domingo, 29 de maio de 2022

a semente de Leibniz

 

O filósofo Leibniz dizia que se a gente prender uma semente na mão,  com o tempo ela apodrece. Mas se a gente plantar a semente, cuidar e cultivar, dela nascerá uma árvore. Da árvore plantada nascerão incontáveis frutos : dentro de cada um, uma nova semente.

Se a gente plantar essas novas sementes, delas nascerão outras árvores, cada uma com inumeráveis frutos, cada fruto grávido de novas sementes.

Naquela primeira semente havia virtualmente uma floresta inteira , uma floresta-potência, assim como  num recém-nascido  , por mais simples que seja, vive virtualmente  a humanidade enquanto valor vital que precisa ser cuidado e alimentado  para florescer.

Pois humanidade não é uma quantidade numérica como   rebanhos, mas uma potencialidade inseparável de nossa singularidade, e   que se cultiva com educação, afeto  e liberdade .

Para uma potencialidade florescer, da semente ou de uma criança, é preciso um exercício de cuidado e um espaço aberto livre de estreitezas. Quem descobre tal floresta dentro de si não aceita viver limitado por cercas : como diz Manoel de Barros,  mundos por criar desabrem dentro e saltam para fora , frutificam.

Dentro de uma ideia libertária   há sempre outras ideias, infinitas ideias, pois toda ideia libertária  é plural e múltipla, já nos ensinava Espinosa.

Educadores plantam ideias-sementes, obscurantistas se armam com  motosserras. Reduzindo a vida a mero negócio, os obscurantistas   só aceitam sementes que possam manipular como se fossem moedas. Então,  os obscurantistas derrubam as heterogêneas e múltiplas florestas , casa ancestral dos povos originários, deixando no lugar  apenas morte e deserto  .  Depois  cobrem esse deserto  com soja  homogênea parecendo um rebanho vegetal , para  assim  virar    óleo e fazer as engrenagens do Capital girarem ,  ou então farelo que só aos porcos engorda.

Ao falar da semente descobrindo-se floresta, Leibniz se refere simbolicamente à educação e ao seu papel crítico, criativo e emancipador.  Dentro da semente não está a floresta com suas árvores já prontas e individuadas, pois a floresta que existe dentro da semente é uma floresta em rascunho, uma floresta-embrião, que somente nasce se a semente for plantada em terra fértil e horizontada.

 Essa  floresta-potência é a riqueza multivariada da vida que nasce de si mesma e frutifica , ao mesmo tempo singular e plural.

 

“Poeta é ser que vê semente germinar.

Nas fendas do insignificante ele procura grãos de sol.” (Manoel de Barros).

 

“O grande segredo do regime  autoritário consiste em enganar os homens, travestindo o medo com o nome de religião , com o que se quer sujeitá-los; de modo que eles combatem por sua servidão como se se tratasse de sua salvação.” (Espinosa)


( imagem: “O semeador”/ Van Gogh)






quinta-feira, 26 de maio de 2022

a Mátria de Nise

 

Ontem, o miliciano vetou o projeto que, como forma de homenagem e reconhecimento,  sugeria inscrever o  nome de Nise da Silveira no livro dos “Heróis e Heroínas da Pátria”, livro distribuído nas escolas. O miliciano alegou que , por ter sido “comunista”, Nise não era digna de ser lembrada pela pátria. Isso me lembrou o que dizia Plotino: quando a treva quer apagar a luz, é a própria treva que assim  revela sua nulidade, seu nada...

Segue uma pequena homenagem à grande Nise :

Nise da Silveira  dizia que nossa saúde mental , ou a falta dela, depende  mais do que fazemos com nossas mãos do que daquilo que teorizamos com nossa mente .

Esse pensamento de Nise me lembra Espinosa . Depois de filosofar sobre o Infinito empregando a potência de sua mente, Espinosa sentia a necessidade de  empregar  suas mãos para polir cuidadosamente  lentes, como um simples artesão.   Vinha gente de longe para comprar as lentes, tal a qualidade delas. Mas Espinosa vendia somente o necessário para sua sobrevivência: suas mãos eram felizes em polir, não em contar dinheiro.

Creio que isso também explica a famosa frase de Espinosa: “Ninguém sabe tudo  o que pode um corpo.” Não apenas o corpo cuja uma das partes é a mão, pois o corpo de que fala Espinosa tem um sentido amplo e variado.

Por exemplo, o corpo do palavra. Ninguém sabe tudo o que pode o corpo da palavra antes de ela ser  empregada como  veículo de expressão educadora-libertária.

Ninguém sabe tudo o que pode o corpo social quando se agencia , democrática e coletivamente, para não se deixar dominar por tiranias. 

