domingo, 29 de abril de 2018

o muro...


Cinco doentes graves estavam numa enfermaria. A única comunicação  com o mundo  exterior era uma pequena janela. Perto dessa janela cabia apenas uma maca, na qual  ficava um dos doentes a narrar o que acontecia lá fora. “Daqui vejo o mar , até sinto  sua brisa. Vocês também conseguem sentir?”, perguntava  aos outros doentes.  Apenas um  dizia  não conseguir sentir. Os que sentiam, recriavam  um mar na alma.No dia seguinte  prosseguia o paciente-narrador: “Daqui  posso ver e ouvir crianças brincando numa pracinha . Vocês também conseguem ouvi-las?” . O mesmo paciente que não sentira a brisa também não conseguia ouvir as crianças . Os outros conseguiam,e algo    dentro deles brincava também.Enfim, o paciente da janela  passava o dia a transpor em palavras a vida , de tal modo  que suas palavras viravam  remédio para quem as  ouvia.
Certo dia, porém , o paciente da janela emudeceu. Chamaram a enfermeira. Ela constatou, sem surpresa, que ele havia morrido; e só então os outros souberam que  ele era o mais doente . Todos queriam o lugar vago , mas aceitaram que para lá fosse o doente de  sensibilidade embotada . Só lhe fizeram uma exigência: continuar  as narrativas.  “ Farei melhor que o outro!”, gabou-se.
Quando ele  olhou pela janela, porém, ficou mudo...Perguntaram : “o que houve!?” Então, ele disse: “em frente à janela não há mar, paisagem ou praça. Há apenas um  muro cinza... Um espesso   muro cinza”, repetiu. Ele só conseguia dizer a palavra mais fraca e sem alma que existe : aquela que apenas repete o que está dado. Pois era verdade: sempre houve aquele muro. Instalou-se ali um silêncio resignado, a morte venceu.
O muro cinza é tudo aquilo que nos rouba a visão do horizonte, que é onde se vislumbra a virtualidade de novos mundos possíveis, que nos estão fora e dentro. Ver tais mundos requer outra concepção de verdade:uma verdade que transfigura o que está dado. “É preciso transver o mundo”, já dizia Manoel de Barros.












