domingo, 31 de outubro de 2021

usufructus

 

Certa vez, antes do início de uma aula, eu estava conversando com uma turma muito simpática e generosa comigo. Naquele dia, começava a primavera. E o assunto era este: a natureza. Então, de repente, uma aluna me perguntou: “Professor, qual sua árvore preferida?”. “Amendoeira”, respondi. Houve risos na sala, risos de humor. Até que outro aluno ponderou: “Mas professor, o fruto da  amendoeira nem se compara com os frutos do abacateiro, da macieira, da mangueira...rs...”

Também com humor, mas sem perder a oportunidade para  horizontar e empoemar à maneira de Manoel de Barros,  respondi mais ou menos o seguinte:

“A palavra ‘fructus’ significa algo que um ser , com seu esforço e arte, foi capaz de produzir. O ‘fructus’ é o que determinado ser possui de melhor. O verdadeiro  ‘fructus’ da amendoeira não é amêndoa , e sim a sombra. É uma sombra generosa , como uma imensa sombrinha da natureza. Protege do sol e igualmente da chuva. A amendoeira também é ótima para se construir balanços para crianças sob seus galhos, e suas próprias raízes servem de bancos para conversações ao abrigo  das intempéries.”

E continuei : “Nem sempre o fructus de um ser é visível , às vezes é preciso descobrir o que um ser tem melhor, isso vale para as amendoeiras e também para as pessoas. Este é o sentido de ‘usufruto’: saber achar e reconhecer o que um ser  tem de melhor, e que muitas vezes nos é oferecido sem pedir nada em troca, como a sombra da amendoeira, uma riqueza que não se mede em dinheiro.”

“Além disso, prossegui, gosto também da modéstia da amendoeira. Sua floração é uma das mais belas da natureza. Mas para não fazer inveja às outras árvores, a amendoeira floresce apenas durante um curto espaço de tempo, entre o crepúsculo e a aurora. Pensando mais em nós do que nela, sua floração é breve  para não nos deixar muito tempo  sem sua sombra. Discreta, segura de sua beleza , ela troca de roupa e mostra a riqueza de suas flores apenas  para olhos que sabem achar  belezas raras . ” 

Para ajudar na minha defesa das amendoeiras, mostrei à turma um dos mais belos quadros de Van Gogh: “Amendoeira em flor”. Creio que, naquele dia, a amendoeira ganhou novos admiradores...rs...😉


(Imagem: o quadro citado de Van Gogh)







sábado, 30 de outubro de 2021

nietzsche & manoel

 

Nietzsche diz que o homem pode passar por três metamorfoses :a do burro ( ou camelo), a do leão e a da criança.

O burro é aquele que diz “sim” ao que está dado: ele aceita, passivamente, os valores estabelecidos por intermédio dos quais o poder dominante se perpetua. Sua forma de aceitação é “oferecer as costas” para carregar, assim se entregando à “servidão voluntária” , nisso lembrando também um “gado”. É assim que o burro se sente “útil” : carregando o peso que em suas costas colocaram. Todos nascemos mais ou menos burros, pois carregamos , desde a infância , os valores de um mundo que já achamos pronto, dado.

Quando o poder diz que só se deve ensinar às crianças tabuada e gramática, e nada de artes e filosofia, o que ele quer é manter submissos seus carregadores também no futuro.

O leão pode nascer do burro quando este sofre uma metamorfose, aprendendo a dizer “NÃO”. Ninguém sobe no dorso de um leão: ele vê em tudo uma jaula onde querem prendê-lo. O leão é ferozmente crítico e cético, imaginando que ser potente é negar . O leão pode mais do que o burro, porém é incapaz de criar , pois para criar é preciso crer. E o leão em nada crê. O leão imagina que crer é ser como o burro que ele já foi.

Do leão pode surgir nova metamorfose: a criança, aquela que redescobre a força do “Sim”. Pois o Sim da criança não é como o sim alienado do burro. O Sim da criança sobreviveu ao não do leão, o incorporou como crítica, porém vai além dele, tornando-se afirmação de uma potência criativa .