Ninguém sabe tudo o que pode um corpo, seja ele qual for, até alguém  ousar criar realidade nova empregando esse poder, essa potência.

Ninguém sabe tudo o que pode um fio, um simples fio aprisionado em um tecido, na forma acostumada de uma roupa, de um uniforme. Consegue  descobrir tudo o que pode o corpo de um fio aquele que  não veste uniformes e tem a alma nua, às vezes ao preço da dor,  como Arthur Bispo do Rosário.

Desfazendo a forma das roupas e uniformes com os quais o poder excludente o vestia,  Bispo do Rosário  desconstruiu  essas fôrmas , fôrmas físicas e simbólicas, até (re) descobrir o fio livre que ali estava preso.

Com sua mão sendo o instrumento para libertar criativamente sua mente,  Bispo do Rosário reinventou  um Fio de Ariadne para bordar sua  linha de fuga:  e por esse fio , Fio do Afeto,  nossa mente também se liberta , horizonta e sara.

( imagem: belíssimo livro que relata o encontro de Nise & Espinosa, dois libertários que sempre incomodaram os tiranos de ontem e de hoje. Nise & Espinosa nunca serão esquecidos por aquelas e aqueles que lutam por uma “Mátria Antifascista”, pois eles (re)vivem em suas palavras e práticas)




 https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/05/25/bolsonaro-veta-titulo-de-heroina-da-patria-para-nise-da-silveira

 


“Quem tem consciência para ter coragem

Quem tem a força de saber que existe

E no centro da própria engrenagem

Inventa a contra mola que resiste.


Quem não vacila mesmo derrotado

Quem já perdido nunca desespera

E envolto em tempestade, decepado

Entre os dentes segura a primavera.”


( “Primavera nos dentes”, de Secos & Molhados)



quarta-feira, 25 de maio de 2022

mineirinhos...

 

Há cerca de 35 anos, o miliciano de Brasília  se lançou na política com o seguinte lema: “Bandido bom é bandido morto”. Essa frase já era marca da milícia aqui do Rio de Janeiro. Não por acaso, o reduto eleitoral do referido indivíduo  era nas mesmas áreas ocupadas pela milícia.

Segundo esse “refrão miliciano”, o oposto de  bandido é o “homem de bem”. Ou seja, a ideia de “bandido” tem larga acepção, e também servia para designar aqueles que o miliciano   via como seus inimigos: os políticos de esquerda, os educadores que ensinam Paulo Freire, os Sem Terra, a Teologia da Libertação, os sindicalistas, o povo preto e pobre das favelas , os moradores de rua ( aos quais ele se referia como “vagabundos”), as lideranças dos movimentos de minorias...

Enfim, todos esses e essas ele estigmatizava  como “bandidos” que subvertiam os ideais  conservadores dos “homens de bem”, e completava:  “ A única solução para o Brasil é uma guerra civil que mate uns trinta mil bandidos...”

Hoje, desesperado em razão de sua situação nas pesquisas eleitorais , o miliciano de Brasília resolveu voltar ao seu refrão raiz para lembrar a todos o que ele sempre foi. Diante da chacina ocorrida ontem feita por “sua PM” , o tal indivíduo retomou seu refrão-miliciano: “Bandido bom é bandido morto”.

Inclusive, fazendo coro ao que costuma dizer  o miliciano , o chefe da PM disse que a culpa da chacina é do STF, que teria protegido os bandidos da favela ao impedir operação policial durante a pandemia.

Aliás , esse argumento não é novo: tempos atrás, a Globo fazia a mesma  acusação a Darcy Ribeiro e  Brizola por esses dizerem que assim como a PM não podia invadir apartamento na zona sul, também ela não pode meter o pé na porta de um barraco da favela, pois toda ação policial, não importa onde aconteça,  precisa de um mandato da justiça. Mas a Globo insinuava que essa medida civilizatória era “proteção a bandido”...

Não estou entrando no mérito da ação policial de ontem aqui no Rio. Mas é clara a sua utilização política-eleitoral  , inclusive com conotações escabrosas por parte do nome da operação ( que diz estar atrás do chefe dos “vermelhos”, referindo-se ao “Comando Vermelho”).

Além disso, nunca uma chacina pode ser considerada um “sucesso”, a não ser por objetivos tenebrosos  como aqueles do refrão miliciano.

Isso me lembra aquela crônica de Clarice Lispector na qual ela narra uma notícia de jornal que leu descrevendo  o assassinato de “Mineirinho” com vários tiros dados pela polícia: “o primeiro tiro já o acertou e  matou; o segundo tiro foi por vingança, o terceiro foi por ódio aos pobres, o quarto foi por pura maldade mesmo... e o último  tiro  me acertou”.

sábado, 21 de maio de 2022

os monstros...

