Na abertura do belíssimo filme Os girassóis da Rússia ,
de Vittorio de Sica, a câmera mostra um
imenso campo de girassóis aberto
ao horizonte ( postarei nos comentários essa
abertura ).
O
campo de girassóis parece não ter contornos, pois no horizonte seu amarelo se une ao azul do céu onde brilha o sol para o
qual se voltam os girassóis.
De
repente, a câmera parece que vai se fechando, diminuindo sua amplitude.
Porém, se olharmos o que acontece de outra perspectiva , veremos que a câmera
vai ampliando uma outra realidade que permanecia imperceptível enquanto
olhávamos para o todo.
À medida em que a câmera vai diminuindo de
amplitude extensiva, outra amplitude vai se mostrando aos nossos olhos: uma
amplitude expressiva. Agora, começamos a ver o que até então não víamos:
percebemos a existência de um vento contrário[1] que toca e agita a vida de alguns girassóis .
Enquanto olhávamos para o todo, não
percebíamos que um mesmo acontecimento,
o vento contrário , provoca reações diferentes em cada girassol distinto,
conforme a maneira de ser de cada um: determinado girassol suporta a
contrariedade do vento de
forma firme, como um estoico; outro se curva e parece que vai se quebrar,
triste.
Toda multiplicidade é heterogênea e composta
de partes diferentes, como a “multitudo” de Espinosa. Preenchendo a tela, agora
essas partes vão ganhando vida, realçando o seu jeito , sua existência única.
Então, toda a tela é ocupada por três
girassóis, em seguida dois ,até que a câmera nos mostra um girassol. Esse
girassol único preenche toda a tela,
antes preenchida pelo todo.
Uma singularidade[2] pode
também preencher e preencher-nos, mas de maneira intensiva, expressiva. Pois a
realidade que agora vemos realça cores, texturas, sutilezas, molecularidades...
Saímos da realidade extensiva do espaço e entramos na realidade expressiva do afeto.
Enquanto víamos apenas as amplidões do espaço,
não percebíamos a realidade expressiva que cada ser único é.
Na linguagem do cinema, quando colocamos
algo em primeiro plano , não importa o que seja, esse ser assim ampliado expressivamente
torna-se um rosto[3], isto é,
uma realidade material na qual uma alma
, como uma artesã, esculpe o que pensa e sente.
Um rosto “desabre”, como diz Manoel de
Barros, o que por dentro sentimos e
pensamos.
Preenchendo a tela, o rosto do girassol mira
o nosso , e nele vemos dramas, desejos e afetos, como um espelho dos
nossos dramas, desejos e afetos .
Embora não possua cérebro e nervos, um
girassol é um ser vivo : ele também pensa e sente.
E seu rosto talvez queira nos dizer que ante os ventos ameaçadores e sombrios da história não
devemos nos curvar, e sim perseverar, com
todas as forças, voltados para a luz do sol.
“As intensidades do girassol são forças do tempo?”
(Cláudio Ulpiano)
“Um girassol se apropriou de Deus:
foi em Van Gogh.”
“Nas fendas do insignificante
ele procura grãos de sol.”
(Manoel de Barros)
[1] O tema dos “ventos contrários” é uma ideia presente nos estoicos.
[2]
Os medievais chamavam essa singularidade de “ecceidade”. Trazendo essa questão
para o campo onto-semiótico, Peirce designa essa realidade singular expressiva
de “Primeiridade”.
[3]
Deleuze, “A imagem-afecção: rosto e primeiro plano”, capítulo do livro Cinema
1: a imagem-movimento.
Não consegui achar o filme inteiro na web. Segue a abertura
e um pedacinho do filme:
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