A criança não carrega, como o burro; nem ruge e ameaça, como o leão. Ela libertou-se de todo peso, corre e dança, e há nela uma força mais poderosa que a dos dentes e garras.

O burro é refém dos valores do presente que o esmaga e aliena; já o leão nasceu quando este presente virou passado que o leão não quer mais que se repita. Mas a criança é , ao mesmo tempo, metamorfose no presente e libertação do passado em razão de uma crença ativa no futuro , uma “linha de fuga”, como criação de novas possibilidades para a vida, a despeito das forças obscurantistas que ameaçam retê-la.

Não se trata de otimismo ou esperança, mas de perseverança: “Só podemos destruir sendo criadores”. (Nietzsche)

Em Manoel de Barros, o devir-criança sobre o qual filosofa Nietzsche se torna exercício poético-brincativo, crítico e criativo,  da resistência.




 

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

cultura e educação

 

A cultura humana nasceu da prática de cultivo de três plantas cujo valor é também simbólico: a vinha, a oliveira e o trigo.

 A vinha é a árvore da qual  vem o vinho. Essa bebida está associada à festa, à alegria, a Dioniso. Pois festa e alegria também são partes daquilo que dá sentido à existência humana.

  Da oliveira vem o azeite de oliva. O azeite é tempero: ele ajuda a preparar  o alimento. De tempero vem “temperança”, uma das virtudes  fundamentais da ética. O azeite também é parte dos ritos sagrados de diferentes sociedades , pois ele é um   elemento que unge e protege .

E do trigo vem o  pão. O pão é o que mata a fome. Mas há também o aspecto simbólico do “pão”. Em latim, “pão” é “panis” , raiz do termo “companis”, do qual nasce “companheiro”: “aquele com quem dividimos o pão.” Há o pão que mata a fome do corpo, e há também o pão que alimenta a ação ( o pão da liberdade) , o conhecimento (o pão das ideias) e a sensibilidade( o pão das artes). 

A vinha e a oliveira podem  crescer sozinhas na natureza, isto é, sem precisarem ser cultivadas. Porém  o trigo é tão frágil, requer tantos cuidados, que ele somente cresce sendo cultivado pelas mãos humanas : mãos que cuidem, fertilizem...  E também saibam afastar as ervas daninhas. Em sua    “Odisseia”, o poeta  Homero compara a condição humana ao trigo.

“Cuidado” vem de “caute”: prática de proteger o que é frágil. Não porque seja fraco, e sim em razão de ser uma potencialidade que, para aflorar, requer que cuidemos. É por isso que o trigo é a semente que também simboliza a condição humana enquanto potencialidade. Toda  semente é frágil, assim como uma criança; porém o cuidado não pode ser frágil: precisa ser perseverante, potente. Não por acaso, “caute” é o lema da Ética de Espinosa.

Os inimigos da cultura sempre fazem culto da selvageria ( nos vários sentidos que essa palavra tem) . Quando a selvageria  domina,  a  semente atrofia e dela  nascem apenas inumanidades  que põem em perigo a condição humana e o terreno aberto e plural da cultura.

Do trigo não vem apenas o pão, dele também vêm o bolo, o macarrão, a farinha, as diversas massas...Enfim, múltiplas realidades  que  podem nascer  da potencialidade  que vive nele.

Semelhante ao trigo também é o homem: somente a cultura pode nele fazer aflorar o poeta, o cientista, o médico, o jardineiro, o professor, o cidadão, enfim, ele mesmo. Pois é a cultura o meio físico e simbólico para  o ser humano criar e dar um sentido a ele próprio, individual e socialmente.

Nesse sentido originário, cultura recebe também outro nome: educação.


                                  "Poeta é ser que vê semente germinar." (Manoel de Barros)

 

(imagem: “Campo de trigo”/ Van Gogh)





 


quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Dostoiévski e o inquisidor

 

“O Grande Inquisidor” é um capítulo  do livro “Os irmãos Karamazov”, de Dostoiévski. A história  se passa na Inquisição Espanhola, época das hediondas fogueiras a serviço   da  intolerância.