 

Tempos atrás fui convidado para dar um curso de Direitos Humanos para as forças policiais da Bahia. Àquela época, essas forças policiais  eram consideradas as mais violentas do Brasil. Os policiais não estavam no curso porque queriam, e sim em razão de receberem benefícios ( frequentar o curso aumentava o soldo deles)  .

Quando entrei na sala no primeiro dia de aula, reparei que a maioria estava  armada , pois muitos vinham de operações policiais ou estavam indo para uma.

Antes mesmo de eu me apresentar, um agente de segurança me fuzilou com uma pergunta : “O senhor já subiu uma favela?” Respondi indo ao quadro para escrever  uma  frase de Nietzsche, que usei como escudo para me proteger daquele  fuzilamento feito com palavras preconceituosas. Foi esta a frase :  “Quando queremos lutar contra as monstruosidades que existem no mundo, devemos tomar o máximo cuidado para que nós mesmos não nos tornemos monstros.”

Depois respondi que não só já subi o morro de uma favela , como também já morei no alto  de uma: morei no Morro dos Macacos, em Vila Isabel, terra da Escola de Samba Vila Isabel, berço de poetas.

Morei lá quando era estudante de filosofia na UERJ, que fica ali perto. Também disse que várias vezes li Nietzsche e Espinosa no interior de um trem da Central do Brasil, e inúmeras  vezes também subi o morro com livros de filosofia e poesia na mão, pois são essas as armas nas quais acredito , e é com elas que luto.

Disse também  que esses filósofos e poetas agora me acompanham na sala de aula, na minha fala de professor. E que eu acreditava que potencializou ainda mais suas filosofias o fato de   Espinosa e Nietzsche   terem andado de trem e subido o morro  .

A monstruosidade de que fala Nietzsche não é apenas a violência física , a monstruosidade também é a brutal e desumana  injustiça social geradora de fome e miséria;  a monstruosidade também é a falta de creche e escola para as crianças da favela, roubando-lhes o futuro; monstruosidade também é a milícia que veste uniformes da polícia; monstruosidade maior é um presidente miliciano-genocida.

Quando o curso terminou, alguns  se desarmaram. Um deles, inclusive, me mostrou um quadro de aviso que ele havia feito com um pedaço de lousa  de  mais ou menos um metro quadrado . Ele me disse que ia afixar o quadro no mural de avisos da delegacia dele. No quadro feito por ele estava escrito: “Quando queremos lutar contra as monstruosidades que existem no mundo, devemos tomar o máximo cuidado para que nós mesmos não nos tornemos  monstros.”


(Imagem: “Morro”, esboço em duas versões que fiz, há muito tempo, tentando retratar , de forma simples, o morro. Eu morava numa casinha branca lá perto do Cruzeiro😉)



 

- Noel Rosa, o grande poeta de Vila Isabel, na voz de Bethânia:



- Chico & Noel:



quarta-feira, 18 de maio de 2022

Beckett & Marx

 

1. Quando eu fazia o antigo segundo grau, o diretor do colégio era simpatizante da ditadura. Eu e meus amigos queríamos organizar um Diretório Acadêmico, mas o autoritário diretor proibia.

Então, a gente pôs em prática um plano: fingimos  criar  um grupo de teatro, quando na verdade a gente empregava o espaço do auditório  para conversar sobre política, filosofia, artes , enfim, coisas que a ditadura proibia.

Quando o diretor vinha nos “patrulhar” , a gente fingia que estava ensaiando uma peça. Ameaçadoramente,  ele interpelava: “Cadê o roteiro!?”, e a gente respondia: “É Beckett : obra livre sem roteiro...” O diretor-autoritário ia embora desconfiado, enquanto a gente ria...

Certa vez  entrou no auditório um homem que a gente nunca viu antes. Após   colocar  um livrinho na mão de cada um de nós, o tal homem falou: “Isso parece livro, mas na verdade é chave para abrir algemas”.  E completou: “Não deixem ninguém ver vocês com esse livro...”Depois ele  se    foi como veio: incógnito.

Era um livrinho mimeografado, clandestino. Na capa estava escrito: “Manifesto Comunista”, de Karl Marx e Friedrich Engels.

Quando comecei a ler, levei um susto: eu não sabia que palavra podia ter  força  para pôr abaixo a ordem injusta mantida pelos homens poderosos...

Até então, na sala de aula nos eram apresentadas palavras que pareciam já estar mortas há muito tempo: nada diziam de novo e nem incomodavam o poder estabelecido.  Mas as palavras  do livrinho clandestino pareciam ter pernas, braços, coração, coragem...e um desejo irrefreável de mudar o mundo.

