da estante dos livros...” Pela primeira vez, ele me olhou sorrindo. Se eu tinha um tesouro escondido , eu não podia ser um adulto chato, o olhar dele parecia me dizer isso. “Mas como se faz pra chegar lá?”, indagou com curiosidade de criança que recebeu um brinquedo que ainda não sabe  como brincar. Ensinei: “Você tem que puxar o livro certo da estante: puxando o livro certo, a entrada da caverna fica visível e se abre...”

Ele correu e puxou um livro imenso e pesado...Era um calhamaço : “Obras Completas de Aristóteles”. Falei para ele que  aquele sisudo livro não abria para cavernas secretas. Ele riu. Depois, pegou outro tijolaço: a “Crítica da Razão Pura”, de Kant. Ele  riu novamente, já adivinhando minha resposta.

Até que ele se soltou e compreendeu que aquilo era uma brincadeira, um exercício de “peraltagem”, uma “caça ao tesouro” cuja aventura estava em procurar a entrada da caverna secreta, mais do que em achá-la.

 A  mãe dele chegou e ficou surpresa em ver o filho brincando com livros, ele que só brincava com coisas de teclar. Aproveitei para dizer a   ele: “Entendo porque você quer tanto achar a caverna secreta com o tesouro. Quando eu tinha sua idade, descobri uma  caverna assim. Quando o mundo aqui de fora está feio e triste, retorno à caverna para recuperar as forças. Existem várias entradas para a caverna, uma das melhores é esta aqui...”. Peguei na estante uma versão infantil de “Moby Dick”.

Quando coloquei o livro na mão dele, o menino  olhou a capa e, admirado,   gritou: “Uma baleia! Ela é má?”  Respondi: “Ela só é má com os maus...De você ela vai  gostar, garanto. Ela  vai  oferecer  o dorso dela para você  subir e viajar com ela   por mares nunca vistos, mares  que você vai adorar conhecer...”

Naquela mesma noite, aquele que seria meu enteado  dormiu abraçado com o livro, que  se tornou a entrada  para ele descobrir a caverna do tesouro que estava escondida dentro dele mesmo.




sábado, 10 de julho de 2021

um pouco de possível...

 

Nietzsche dizia que precisamos tapar o nariz quando gente vil cruza nosso caminho. Mas não basta tapar apenas o nariz do corpo, também é preciso, sobretudo,  tapar o nariz do espírito. Pois mesmo que o corpo  de gente assim  esteja coberto de perfumes,  cheiram mal as ideias e palavras que tais seres emitem  :  é o que sai da boca delas o que fede. Assim são as palavras irrespiráveis que saem da boca imunda do genocida.

Não podemos fechar os olhos e ouvidos ao que ele escreve e  fala , é preciso ficarmos atentos. Porém , é necessário seguir o conselho de Nietzsche: tape o nariz do espírito, para não ser envenenado pelo hálito lúgubre que sai da boca do miliciano. Pois um espírito envenenado fica enfraquecido, triste,  com medo, já se achando vencido. E o mais importante de tudo: antes de tapar seu nariz do espírito, aspire bastante ar puro e oxigênio , como um escafandrista que precisa descer num lago cujo fundo é  lama e  lodo.

Não por acaso, “sopro de vida” é, em latim ,  “Spiritus”. Antes de lermos ou ouvirmos o que  diz esse ser do pântano, é preciso enchermos o pulmão vital com o sopro do espírito. Depois, o mais rápido possível , devemos com urgência ir respirar novamente o ar que nos mantém vivos, ar que está na educação, nas artes, na filosofia, enfim, nesses oxigênios que  devemos   partilhar para tomarmos fôlego e, juntos,  agirmos.

 

“Um pouco de possível, senão sufoco.” (Foucault)

sexta-feira, 9 de julho de 2021

o tordo

 

O tordo é um passarinho canoro possuidor de três tipos de canto. O primeiro ele canta quando quer marcar um território. Nesse caso, sempre acontece uma disputa, com dois ou mais tordos  rivalizando pelo  mesmo território. Sem precisarem brigar , o tordo de canto mais potente vence e toma conta   do território, sem que os outros tordos fiquem  ressentidos ou queiram se vingar.

