sábado, 22 de junho de 2024

A singularidade

 

Na abertura do belíssimo  filme Os girassóis da Rússia , de Vittorio de Sica, a câmera mostra um  imenso campo de girassóis  aberto ao  horizonte ( postarei nos comentários   essa abertura ).

 O campo de girassóis parece não ter contornos, pois no horizonte seu amarelo  se une ao azul do céu onde brilha o sol para o qual se voltam os girassóis.

 De repente, a câmera  parece que   vai se fechando, diminuindo sua amplitude. Porém, se olharmos o que acontece de outra perspectiva , veremos que a câmera vai ampliando uma outra realidade que permanecia imperceptível enquanto olhávamos  para o todo.

À medida em que a câmera vai diminuindo de amplitude extensiva, outra amplitude vai se mostrando aos nossos olhos: uma amplitude expressiva. Agora, começamos a ver o que até então não víamos: percebemos a existência de um  vento contrário[1]  que toca e agita a vida de alguns girassóis .

Enquanto olhávamos para o todo, não percebíamos  que um mesmo acontecimento, o vento contrário , provoca reações diferentes em cada girassol distinto, conforme a maneira de ser de cada um: determinado girassol suporta a contrariedade do  vento   de forma firme, como um estoico; outro se curva e parece que vai se quebrar, triste.

Toda multiplicidade é heterogênea e composta de partes diferentes, como a “multitudo” de Espinosa. Preenchendo a tela, agora  essas partes vão ganhando vida,  realçando o seu jeito ,   sua existência única.

Então, toda a tela é ocupada por três girassóis, em seguida dois ,até que a câmera nos mostra um girassol. Esse girassol único  preenche toda a tela, antes preenchida pelo todo.

Uma singularidade[2] pode também preencher e preencher-nos, mas de maneira intensiva, expressiva. Pois a realidade que agora vemos realça cores, texturas, sutilezas, molecularidades... Saímos da  realidade extensiva do espaço  e entramos na realidade expressiva do afeto.

 Enquanto víamos apenas as amplidões do espaço, não percebíamos a realidade expressiva que cada ser único é.

Na linguagem do cinema, quando colocamos algo em primeiro plano , não importa o que seja, esse ser assim ampliado expressivamente   torna-se um rosto[3], isto é, uma realidade material na qual uma  alma , como uma artesã, esculpe o que pensa e sente.

Um rosto “desabre”, como diz Manoel de Barros,  o que por dentro sentimos e pensamos.

Preenchendo a tela, o rosto do girassol mira o nosso , e nele vemos    dramas, desejos e afetos, como um espelho dos nossos dramas, desejos e afetos  .

Embora não possua cérebro e nervos, um girassol é um ser vivo : ele também pensa e sente.

E seu rosto talvez  queira nos dizer  que ante os  ventos ameaçadores e sombrios da história não devemos nos curvar, e sim  perseverar, com todas as forças,   voltados para a luz do sol.

 

“As intensidades do girassol são forças do tempo?”

(Cláudio Ulpiano)

 

“Um girassol se apropriou de Deus:

foi em Van Gogh.”

“Nas fendas do insignificante

ele procura grãos de sol.”

(Manoel de Barros)



[1] O tema dos “ventos contrários” é uma ideia presente nos estoicos.

[2] Os medievais chamavam essa singularidade de “ecceidade”. Trazendo essa questão para o campo onto-semiótico, Peirce designa essa realidade singular expressiva de “Primeiridade”.

[3] Deleuze, “A imagem-afecção: rosto e primeiro plano”, capítulo do livro Cinema 1: a imagem-movimento.



 

Não consegui achar o filme inteiro na web. Segue a abertura e um pedacinho do filme:



 

 



[1] Os medievais chamavam essa singularidade de “ecceidade”. Trazendo essa questão para o campo onto-semiótico, Peirce designa essa realidade singular expressiva de “Primeiridade”.

[2] Deleuze, “A imagem-afecção: rosto e primeiro plano”, capítulo do livro Cinema 1: a imagem-movimento.

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