2.Marx dizia que sua filosofia visava realizar três reconciliações:

- A reconciliação do homem com a natureza : não só a  natureza externa, mas igualmente a   natureza que o próprio homem é e que se expressa em seu corpo. Assim, reconciliar o homem com a natureza também é reconciliar a mente com o corpo, a razão com o desejo, o intelectual com o sensório.

- A reconciliação do homem com o homem: essa reconciliação requer a superação imediata do capitalismo , que faz do homem “o lobo do outro homem”. Ao invés do “império do meu”,  criarmos  a “comunidade do nosso”.

- A reconciliação da essência com a existência: essa reconciliação pressupõe que se una  teoria pensante   e  práticas emancipatórias , para assim se vencer  as ideologias alienantes  e o  agir mecanizado mantenedores  desse  atual sistema desumanizado que  reduz o ser humano a coisa que se compra, vende, usa e descarta.

Somente com essas três reconciliações começaríamos, enfim, a História. Pois o que temos até hoje, segundo Marx ,  é apenas  trevosa pré-história   onde vigoram   a destruição da natureza, a coisificação do ser humano e a sujeição da feminina-Terra ao poder patriarcal e predador do Capital.

 

( este é um dos melhores livros de apresentação da vida e pensamento de Marx. Vivendo sob imensas dificuldades financeiras enquanto produzia sua obra, Marx alugava seu casaco durante o inverno para obter algum recurso e alimentar sua família )











domingo, 15 de maio de 2022

monumentar passarinhos

 

Em “Crime em castigo”, pela boca de um dos personagens do livro, Dostoiévski dizia que o corpo de Napoleão parecia ser  feito não de carne e osso , mas de bronze.  

Assim, quando Napoleão morreu ele se tornou finalmente  o que sempre foi: uma estátua dura e fria ,  um monumento de bronze erguido à loucura desmedida da ambição.

Curiosamente, quando pediram certa vez  a Manoel de Barros para que definisse sua poesia, o poeta disse: “Meus poemas são tentativas para monumentar passarinhos, arraias, ninhos, caracóis, formigas, coisinhas do chão...”

Em Manoel, monumentar não é exaltar Napoleões, mas dar dimensão existencial ampla a tudo o que é pequenino: “as grandezas do ínfimo”, explica-se o poeta.

Se em Napoleão o corpo é de bronze e a alma é bélica, em Manoel o corpo  é    potência poética acompanhada de uma  alma que fortalece  a nossa para outras batalhas, nas quais se luta por educação, arte e vida  digna.

Ao monumentar seus seres poéticos-pequeninos, o  poeta se engrandece,  se monumenta e permanece entre nós:  não como estátua morta, e sim enquanto criatividade que potencializa  nosso pensar e  sentir, monumentando tudo aquilo que o poder das armas , do dinheiro e da ignorância tenta destruir.

 

(Imagem: Manoel também foi “monumentado” na companhia de dois “pequeninos” : um passarinho no  ninho  e um caracol .  O poeta agora  se encontra numa simpática pracinha sob frondosa árvore. Enquanto o Napoleão belicoso parecia ter o corpo frio do bronze, Manoel-monumentado  faz até o bronze sorrir como gente , expressando   um coração generoso  que a todos recebe e aquece. A escultura é de autoria de Ique Woitschach)




-Luiz & Manoel:


sexta-feira, 13 de maio de 2022

diferença entre poder e potência

 

Poder não é a mesma coisa que potência. Poder vem do grego “cratos”, que significa “ação de dominar”.

O auto-crata quer  poder para dominar a todos, intimidando  com a força bruta fardada  e ameaçando  as leis;  já o demo-crata é aquele cujo poder vem da lei enquanto expressão do querer coletivo do “demos”, do povo. A lei domina sem tiranizar, é voz comum da multiplicidade, quando é regra democrática.

Já potência se origina de “potens”, “possibilidade”. Tudo aquilo que é possibilidade possui um movimento interno chamado “dýnamis”, do qual nasce “dinâmico” por oposição ao que é estático e imobilizante.

Por exemplo, a transformação da semente em árvore implica no movimento dinâmico que acontece no coração  da semente, enquanto  potência que  desabre,  para assim realizar a possibilidade que já está nela: seu devir árvore.

A vida é sempre dinâmica, já a  morte , em seus vários sentidos, é paralisante. É por isso que os reacionários estão sempre querendo paralisar  e imobilizar , pela ameaça ou pelo medo,  as dinâmicas criativas e potentes da vida individual e coletiva.