Em meio a tanta violência física e simbólica feita em nome de Cristo, o próprio  Cristo retorna, no meio do povo ( e não “acima de todos”).  Para que não houvesse dúvida que era ele, Cristo faz alguns milagres. Cristo queria assim lembrar aos homens  que sua luz nada tem a ver com a chama trevosa das fogueiras a serviço do ódio, da ignorância  e da morte.

Contudo, os soldados  da Inquisição  prendem Cristo, acusando-o de ser um perigoso subversivo. Cristo é preso e torturado pelas próprias autoridades religiosas que diziam falar em seu nome.

É na prisão que acontece o encontro do Cristo-prisioneiro com o “Grande Inquisidor”, chefe e símbolo do poder inquisitorial.

De imediato, o Inquisidor  se dá conta de que aquele prisioneiro era, de fato , Cristo. O Inquisidor questiona Cristo por qual razão ele retornou, alegando que agora era ele, o Inquisidor, que falava em nome de Deus.

O Inquisidor  recrimina Cristo por ter amado os homens julgando que isso os libertaria, e diz  que a única maneira de salvar  os homens é fazê-los renunciar voluntariamente à liberdade,  despertando neles o medo e a obediência.

O Inquisidor dizia que não podia deixar que Cristo retornasse para amar os homens de novo, pois isso poderia despertar nos homens um amor por eles mesmos, amor esse que sempre vem acompanhado do desejo de ser livre e pôr a liberdade em prática, ameaçando assim a Ordem Estabelecida e seus Reis, Tiranos, Monarcas.

Por fim, ele  ameaça dizendo  que usará seu poder de Inquisidor  para mandar erguer  a fogueira na qual , em nome de Deus, arderá o próprio Cristo-prisioneiro.

“Por ordem minha, essa fogueira  será acesa por aqueles mesmos que você quer salvar”, disse o Inquisidor. E completou: “Os homens só querem de você milagres, não querem a liberdade; com meu poder, eu ofereço a promessa de que toda a felicidade que eles desejam a terão em outra vida, desde que essa miserável vida deles de agora seja de obediência  cega a mim.”

Durante toda a fala do Inquisidor, o Cristo-prisioneiro permanece em silêncio, o que deixa o Inquisidor  possesso , berrando furioso.

Até que Cristo se levanta e se aproxima do Inquisidor, que fica assustado temendo receber um tapa. Mas Cristo chega bem perto e beija de leve o  Judas na boca, e assim o cala.

Ainda em silêncio, Cristo chega à porta da prisão, que então se abre, assim como todas as correntes.

Antes de sair, Cristo se volta e olha para o Inquisidor. Queimando no inferno  do seu próprio ódio , o Inquisidor diz suas últimas palavras ao Cristo: “Vá, e nunca mais volte...”


“Dostoiévski é o único psicólogo com quem tenho algo a aprender." (Nietzsche)


"O que é inferno? Afirmo que é o sofrimento de já não poder amar.”(Dostoiévski)


(estarei neste evento)


Para maiores informações:




domingo, 24 de outubro de 2021

Espinosa e os dois pães

 

Uma das palavras com origem mais bela e rica é a palavra “companhia”. A raiz dessa palavra é “panis”, “pão”. Assim, “companhia” é :  “trazer consigo o pão”.  “Companheiros”: “aqueles que dividem entre si o pão”.

Mas dizem que há dois pães: o que alimenta o corpo e o que alimenta o  espírito. O pão que mantém o corpo vivo é feito de trigo, sal, fermento; já o pão que alimenta o espírito é composto de ideias e  afetos , que também são fermento. Sem esse pão plural , o espírito morre de fome.

Os elitistas cinicamente defendem que o povo quer apenas o pão que alimenta o corpo, e que ele já se contenta apenas com as migalhas e sobras desse pão. Assim são as políticas eleitoreiras desses cínicos : migalhas ao povo, para assim perpetuar a submissão.

Mas pensando com Espinosa essa questão, não há dois pães, um material e outro espiritual, um materialista e outro espiritualista. Há apenas um pão. O pão que alimenta o corpo é o pão mesmo que alimenta o espírito, visto sob outra perspectiva; e  o pão que alimenta o espírito é o pão mesmo que alimenta o corpo, visto de outra perspectiva.