sexta-feira, 27 de abril de 2018

novo livro sobre Manoel de Barros




(trecho da Apresentação do livro)
O livro está organizado em duas partes complementares: a primeira nos faz conhecer um Manoel Pensador, enquanto que a segunda parte reúne artigos diferentes entre si, cuja unidade está na riqueza com a qual a obra do poeta dialoga com as mais diferentes artes. Dito bem simples, as duas partes falam da ideia e da imagem, do pensamento e do corpo. Ao modo de Espinosa, podemos ainda acrescentar: o que em Manoel nos faz pensar é o mesmo que nos faz sentir, visto de uma perspectiva diferente; e o   que nele nos faz sentir é o mesmo que nos faz pensar, visto de uma perspectiva diferente. É a junção dessas duas perspectivas que faz de Manoel um pop’filósofo.
A Primeira Parte busca no poeta o conceito ainda em rascunho, não mentado, nascido da artesania de Manoel: Uma sabedoria que não vem em tomos. Abrindo essa Primeira Parte se encontra o artigo de Samarone Marinho, O cotidiano primordial de Manoel de Barros. Samarone nos mostra, entre outras coisas, que a poética de Manoel se apoia em uma matéria: o cotidiano. Não o cotidiano da vida acostumada, “mesmal”. O cotidiano do poeta é um espaço de transfiguração e transvisão, no qual se descobre o valor do inútil e das desimportâncias. É nesse lugar, que também é um lugar de linguagem, que o poeta celebra as grandezas do ínfimo. O pensar do poeta não começa no Céu ou nas Abstrações, ele começa no cotidiano. E quem faz do pensar o seu cotidiano nunca mais pensa acostumado.
  No artigo seguinte, Geopoética de Manoel de Barros, em dois movimentos e um adagietto , o filósofo Paulo Oneto descobre que o chão de Manoel não é o da pedra nua e fria, mas o da terra úmida, íntima do fluxo das águas, águas estas que animam o chão do pantanal, fazendo-o território liso afim aos nômades, como Espinosa , Deleuze, Nietzsche e , antes de tudo, ao próprio Paulo, que musica esse heterogêneo fluxo, essa heterogênese. Tal geografia dos fluxos constitui uma música dos elementos que o poeta reúne, sem totalizá-los ou sistematizá-los. Por isso, a imagem escolhida pelo autor: os movimentos ou andamentos musicais agenciados ao poeta-andaleço. Música naturante, barroca, barriana.
No terceiro artigo, Manoel de Barros e a Desfilosofia, rascunho uma desfilosofia inspirada na poética de Manoel. A desfilosofia não é uma filosofia poética, tampouco uma poesia filosófica. A desfilosofia é filosofia, porém aberta à sua origem não conceitual, origem essa somente alcançável pela conexão com o prefixo “des”, aqui funcionando como um “agenciador conceitual” extraído da Oficina do poeta.
Fechando a Primeira Parte, no artigo De Viena ao Pantanal – o (in)expresso do pensamento no sentido do poético , o filósofo Antônio Jardim nos apresenta uma rica aproximação entre o filósofo Wittgenstein , um dos mais importantes pensadores da linguagem, e o nosso poeta. No diálogo do filósofo com o poeta, cerzido por Jardim,o tema não poderia ser outro: o que é o sentido?
A Segunda Parte reúne artigos cujo fio condutor é um afloramento de falas que a poética de Manoel suscita e provoca. São ensaios, didáticas da invenção manoelinas, formas em rascunho de ideias, perceptos e sensações, nascidos do agenciamento da poética de Manoel com áreas diversas, unidas ao poeta pelo olhar singular de cada autor.
Para não estragar a surpresa que tais ensaios/didáticas envolvem, deixaremos ao leitor a descoberta a ser feita no encontro com as despalavras da professora e pesquisadora Ieda Tucherman (Devires e revires e de corpos e palavras ou do supremo valor da inutilidade), da bailarina Mariana Hilgert (Ensaio poético-imagético ou um porta-retrato ), do poeta e filósofo Mário Bruno (Passarinhos de uma demolição) e do cineasta Gabraz Sanna (Pequena abertura para o deserto ).
Como Conclusão do livro, o pesquisador Luiz Henrique Barbosa apresenta um muito oportuno estudo cujo título nos lembra a singularidade incomparável do poeta: O não lugar ocupado pela poesia de Manoel de Barros na literatura brasileira.







a terra incógnita

O que se estabelece no novo não é precisamente o novo, pois o próprio do novo , isto é, a diferença, é provocar no pensamento forças que não são as da recognição, nem hoje, nem amanhã, potências de um modelo totalmente distinto, numa terra incognita  nunca reconhecida , nem reconhecível.
                                                                   Deleuze ( Diferença e Repetição)

O pensamento é o telescópio
de uma astronomia apaixonada.
                  Deleuze (As ilhas desertas)

Tudo me é belo, hoje; pudesse assim ficar! 
Para ver hoje assim, o Amor me deu lunetas.
Goethe 

O olho vê,
a memória revê,
a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.
Manoel de Barros


Quem lê um poema é como se de súbito ouvisse gritarem do topo do mastro: "Terra à vista! Terra à vista!" 
Mario Quintana 