Somente a democracia permite que as potências e possibilidades de cada um se realizem  nas dinâmicas sociais emancipatórias  que constituem a vida da educação pensante e das práticas culturais livres, plurais.

quarta-feira, 11 de maio de 2022

o cuidado

 

Uma das frases mais famosas da filosofia é : “Conheça-te a ti mesmo”, de Sócrates. Mas a fala inteira de Sócrates diz mais ou menos o seguinte: “Conheça-te a ti mesmo, saiba que você é uma alma.”  Ou seja, Sócrates deixa de fora o corpo nesse (auto)conhecimento que ele ensina.

Que me perdoe Sócrates, mas gosto mais deste  pensamento: “Cuida de ti mesmo”, de Epicuro. E esse cuidado deve implicar nosso ser inteiro, incluindo nosso corpo.

Corpo não é apenas  músculos , corpo também é, sobretudo, terminação nervosa onde a alma encontra o corpo e se tornam unos. A sensibilidade pensante também é corpo.

Mas ter cuidado nesse sentido  não é ter medo ou receio e deixar de agir.  Não por acaso, Espinosa fez do cuidado o afeto básico de sua ética, pois o cuidado é o afeto que acompanha todo agir libertário.

 Todo cuidado é prática necessária que deve envolver tudo aquilo que é frágil. “Frágil” não é a mesma coisa que “fraco”. Frágil é tudo aquilo que precisa do futuro para crescer e alcançar sua plena potência e realidade.

Por exemplo, a semente é frágil : a árvore futura que está na semente apenas surgirá se a semente for cuidada, isto é, plantada, regada...E após o broto nascer, é preciso ainda cuidado para afastar as ervas daninhas. A criança também é frágil: ela precisa do cuidado da educação, do amor e do afeto para que ela se torne tudo o que tem a potência para ser.

Fraco, ao contrário, é tudo aquilo que precisa da força bruta para se impor. As ideias são frágeis, porém fraca é a mente que nos ameaça com intolerâncias; a palavra é frágil, mas fraca é a voz que apenas ameaça e berra, pois nada tem a dizer.

Frágil é tudo aquilo que depende do futuro, mas a prática do cuidado não pode ser deixada para amanhã: é sempre aqui e agora, já, que o cuidado se torna necessário, exatamente para que haja um amanhã.

terça-feira, 10 de maio de 2022

julgar e avaliar

 

De Aristóteles a Kant, o ato de julgar é considerado o ato mais  fundamental da razão. Julgar é unir um conceito a uma realidade individual que se quer conhecer.

Não apenas um juiz julga, um médico também julga quando elabora um diagnóstico, e assim determina que os sintomas que um indivíduo apresenta são os sinais de determinada doença ( ao julgar, o médico faz com que o conceito que ele aprendeu na faculdade opere concretamente na realidade). Visto sob esse  plano ideal,  médicos e  juízes não emitem opinião, eles julgam com a razão.

Porém, o julgamento pode se tornar mera opinião suspeita e tendenciosa quando, dentro do homem, o conceito cede lugar ao pré-conceito.

Quando isso acontece, a ignorância substitui o conhecimento, o ódio toma o lugar do esclarecimento, assim turvando a atividade de julgar, que então se torna mera opinião enquanto instrumento do preconceito disfarçado de “razão”.

A história recente revela  que o obscurantismo às vezes se veste com jaleco branco de médico  ou usa toga de juiz.  Assim são  os médicos que, pondo-se a serviço da ignorância negacionista , receitam  ivermectina contra a covid; ou então os   juízes sonsos e oportunistas que “julgam” a partir de suas preferências partidárias e preconceitos de classe contra os pobres, pretos e nordestinos.

Por isso, pensadores como Espinosa, Nietzsche, Deleuze e Foucault preferem o termo “avaliar” em vez de “julgar”. Avaliar é construir uma  crítica , crítica inclusive da própria razão quando se arroga em discurso “neutro” e apolítico. Quanto mais a razão se crê “apolítica e neutra”, mais ela escamoteia que tem lado: o lado do poder.

“A-valiar”  é determinar o valor de determinada prática , incluindo a prática de julgar , discernindo se ela é nobre ou vil, alimento ou veneno. Para assim  livrar  a justiça  dos juízes parciais  cujas sentenças  são  vis, e  defender a medicina dos  médicos negacionistas  que receitam veneno.

Avaliar não é apenas partir de conceitos teóricos, pois em toda avaliação também devem estar presentes afetos afirmativos, sensibilidades emancipadoras e pensares criativos que , sem negarem  a razão, alcançam realidades que o mero conceito teórico não alcança.