Não há economia separada da política:  inexiste  diminuição da pobreza e da desigualdade sem democracia e educação.

Quem acumula o pão material e não o divide, também é quem imagina que cultura e artes são só para a elite. Por outro lado, partilha de verdade o pão que alimenta o espírito quem age concretamente para que, socialmente, seja partilhado o pão que alimenta o corpo .

Partilhar o pão que alimenta o corpo não é dar esmola, muito menos restos e sobras. Por mais ricos e belos que sejam os pães que alimentam o espírito, este deve ficar indignado e  ainda com fome, fome de justiça, enquanto houver um outro ser humano procurando comida no lixo.

sábado, 23 de outubro de 2021

Gláuber e Brizola...

 

Desde criança, sempre gostei muito da madrugada, esse espaço que não é mais o ontem , porém ainda não é o amanhã. A madrugada também já não é mais o “tarde da noite”, contudo não é ainda o “muito cedo”. 

A madrugada é depois do tarde e antes do cedo. Ela está  entre o dia que se foi e virou passado  e a aurora que vem de um esperado dia futuro. A madrugada  é um espaço desterritorializado e desterritorializante, tal como os estados nos quais nos coloca a arte: entre a noite e a manhã, o passado e o futuro. Onde muitos dormem, o artista persevera, tentando ficar  desperto e antever auroras...

Pois bem, creio que essa minha atração pela madrugada começou quando eu , ainda criança e durante as férias escolares, fazia companhia à minha mãe. Ela era costureira. Após a jornada diária de cuidados com a casa e filhos, ela ainda arranjava forças para costurar na madrugada. A vida  a isso exigia, era difícil...

Então, eu ficava lhe fazendo companhia  , geralmente assistindo televisão. Àquela época , passavam muitos filmes bons na madrugada, filmes de qualidade. Como eu estava de férias e não tinha aula, ficava até tarde acompanhando  minha mãe , para que ela não ficasse sozinha, e assistindo filmes de arte -  e à  arte também aprendendo a fazer companhia, desde então.

Até que houve uma madrugada em que minha mãe  me ouviu  dando uma gargalhada, como se eu estivesse brincando. Ela perguntou: “Meu filho, tem desenho a uma hora dessas!?”

Na verdade, eu estava vendo , pela primeira vez, o cineasta e pensador Gláuber Rocha. Era num programa chamado “Abertura”, o primeiro programa que , ainda sob a ditadura, abordava abertamente política, artes e cultura. O programa passava na madruga , esse espaço livre. Talvez os milicos tenham  imposto esse horário para que ninguém visse o programa.

Mas eu o descobri e vi.... Não entendia muita coisa do que o Gláuber falava, eu era muito criança. Porém, eu era tocado profundamente pelo seu jeito intempestivo, parecendo um cometa. Até hoje, quando assisto a um filme de Gláuber, parece que revivo aquele espaço entre a treva autoritária e o futuro da democracia, hoje ameaçada por esse presente infame no qual estamos.

Gláuber estava entrevistando um homem do povo chamado “Brizola”. Vale muito a pena assistir a essa  “arqueologia” de nossa subjetividade coletiva,  à luz de tentarmos compreender como chegamos aonde chegamos.





sexta-feira, 22 de outubro de 2021

filosofia e poesia , crítica e clínica

 

A palavra “clínica” significa: “chegar perto, debruçando-se”. O bom médico é sempre um clínico: ele chega perto para melhor envolver de cuidados o corpo e a mente de quem   ele cuida, para fortalecer a saúde e pôr longe a doença.

O mau médico , ao contrário, não envolve  e nem chega perto : mantém o paciente à distância, reduzindo-o   à condição de objeto , como meio para acumular dinheiro ou fazer “inumanas experiências”, como no nazismo e na  Prevent Senior, cúmplice do genocida.

Já a palavra “crítica” vem do ato de “avaliar”, enquanto prática de  estabelecer o valor das coisas e se posicionar.