À época do apogeu de Roma, foi  criada uma expressão muito singular, de um alcance quase que inesgotável. Essa expressão jamais poderia ter nascido entre os gregos, que pouco interesse tinham pelas coisas que não eram gregas.Como tudo que é singular e rico, é difícil definir essa ideia. Ela não é o Ser ou o Não-ser, a Forma ou a Matéria, a Essência ou a Existência. Todos esses termos já faziam parte da Gramática Filosófica herdada dos Gregos. Essa ideia inventada por eles não vem dessa gramática, pois ela expressa uma outra coisa: uma poética, uma poética filosófica.
A ideia em questão é : Terra Incognita. Atribui-se sua criação a Tácito ( séc. I dC), embora ela esteja esboçada também em Lucrécio.A Terra Incognita expressa no pensamento romano a necessidade de existir uma terra inexplorada. Eles que foram grandes exploradores e conquistadores de terras, acreditavam porém que existia uma Terra Incognita, inexplorada, desconhecida. E isso não era para eles uma dúvida, mas uma certeza. Não a certeza nascida de terras já conhecidas, como a terra da matemática e suas certezas exatas, mas uma certeza estranha, poética,quase uma crença, que os impelia a nunca aceitar o já explorado e conhecido.O principal efeito dessa crença:estimular a coragem para se aventurar.
As terras conhecidas podiam ser cercadas, sedentarizadas, codificadas, juridicizadas, medidas, reconhecidas...Mas a Terra Incognita somente podia ser imaginada,nomadizada,poetizada, sentida, pensada, desejada...e nesse desejo/pensamento que as vislumbrava não podia haver cercas, limitações, receios, recognições, contratos, potesta...Enfim, a Terra Incognita não podia ser medida ou conhecida com as lentes e réguas das terras conhecidas.
Terra Incognita, porém, não era um Eldorado, tal como cobiçaram os colonizadores, tampouco uma terra utópica, como sonharam os renascentistas. A Terra Incognita era uma heterotopia: um lugar (topos) diferente de todas as terras conhecidas. Não se a cobiçava por nela haver ouro. Mesmo porque o ouro pertence a terras exploradas. E de ouro os romanos não necessitavam.
Mas eles necessitavam de outra coisa para se manterem vivos, despertos,livres, em expansão. Não se podia fazer mitologia da Terra Incognita, exatamente porque ninguém sabia o que havia nela, nunca ninguém nela esteve. E foi a busca pela Terra Incognita que fez dos romanos os maiores exploradores.
“Inventar aumenta o mundo”, dizia Manoel de Barros. A Terra Incognita era uma terra inventada, um horizonte nunca alcançado ou alcançável, mas cuja busca fazia aumentar os horizontes do mundo. Essa ideia depois ganhou uma versão matemática, a famosa “incógnita X”, e propiciou a invenção da física e da matemática modernas. A Terra Incógnita também era chamada de terra anônimaterra de ninguém, terra onde se entra com a condição de devirmos imperceptíveisoutroninguém. Ela é , porém, a terra de todo mundo.Terra Comum, Terra Natal dos que se desterritorializam na aventura de ir além de toda cerca, limite, forma,fronteira. Não é a bússola que encontra essa terra incógnita, dela não há mapas. “Não sou da informática, sou da invencionática”(Manoel de Barros). Ela é a terra inventada como mátria de toda invenção.
Talvez essa Terra Incógnita não esteja apenas fora, mas também dentro daqueles que são incógnitas. Incógnitas são a potência e o desejo. “Ninguém sabe o que pode um corpo”, já dizia o incognitus Espinosa.
 Essa terra somente pode ser encontrada quando escapamos, fugimos das  fronteiras, sobretudo a fronteira que separa o conceito da poesia. Essa Terra Incognita hoje tem o tamanho do universo, do infinitamente infinito: aquele que se abre fora e dentro de nós, e que talvez sejam um só, desde que não nos esqueçamos da principal lição dos romanos a esse respeito: a Terra Incognita permanecerá sempre incógnita. A Terra Incognita não é a terra que amanhã será conhecida, pois as terras conhecidas nascem de haver Terras Incognitas.


Quando Proust diz : "Mais importante do que viajar para conhecer paisagens novas, é conhecer de forma nova a mesma paisagem habitual”, o primeiro conhecer e o segundo são iguais apenas na palavra, no nome, pois eles não expressam o mesmo ato, a mesma questão. A Terra Incognita talvez só possa ser vista por uma visão fontana , como dizia Manoel de Barros, uma visão que não vê o já visto acostumado; ao contrário, a visão fontana  é fonte do que vê, pois ela vê não o significado que as coisas têm, ela vê o sentido novo que as coisas podem ter.
         E o mais interessante de tudo: assim como o explorador/navegante, de luneta na mão, após enfrentar tufões e calmarias, tendo antes vencido o medo de dragões e abismos, e assim não tendo desistido de achá-la, lá do alto do seu posto grita: “Terra à vista!”, não será a mesma coisa que expressa o poeta quando , em versos, grita: “Vida à vista!” ?