Julgar é uma técnica, porém avaliar é uma arte. Uma arte que conecta pensamento e sensibilidade, crítica e clínica, ideia e realidade, sempre visando potencializar a nossa ação sobre o mundo, aqui e agora.

O imperdível filme “Doze homens e uma sentença”  mostra que o ato de julgar não é imune aos preconceitos. E que a resistência ao julgar suspeito somente começa quando é despertada e posta em prática a ação de avaliar , e isso não se faz sem coragem e perseverança.


( infelizmente, não consegui achar o filme inteiro na web para postá-lo aqui. Na imagem, as duas versões do filme, ambas excelentes)







 

sábado, 7 de maio de 2022

canções para pensar, cantando

 

Quando eu fazia o antigo ginásio ( eu devia ter  10 ou 11 anos), a ditadura militar ainda dominava tudo com mão de ferro.

Mas uma querida professora de Língua & Literatura conseguiu, apesar da censura e treva dominantes no país, essa querida professora conseguiu nos despertar para o pensamento crítico e criativo, adotando um livro que trazia letras de música para a gente ler e interpretar, letras que faziam sentir e pensar.

Foi nesse livro que conheci a letra de canções  como "Janelas abertas nº 2" ,  "Construção" , “Pra não dizer que não falei das flores” e   “Roda Viva” , antes de ouvi-las  tempos depois na voz dos cantores e cantoras.

Canções   assim eram censuradas pelos sisudos milicos, que sempre me pareceram um tipo de ser que detesta música que faz a gente cantar junto.  Os milicos diziam , em tom de ameaça, que músicas assim  eram "subversivas" ( e eu, até ali, não entendia muito bem o que significava "subversivo"...).

 Então, foi como poesia que conheci essas letras. Na primeira vez que li essas letras-poemas naquela sala de aula de uma escola pública no subúrbio carioca, graças à resistência perseverante de minha querida professora, dentro de minha  cabeça aconteceu o que Deleuze chama de "noochoque" : um "choque de pensamento".

Foi a partir de então que a minha "pequena voz interior" , que ficava muda imaginando-se  sozinha naquele mundo de gente autoritária , essa minha voz encontrou na voz poética e pensante daquelas músicas o sentido e a força para cantar junto. 

Foi ali que descobri  o que até hoje não paro de redescobrir : que tudo aquilo que faz pensar e vence a opressão  é sempre subversivo . E quando os autoritários de ontem e de hoje nos querem calar, nada mais subversivo do que cantar junto.

 

 “Descanse  tranquilo onde cantam,

   os maus não cantam. ” (Schiller)

 

“Poesia é subversão da linguagem.” (Manoel de Barros)


"O que vemos não é o que vemos, senão o que somos."( Fernando Pessoa)







 


sexta-feira, 6 de maio de 2022

celestamentos

 

Em uma de suas obras, Cícero nos relata o “Sonho de Cipião”. Esse personagem sonhou que se elevou até às estrelas, e viu de perto o que não tem limites. Cipião viu as galáxias, o berçário dos astros e o infinito espaço que nenhum muro cerca.

De repente, Cipião lembrou-se do Império Romano tido como “dono do planeta terra”, e desceu o olhar para procurá-lo. Mas nada viu de tal poder imperial...

Cipião viu apenas o oceano azul, o pico das montanhas, o verde das florestas e , num horizonte, a lua se pondo, enquanto noutro o sol nascia trazendo um dia novo.

E foi então que Cipião sentiu um misto de vergonha e indignação: ele sentiu vergonha do Império Romano e indignação frente à pretensão do Imperador de se crer o próprio sol, como se  fosse o centro do universo.

Cipião compreendeu o tamanho dessa mortífera ignorância chamada Império e seu poder, que apequena servilmente os homens e os impede de levantarem a cabeça, os olhos e o pensamento para verem  o que de fato tem a grandeza que engrandece.

Até então, Cipião era um adorador do Império e beijava a mão do Imperador sempre que podia. Depois do que viu e aprendeu com o sonho libertário, Cipião se tornou um dos maiores opositores a toda forma de poder autoritário. Seu  sonho   teve grande influência nos sonhos utópicos do Renascimento.

Espinosa , por sua vez, assim chama essa visão libertária :  “ver as coisas da perspectiva da eternidade”. Cipião precisou sonhar para ter essa visão , ao passo que Espinosa a teve e  ensina de olhos abertos, para que  possamos abrir também  o nosso  de ver, conectando   o finito com o infinito, os olhos do corpo aos olhos do espírito.

Em Espinosa, “eternidade” tem por sinônimo aquilo que é “absoluto”. “Soluto” significa  “solúvel”: “o que se dissolve”; e “ab” tem por sentido  “não”. “Absoluto”: “o que não se dissolve”.