A clínica complementa a crítica e impede que esta seja apenas uma atividade reativa de destruir ou negar: “só podemos destruir sendo criadores”, ensina clinicamente  Nietzsche.

O bom médico destrói a doença afirmando a saúde: é em favor da saúde que ele age e se posiciona, pois diante da doença torna-se  cúmplice dela  quem crê em neutralidade.  O mesmo se aplica às doenças políticas que põem em perigo a saúde democrática.

A arte e a filosofia nada são se não forem , antes de tudo, práticas críticas e clínicas.  A autêntica crítica , enquanto avaliação da vida,  também tem que ser  clínica : criação curativa  de novos modos de vida.

Filosofia e artes são críticas e clínicas quando nos envolvem com ideias e afetos que , além de nos ensinar e afetar, também são remédios que fortalecem nossa saúde, tanto a do corpo quanto a do espírito. Pois  saúde é potência crítica e clínica, como arte de avaliar e criar .

Deleuze é  filósofo-oftalmologista : ele nos  ensina a ver melhor tanto o que está perto quanto o que está no horizonte, o micro e o macro.

Nietzsche é  filósofo-fisioterapeuta: ele cuida da potência do corpo, para que este possa livremente andar, correr ou dançar, nunca aceitando  se prostrar de  joelhos.

Bergson é  filósofo-pneumologista: ensina nosso pulmão a encontrar o ar do possível , para que a gente não sucumba ante realidades sufocantes.

Fernando Pessoa é  poeta-cardiologista: com ele aprendemos  que o coração também pensa.

Clarice é  escritora-fonoaudióloga: prepara nossa garganta  para que por ela  falem vozes que a gente  nem sabia que tinha.

Espinosa é  filósofo-nutricionista: potencializa  o saber enquanto sabor que descobre o gosto que cada coisa tem: se é alimento ou veneno, bom ou mau.

E Manoel de Barros é poeta-pensador-clínico geral: empoemando-nos, sua poesia nos auxilia  a  manter nossa  saúde vital em dia, pois só com a saúde em dia temos força para lutar.


“A literatura é uma saúde.”(Deleuze)


“Mesmo muito doente, jamais fui doentio.”(Nietzsche)


“Os delírios verbais me terapeutam.” (Manoel de Barros)









quarta-feira, 20 de outubro de 2021

evento / Dostoiévski

 Estarei  neste evento.




Texto de Leonardo Guelman / Diretor do Centro de Arte UFF

@centrodeartesuff - Vem aí o projeto 200 Dostoiévski!!

De 8 a 12 de novembro de 2021, o Centro de Artes UFF celebrará os 200 anos do escritor russo Fiódor Dostoiévski. Já ouviu falar nele? (Ou: já leu algum livro dele?)

Autor de obras importantes da literatura mundial, como Crime e Castigo, O idiota, Os Demônios, Os irmãos Karamázov, entre outras, Dostoiévski influenciou muitos escritores e artistas não somente na Rússia, mas em todo mundo, inclusive no Brasil.

Fruto de uma vasta pesquisa curatorial, o projeto 200 Dostoiévski reunirá artistas e pesquisadores que trabalham temáticas pertinentes à escrita dostoievskiana, entre as quais estão a multiplicidade das questões culturais, o comportamento humano e a psicologia, a razão e a loucura, a religião, a política e a moral.

E por que o Centro de Artes vai celebrar os 200 anos de um escritor russo?

Revisitar a obra de Dostoiévski em 2021 é atender a uma reflexão necessária e atual, pois além de ampliar nosso horizonte de perspectiva em meio a uma sociedade tão conturbada, estabelece um diálogo permanente com questões universais no que se refere à humanidade.

Fique atento que vem coisa boa por aí!

terça-feira, 19 de outubro de 2021

manoel & deleuze

 

O poeta Manoel de Barros diz que aprendeu a fazer necessárias “desaprendizagens” com o pintor Miró. Foi assim:  embora Miró desenhasse de maneira  precisa e técnica, essa mesma técnica virou uma prisão que impedia o nascimento de  um mundo  novo que Miró desejava  criar. Esse mundo novo não cabia na  forma “acostumada” que se tornou  Miró e seu  pintar .