O segundo canto o tordo canta quando deseja conquistar uma fêmea. Esse segundo canto é mais harmonioso e sutil,  entremeado por silêncios eloquentes acompanhados de posturas sedutoras. Mas no final é sempre a fêmea que escolhe qual tordo será seu companheiro amoroso.

 O terceiro canto o tordo canta em dois momentos do dia: quando o sol nasce e quando o sol morre . Na aurora, é canto de boas-vindas; no fim da tarde, é canto de despedida.   Esses dois cantos são de gratidão ao sol: quando o sol se vai, por ter havido aquele dia, não importando  o que nele aconteceu;  quando um novo sol chega, trazendo com ele um novo dia. Enquanto os galos cantam apenas  o dia que vem,  o  tordo também canta grato à vida  que recebeu do dia que  vai, como os estoicos nos ensinando o  “Amor Fati”.

O canto de território e o canto amoroso  são explicáveis pelo instinto  ,porém o terceiro canto parece querer um território e ser movido por um afeto que vai além do corpo orgânico . É um canto espontâneo e livre , parecendo um poema, uma obra de arte . O tordo sobe então até o galho mais alto para horizontar sua visão e cantar um canto de desterritorialização a todo território dado, ao mesmo tempo se  reterritorializando na abertura e amplidão do espaço  .

Esse terceiro canto, porém,  coloca o tordo sob perigo. Pois nesses períodos fronteiriços entre o dia e a noite a soturna coruja fica alerta , à espreita para ver onde está o tordo, para fazê-lo de   presa .

A mesma arte  que  singulariza o tordo, também o põe à  mostra. Porém o tordo não se esconde ou  cala , mesmo sob  a ameaça da morte : ele persevera no seu cantar à vida , com o máximo de potência que pode.

 

“Inventar uma tarde a partir de um tordo”.( Manoel de Barros )

 

“Não há nunca outro critério senão o teor da existência,

a intensificação da vida”. ( Deleuze & Guattari, “O que é a filosofia?”)

 

"As coisas  da arte são sempre resultado de ter estado a     perigo, de ter ido até o fim em uma experiência, até  um    ponto que ninguém consegue ultrapassar".  (  Rainer Maria Rilke )


(Este texto também é uma homenagem ao professor Cláudio Ulpiano, o tordo da filosofia)

 

(partilho a capa do livro  de Manoel como  sugestão de leitura)



 


quarta-feira, 7 de julho de 2021

a sabedoria e sua fonte-fluxo

 

O maior sábio da Grécia não foi Sócrates, Platão ou Aristóteles. O maior sábio foi Tirésias. Ele não se tornou sábio competindo para ser o “Dono da Verdade”  ou querendo ter opinião acerca de  tudo. Tirésias se tornou sábio   a partir de algo que ele viu e viveu .

Assim  aconteceu : atrás da casa de Tirésias passava um rio. Do rio vinha a água que ele bebia e o alimento que pescava. Até que um dia Tirésias se fez uma pergunta: “De onde vem esse rio? Onde fica seu minadouro?”.

Tirésias resolveu então  ir contra a corrente no esforço para achar a nascente. Somente  indo contra a corrente  se pode achar  nascentes, de rio ou de ideias. A fonte nunca vive no “acostumado”, no “mesmal”.

Não demorou para alcançar  partes onde o rio, embora o mesmo, já não lhe era conhecido : viu em suas margens flores que nunca tinha visto, ouviu passarinhos dos quais não sabia o nome. 

Enquanto prosseguia, não via trilhas ou pegadas. Sentindo-se correndo riscos, Tirésias   hesitou, quase abortando sua “linha de fuga”. Até que ele olhou à frente e viu alguém a se banhar na fonte da qual o rio nascia. Era Atena, a deusa da sabedoria. Ela estava nua...

A  sabedoria precisa às vezes se banhar  em fluxos  para reinventar-se nova. Nas academias  , a sabedoria se veste de  teorias. Ela nunca se mostra nua   nesses lugares. Quem a conhece apenas  vestida pode  até se tornar  um teórico , mas nunca será  um pensador ou poeta.

Tirésias então percebeu que ao se despir das teorias é como poesia que a sabedoria se mostra a quem  teve que se perder  para achá-la.

A   autêntica sabedoria  é fonte que renova a si mesma  para que em nós  não seque a vida.