 Ver e sentir as coisas da perspectiva da eternidade também  é o que o poeta Manoel de Barros chama de “celestar”, enquanto processo poético, existencial  e pensante.

Ver a partir da perspectiva da eternidade nada tem a ver com colocar-se  “neutro” ou meramente “contemplativo”. Ao contrário, essa perspectiva potencializa o agir no aqui e agora, torna-nos  ativos,  mas sem perder de vista aquilo que realmente importa e nos horizonta e celesta , individual e coletivamente.

É preciso vermos a liberdade, a democracia e o conhecimento de uma perspectiva absoluta  , para que tenhamos força para resistir aos “poderes imperiais”, de ontem e de hoje,  que querem dissolver esses valores que “horizontam” e  “celestam” a vida.

 

“O pensamento é o telescópio de uma astronomia apaixonada.” (Deleuze)

 

( parte do que escrevi se inspira neste belo livro de Hadot. As referências que fiz a Espinosa, Manoel e Deleuze, a epígrafe, não se encontram no livro)

                              ("Não se esqueça de viver" é um verso do poema "Fausto 2", de Goethe)

quarta-feira, 4 de maio de 2022

o presente

No primeiro ano da pandemia (2020) perdi uma tia muito querida, uma segunda mãe para mim. Sei que muitas amigas e amigos passaram por uma dor assim , com perdas semelhantes.

No dia 4 de maio de 2021 , exatamente há um ano,  passei o dia pensando muito nessa minha tia, pois  ela sempre dava um jeito de entrar em contato comigo em todo 4 de maio, estivesse eu onde estivesse, pois 4 de maio é meu aniversário.

Na noite de 3 para  4 de maio de 2021 sonhei com essa minha querida tia, era o primeiro aniversário meu após seu falecimento.

No sonho, ela me dava de presente um pequeno vaso com duas folhas de Espada de São Jorge.  Ela não disse nada, mas seu gesto e expressão  tudo diziam...

A Espada de São Jorge  representa não apenas  luta contra a opressão ( tanto as opressões físicas como as  simbólicas), pois essa  espada  também simboliza proteção. Foi  com ela que São Jorge enfrentou o “Dragão da Maldade”,  como dizia o cineasta Glauber Rocha.

Atena, a deusa da sabedoria, também emprega uma espada assim nas lutas contra o monstro da ignorância  em suas obscuras e diferentes faces.  E Thêmis, a deusa da justiça, igualmente segura  uma espada assim, instrumento da dignidade.

A espada de São Jorge também é lança de Ogum-Zumbi que não se curva à Casa-grande; essa espada também pode ser  o fio de Ariadne com o qual Bispo do Rosário bordou suas resistências criativas; e libertário é  quem escreve tendo uma espada assim transformada em caneta,  lápis, giz.

A primeira coisa que fiz quando acordei no dia 4 de maio do ano passado  foi ir a uma loja de plantas aqui do bairro . Encontrei num cantinho um pequeno vaso com duas folhas de Espada de São Jorge . Elas precisavam de luz, água, enfim, cuidados. Eram as Espadas de São Jorge mais parecidas com aquelas que minha tia me presenteou desde a eternidade.

Todo dia cuido dessas Espadas de São Jorge e penso em minha querida tia. Elas cresceram rapidamente, tanto que precisei trocar de vaso para não impedir o horizontamento delas. De duas folhas que eram   , agora se multiplicaram: já são seis ! E hoje pela manhã , bem cedinho, notei que ganhei um presente:   outra folhinha nova está brotando...

Com perseverança diária, precisamos  regar  tudo o que precisa ser regado: planta, ideia, afeto, ação, liberdade. Para que em  tudo isso encontremos uma  espada, um instrumento de resistência e luta,  que nos proteja dos “dragões da maldade”...

 

(Imagem: “São Jorge”/ Kandinsky)









terça-feira, 3 de maio de 2022

a "Matrix"

 

A mídia corporativa ultimamente vem martelando que  o fascista está ganhando do Lula no mundo virtual. E o motivo dessa derrota seria  que a  campanha do petista é “analógica” , isto é, mais jeito de rua e praça do que rede social, ao passo que o fascista saberia empregar os meios digitais.

Mas  essa  análise tendenciosa quantitativista da mídia corporativa passa por cima das diferenças reais  qualitativas , tentando assim  escamotear sua posição ambígua atrás da pseudoneutralidade dos números.

Por exemplo, eles dizem que o fascista tem milhões de seguidores a mais que Lula; também apontam que o miliciano possui milhões de citações a mais e coisas do tipo.