Já crescia virtualmente no pintor a alma nova, porém faltava um corpo para ela. Apesar de ter reconhecimento e  sucesso , Miró  entrou em crise, parou de pintar: ao invés de nascer, a alma nova corria o risco de abortar.

Miró desistiu da arte, mas a arte não desistiu de Miró: quando tudo parecia perdido, certa vez  Miró começou a rascunhar com lápis de cor usando   a mão esquerda, mão que ele nunca usava . Era um rascunhar “brincativo” que alcançava realidades ainda não formadas, ignoradas pela mão direita.

Essa mão esquerda nada sabia de cartilhas ou fórmulas de sucesso, como sabia a mão direita. Nunca a mão esquerda ficou arrogante se achando poderosa; tampouco segurou, ostentando, prêmios e títulos, como se habituou a segurar a mão direita  .

Se a mão direita adquirisse a capacidade de falar e alguém lhe perguntasse qual a opinião dela sobre a mão esquerda, com certeza ouviria: “ A mão esquerda é perigosa:  quer tirar o poder que conservo, ela é  subversiva!”.

As duas mãos tinham a mesma idade biológica, mas era a mão esquerda o corpo novo que a alma nova exigia .

Ao começar a desenhar com a mão esquerda, o artista descobriu-se novamente criança nessa mão : cada desenho era o desenhar de novo nascendo , fazendo-se como novidade, experiência e descoberta.

Ao desaprender o  “mesmal” da mão direita, Miró  redescobriu mais do que a potência da  pintura : reencontrou a alegria da criança cujo brincar e inventar é a coisa mais séria e verdadeira.

 A mão esquerda criava mais do que cores e  formas:  ela  criava para Miró   necessárias  “natências”.

É assim que Manoel, aprendendo a lição de Miró,  resume seu exercício perseverante de natências : “Poesia pode ser que seja fazer outro mundo.” O poder estabelecido escreve suas cartilhas com a mão direita ; porém a arte de se reinventar só a pode desenhar um instrumento não domado: a mão esquerda .

A mão direita se liga a uma metade do cérebro apenas , já a mão esquerda se liga à outra metade do cérebro e ainda ao coração inteiro que, assim como ela, também está do lado esquerdo.

Tive a alegria de participar desse projeto do Marcos e do Mateus . Deleuze & Manoel: filosofia e poesia nascidas da libertária mão esquerda. Partilho aqui o convite. 

https://open.spotify.com/episode/4FnO10MMWRCPppVUDvPRFQ?fbclid=IwAR05IzjS1NvkISUTtbToETUNY6N6hKqIuPCMYUl8eWTyZtKteDf7Thz4Q2Q





domingo, 17 de outubro de 2021

a academia, o liceu e os jardins

 

Na entrada de sua  Academia, Platão afixou a seguinte placa: “Não entre aqui quem não for geômetra”. Isso porque na Academia só se estudavam coisas exatas:  artes  e poesia eram barradas na porta. 

Já Aristóteles criou o “Liceu”. Aristóteles preferia a biologia à matemática, e dizia  que na natureza impera também uma Ordem,  não menos  que na matemática. Para provar sua teoria, Aristóteles recolhia do jardim flores  de uma mesma espécie e dizia: “apesar de cada indivíduo ser diferente, todos nasceram de um mesmo molde : tudo o que existe se subordina a um Padrão". Quando algum aluno mais curioso e questionador aparecia com uma flor única e rara, Aristóteles tomava a flor da mão do aluno e atirava no lixo, dizendo que a diferença e a singularidade eram um erro , uma anomalia da natureza.

Havia um ponto comum entre Platão e Aristóteles: suas escolas ficavam perto do centro da cidade, próximas ao mercado.