                                                                                                                                                

“A palavra abriu o roupão para mim:

ela quer que eu a seja.” (Manoel de Barros )



-em homenagem ao poeta Cazuza ( falecido num 7 de julho, há 31 anos):



sábado, 3 de julho de 2021

o menino e a rainha da Inglaterra

 

Tempos atrás, um amigo me perguntou se eu aceitaria lecionar filosofia para seus dois filhos, um de 10 anos e outro ainda mais jovem. Aceitei. O curso era para durar 1 mês, acabou durando 1 ano. O mais velho se chamava Alexandre, carinhosamente rebatizado “Xandinho”. Certo dia , ele e o irmãozinho estavam brigados. Aproveitei para dizer ao Xandinho: “você sabia que ‘Alexandre’ significa ‘protetor da humanidade?’”. Ao ouvir isso, ele olhou para o irmãozinho e, sem dizer nada, o abraçou com cuidado .

Naqueles encontros, eu “ia até à infância e voltava”, como diz Manoel de Barros, e aquele que ia não era o mesmo que retornava. E o que voltava vinha de lápis de cor na mão, e aprendia que as ideias que valem a pena ensinar se deixam desenhar com lápis de cor. Algumas ideias eu ensinava falando, outras eu desenhava para eles colorirem: a forma era minha, mas as cores eram eles que escolhiam para pintar, com as mãos livres . E eles coloriam sempre multicoloridamente, nunca em preto e branco.

Perto do fim do ano, houve um feriadão. Toda a família desse amigo viajou para Londres, incluindo os dois meninos. No retorno, assim que entrei no apartamento, o pai pediu para o Xandinho me narrar o que aconteceu em Londres, mas o menino saiu correndo, como se tivesse feito uma arte, uma “peraltagem”, diria Manoel de Barros .

Eles foram ver, entre outras coisas, a cerimônia na qual a Rainha da Inglaterra passa à frente do público, e todos se ajoelham em reverência, olhos no chão. Então , o pai mesmo me contou o que aconteceu: quando a Rainha , cheia de pompa e ouro, passou diante deles, todos se ajoelharam diante de seu poder, exceto o Xandinho. Ele ficou de pé, de braços cruzados, firme, olhando diretamente para a Rainha, que virou a cabeça para olhar , espantada, o pequeno insubmisso. Quando a mãe indagou ao menino porque ele não se ajoelhou como todo mundo, ele respondeu : “Não ajoelho diante de quem é igual a mim”. Ao ouvir isso, a mãe disse ao pai: “acho que já está na hora de nosso filho parar de ter aulas de filosofia...”.

Nesse mesmo dia em que ouvi o relato, dei minha última aula aos garotos. No fim, o menino da peraltagem me perguntou: “Vai ter prova?”. Respondi: “Não , você já está aprovado. Com dez.”

 

"O homem seria metafisicamente grande

 se a criança fosse seu mestre." (Kierkegaard)



(em homenagem a todos os "Xandinhos" e "Xandinhas" que não se curvam, pois a  educação é para pôr de pé)

sexta-feira, 2 de julho de 2021

#3J : indignação e #forabolsonaro

 

Segundo Deleuze, há livros que  “sugam” nosso olhar para dentro deles, tornando nossos olhos meros apêndices da visão  de mundo deles. São livros que deixam nosso olhar muito teórico , porém sem sensibilidade política e crítica para “ler” a  realidade concreta que nos cerca.

Os livros mais necessários, ao contrário,  são aqueles que nos conectam  com a realidade   : eles nos situam ativamente no aqui e agora , porém sem nos fazer perder  de vista os horizontes, as aberturas. Livros assim nos ajudam a agir sobre o mundo, mais do que apenas teorizá-lo.

Assim são os livros de Espinosa. É desse filósofo  que vem a ideia de “indignação” que aqui interpreto. A indignação é um afeto que une os justos para que, juntos, multipliquem a potência de cada um na resistência e luta contra  as tiranias.

O ódio e a violência vivem de derramar sangue. Na mitologia , as Fúrias ,  Deusas  do Ódio e da  Vingança,  nasceram do sangue derramado ;   por isso, elas  têm sede para derramar mais sangue em troca, servindo assim à destruição e à morte.