quarta-feira, 18 de abril de 2018

o ouro do poeta

No poema “Achadouros” Manoel de Barros nos fala de uma senhora contadora de histórias que ele conheceu quando criança. Tal senhora dizia haver “achadouros” em Corumbá. Os “achadouros” eram buracos feitos pelos holandeses em seus quintais para esconder suas moedas de ouro, antes de fugirem apressadamente do Brasil. Durante muito tempo em Corumbá, movidos pelo desejo de encontrar tais tesouros , os homens escavaram quintais para ver se ali achavam ouro...
O poeta aprendeu a descobrir “achadouros” também, mas o tesouro que ele acha é outro : ele escava o chão escuro até achar “celestamentos” ; ele escava em si mesmo até achar o embrião de múltiplos outros; ele escava nos resignados olhos que imaginam já tudo terem visto até achar os “olhos de descobrir” de um devir-criança. E tudo o que o poeta acha, é a poesia mesma que, empoemando-o, põe nele ( para assim, quem sabe, acharmos tal ouro também em nós, ao lê-lo).




O homem, em última análise, somente acha nas coisas aquilo que ele mesmo nelas pôs. O ato de achar se intitula ciência; o ato de pôr se chama arte. Nietzsche




terça-feira, 10 de abril de 2018

evento: os 50 anos de maio/68



- evento acerca dos 50 anos de Maio de 68. Evento coordenado pelo Profº Leonardo Maia ( que contou com colaboração de Auterives Maciel, Paulo Oneto, Mário Bruno e minha). 



domingo, 8 de abril de 2018

a peraltagem...


Quando eu era criança, bem criança, meus pais eram pobres, porém podiam me dar de presente carrinhos simples  . Eu recebia tais brinquedos e os guardava, feliz e agradecido. Mas esses brinquedos e outros  não me faziam falta, pois eu gostava era de brincar com as próprias coisas, retirando delas os sentidos acostumados . Por exemplo, gostava de pegar o chinelo de meu pai e fazer de carrinho. Como carrinho lúdico, ao chinelo não faltava nada, pois estava em meus olhos a fonte de vê-lo outra coisa diferente desta que todos viam. Nunca me fizeram falta os brinquedos, enquanto eu soube brincar com o sentido.
Quando eu era criança , portanto, havia o carrinho de brinquedo e o brinquedo que eu inventava com a própria realidade.  Brincar com o carrinho de plástico era bom, mas brincar com o chinelo feito carrinho era mais do que brincar: era ato poético-político, ainda que inocente.
Hoje, penso que ser educador ou artista  é retornar àquele lúdico alegre e inocentemente subversivo, para assim reinventar novo sentido para esse real dado. Com alegria espinosista e peraltagem manoelina, quem sabe subverter  aquilo que os pouco imaginativos chamam de mundo objetivo , tristemente acostumado.



domingo, 1 de abril de 2018

espinosa e a flor de lótus

Sei de todas as espurcícias do mundo,
mas do que gosto mesmo é de circo.
Manoel de Barros

A palavra “fortaleza” nos faz imaginar algo cercado por muros espessos e elevados . Em sua Ética, Espinosa realça uma virtude chamada exatamente   fortaleza (fortitudo). Mas a virtude-fortaleza em Espinosa não tem muros ou cercas, embora seja dela que pode advir verdadeira  resistência e proteção.   
"Fortaleza" procede de "força". Alguns tradutores traduzem "fortitudo" como  "força de ânimo" ou “força da vida”.Tal força não se expressa apenas em termos de músculo. O contrário do ânimo não é a morte ou a doença, mas o des-ânimo.O oposto da vida não é a morte, e sim a vida enfraquecida em seu ânimo. A fortaleza-virtude tem força, mas não é violenta; ela tem potência, porém não é soberba.
Na sabedoria oriental considera-se a flor de lótus o exemplo de fortaleza: ela não tem muros a rodeando, porém a lama não a turva.  Não obstante a sujeira em torno, a flor ensina a como perseverar na dignidade e beleza. Ela ensina com sua existência, sem precisar de palavras . No Japão antigo, o candidato a guerreiro deveria passar por uma prova, que não era meramente teórica, acadêmica: ele deveria entrar na lama, perder vaidades e presunções, ficar nela por horas ou mesmo dias, e dela somente sairia de fato um guerreiro, uma mente  liberta,  se aprendesse a lição  da flor de lótus...

(cena do filme A saga do judô, de Kurosawa:  o aprendiz de guerreiro , na lama, aprende a lição da flor de lótus)