Porém, a mídia golpista não esclarece  que muitos desses milhões de seguidores do fascista   são robôs comprados com dinheiro público, e  que esse mundo paralelo forma uma  rede de ódio semelhante a uma obscura “Matrix” negadora da  realidade .

Esse “a mais” numérico  que o fascismo tem é , na verdade, uma diminuição   da nossa qualidade política. Pois mais fascismo é menos democracia.

A mídia corporativa tenta vender a ideia de que o miliciano tem sucesso no mundo digital, ao passo que a campanha de Lula é retrógrada e arcaica por ser “analógica”.  O mundo analógico da rua e praça  é  tão arcaico , insinua a mídia de forma cínica, que nele ainda existem sindicalistas, direitos trabalhistas e luta de classes...

Mas essa mídia parece ignorar  que pobreza, fome e miséria não  são realidades virtuais , e sim analógicas.  Também devem ser analógicas as ações  reais que podem ajudar a vencer essas mazelas sociais , ações que devem envolver  solidariedade , empatia e consciência social .

 Essas ações analógicas progressistas, convergindo diferenças, são a principal  resistência  ao fascismo e sua mentalidade de  Neandertal, agora armada  com celulares.

A questão decisiva não passa pela diferença entre o “analógico” e o digital, e sim entre  a democracia e o fascismo ,  a pluralidade e o autoritarismo,   enfim, entre os defensores da democracia e aqueles que a querem morta, seja pela ameaça fascista , seja pela submissão do interesse público  aos interesses privados predadores, dos quais a mídia corporativa é a voz.  

 

domingo, 1 de maio de 2022

brincatividades

 

Quando eu era criança, meus pais  me presenteavam  com brinquedos simples, era o que eles podiam . Por exemplo, carrinhos de plástico.  Eu recebia tais brinquedos e os guardava,  agradecido.

Pois   brinquedos não me faziam falta, já que  eu gostava mesmo era de brincar com as próprias coisas, retirando delas os sentidos acostumados .

Por exemplo, eu gostava de fazer de  carrinho  os chinelos  e sapatos de meus pais. Brincando com as próprias coisas, eu subvertia seus sentidos e usos utilitários.

 Como carrinho lúdico, ao chinelo não faltava nada, pois estava em meus olhos a fonte de vê-lo outra coisa diferente desta que todos viam. Nunca me fizeram falta os brinquedos, enquanto eu soube brincar com o sentido que metamorfoseia e transfigura  a realidade.

Brincar com  carrinho era  bom, mas brincar com o chinelo feito carrinho era mais do que brincar: era ato poético-político, ainda que inocente,  para subverter  o sentido do que está dado.

Há uma diferença entre fantasia e criatividade. Imaginar que há monstros debaixo da cama é fantasia, e fantasia alimenta o medo. Mas jogar um lençol sobre a cabeça para brincar de fantasma, isso é criatividade que esconjura o medo. O fantasioso é refém de sua mente, já o criativo faz de sua  mente um meio para ressignificar o mundo.

Minha mãe era costureira. Os carretéis de linha  multicoloridos , os tecidos e suas texturas, o pedal da máquina de costura acoplado a uma roda que parecia a “Roda da Fortuna”, todos esses artefatos do mundo eu os via como  arte que convidava ao lúdico.

Muito antes de ler mitologia, creio que foi na máquina de costura de minha mãe que descobri o que era o Fio de Ariadne que se desdobra de um novelo. Pois sobre a máquina sempre havia um novelo imenso do qual se desprendia  um colorido fio de lã para se tecer roupa nova. Na minha imaginação de criança, eu achava que aquele fio era para tecer mais do que roupas,   eu imaginava que com ele uma aranha artista tecia suas teias.

 Na mitologia, “Ariadne” significa “aranha que tece.” Nietzsche dizia que a filosofia é Ariadne que tece linhas de fuga com fios  libertários.

Quando criança , eu sentia que meu brincar não precisava de brinquedo que o dinheiro compra, pois o brincar autêntico nasce de dentro e muda o sentido das coisas que nos estão fora.

Quando cresci, li no poeta Manoel de Barros algo que me ajudou a compreender esse processo lúdico-subversivo.

Manoel diz que a poesia nasce de uma brincatividade originária, brincatividade essa que existe antes da palavra. A brincatividade é estado existencial-poético, antes de ser palavra escrita no papel.

Quando essa brincatividade ganha nossos olhos,  ela se transforma num “transver o mundo”, para assim subverter seus sentidos costumeiros e os poderes dados.

Manoel de Barros faz poesia com essa  brincatividade que mantém vivo um  devir-criança como antídoto ao viver  "mesmal" e "acostumado".