Já a indignação intensifica o circular do  sangue nas nossas veias,  sangue que oxigena de coragem a vida. É por isso que a indignação nos leva às ruas, pois as ruas são as veias da vida coletiva : o oxigênio que transportam é  a liberdade, sem o qual a sociedade sufoca. 

O motor da indignação é o amor à dignidade, o apreço pela vida digna. Não apenas  a vida digna individual , sobretudo a vida digna coletiva. “Dignidade” vem de “dignus”:“nobre”. O contrário de nobre é “vil” , “vileza”.

A autêntica nobreza  não é ter posses ou propriedades , mas  agir para  tornar a vida nobre. Essa nobreza da dignidade foi poetizada  por um  homem do povo chamado   Angenor. Assim conta a história:  quando trabalhava  como operário numa obra,  Angenor colocava sobre a cabeça um chapéu muito simples e surrado, para assim proteger-se. Porém,  o modo digno como ele punha o chapéu e seu estilo nobre ,  levavam seus companheiros de obra  a dizerem : “Acorda, Angenor! Isso é um chapéu de operário, não é uma cartola!” E foi assim  que, do Angenor sonhador, nasceu o poeta Cartola :  a nobreza  vinha de seu ser, corpo e alma , não de posses.

Indignação é afeto que une os justos na defesa da vida digna e nobre. Enfim, nobre é tudo aquilo que potencializa a vida , como a educação, a arte e o conhecimento; e nobre também é sua defesa, sobretudo quando nos ameaça o fascismo e sua vileza.

Nietzsche dizia: “Só podemos destruir sendo criadores”. A indignação é arma coletiva para destruir tiranias, pois a move o desejo de construir democracia, isto é, vida plural e digna.




-  Na foto, as forças ditatoriais do AI5 ameaçando o poeta Cartola:





 

- Belo trabalho ( entre muitos) do amigo Paulo Malaguti Pauleira:





quinta-feira, 1 de julho de 2021

os filósofos e os livros

 

Quando Sócrates foi preso, os policiais rumaram à casa do filósofo para apreender seus supostos  “livros subversivos” , que os policiais  supunham muitos. Na  casa , porém , não viram nenhum livro, encontraram apenas a esposa do filósofo tentando esconder o choro diante dos filhos que, parando de brincar, indagaram aos  policiais: “Cadê meu pai!?”

Plotino quase não tinha livros em casa, embora fosse considerado o homem mais sábio  de sua época. Mas  seu lar era cheio de gente, inclusive crianças órfãs, as quais Plotino cuidava e alimentava , antes de ir   contemplar com amor  o céu.

Assim que Espinosa morreu, seus perseguidores  invadiram o quarto do filósofo, imaginando que ali havia mil livros “perigosos”  que Espinosa escreveu em parceria com o Diabo. Armados com tochas , queriam tacar fogo nos livros do filósofo. Mas  no quarto modesto, que Espinosa alugava na casa de uma família  simples, os fanáticos  do poder teológico-político encontraram apenas pouco mais de 100 livros, todos com sinais de que foram muito lidos, embora bem cuidados. Havia não só livros de filosofia e ciência, havia também livros de poesia. No centro da prateleira, aberto, encontrava-se  o livro “Sobre a Natureza”,  escrito pelo  poeta-filósofo Lucrécio, que dizia que o pior escravo é  o servo voluntário da superstição negadora do conhecimento.

Todo dia, no meio da tarde, Kant deixava sua biblioteca para ir deambular pelas ruas e praças de sua cidade. Como um dedicado aluno, Kant caminhava observando atentamente tudo, para aprender diretamente lendo o livro do mundo.

Certa vez, Wittgenstein rompeu com os livros, não queria mais saber de filosofia ; mergulhou numa angústia profunda, parou de ensinar. Quem o resgatou para o pensar foram as flores de um jardim que ele começou a cuidar. O filósofo redescobriu-se filósofo sendo jardineiro. Renovado, voltou a ensinar:   tornou-se professor de um jardim de infância para crianças pobres.

 

( imagem: “Sherazade”, obra-instalação de Sami Hilal  . Como a personagem feminina de “As mil e uma noites”,  que vence  com sua arte o misógino e autoritário “Sultão”, os livros se agenciam formando um fluxo que acha caminhos para seguir em frente. Acrescentei os versos de Manoel)