Muito diferente era a escola dos estoicos, cujo nome se origina   de “stöa”: “portal”. Esse nome expressava o lugar no qual os estoicos abriam suas escolas: como as cidades no passado eram muradas, os estoicos escolhiam abrir suas escolas perto do portal da cidade, lugar de passagens e aberturas. Segundo eles, deve ser isto a educação: um lugar de abertura para vencermos os  muros que limitam e cerceiam. A escola  estoica era uma abertura ao cosmos, ao outro, ao corpo, enfim, à diferença: perto da Vida incercável, longe do mercado que em tudo põe um preço.

Epicuro, por sua vez, ensinava em jardins. Em vez de construir jardins em prédios de escola, Epicuro fazia dos jardins uma escola.  Enquanto Aristóteles impunha um   Padrão, Epicuro ensinava aos alunos a verem as coisas únicas . Aristóteles alfinetava num quadro borboletas mortas, ao passo que  Epicuro caminhava com seus alunos por entre borboletas voando livres. E a flor  diferente que Aristóteles jogava fora e expulsava de sua Ordem Homogênea, Epicuro a salvava e cuidava, e com ela ensinava sobre a diferença. Ser educador, para Epicuro,  era ser uma espécie de jardineiro em cujo jardim florescem flores raras.

Academia e Liceu são os nomes , até hoje, das instituições de ensino. Mas e as práticas educacionais dos estoicos e Epicuro, elas  desapareceram?  Foram extintas?

Creio que elas ainda permanecem vivas quando recriadas  nas práticas educacionais libertárias que abrem portas e cultivam a heterogeneidade : para que horizontamentos   e jardins plurais vivam ,e resistam,  na sala de aula.


“Borboleta é uma cor que avoa.”(Manoel de Barros)


( imagem: “Jardim florido com caminho”/ Van Gogh)





sexta-feira, 15 de outubro de 2021

dia dos professores

 

Tempos atrás, numa bela manhã  de outubro, vi passar um senhor bem idoso, porém firme e altivo.  Vê-lo fez reviver dentro de mim uma palavra que há muito  eu não  dizia. Foi a “potência-alegria” de que fala Espinosa o que senti ao saber   que tal palavra  ainda em mim  vivia , à espera  de reencontrar aquele a quem ela designa e nomeia.

 Essa palavra não estava escrita no meu cérebro onde se acumulam teorias, ela  estava guardada em meu coração ,lugar do Afeto,  junto à lembrança dos seres que conheci e que me tornaram o que sou.

Foi então do coração que a palavra veio subindo, já com pleno sentido, embora ainda sem se vestir com o som. Quando ela chegou à minha boca, tornou-se voz e chamou: “Mestre!”.  Aquele senhor era um querido  professor que tive há muito tempo. Coincidentemente, o Dia dos Professores estava próximo...

Ele me reconheceu , sorriu e estendeu a mão para  mim, encontrando  a minha que já lhe estava estendida  desde a primeira aula dele que assisti .  Não sei ao certo quanto tempo conversamos, o durar do afeto não o mede relógios.

Quando nos despedimos, fiquei parado vendo-o ir, e pensei: “Será que ele sabe o quanto foi importante em minha vida?”

Antes de ele ir, olhei  seu rosto e tive a impressão de que ele também estava a   recordar-se do mestre que teve e que o inspirou a ser mestre, e por isso ele entendia minha gratidão. E esse outro mestre do mestre, se vivo estiver, também deve estar se lembrando, hoje,  daquele que o fez mestre: “O aprender vem antes do ensinar”, lembra-nos Deleuze.

O autêntico professor gosta de ensinar porque, antes, amou aprender com aquele que lhe ensinou  lições que não  estão apenas  em livros, mas também nas ações.

Creio  que nos tornamos professores quando o mestre que nos fez mestre não vive  apenas fora, ele passa a viver  dentro da gente, e com ele continuamos a aprender , mesmo  enquanto ensinamos.

Por isso, hoje também é dia de cada professor se lembrar daquele do qual foi aluno no aprendizado do mundo e de si mesmo. Pois essas lições são o conteúdo vivo de toda aula que, crítica e criativamente, renova o sentido emancipador , singular e coletivo, da educação.

Assim,  apenas  sob certa perspectiva aquele meu antigo mestre se afastava de mim,  sob outra perspectiva ele nunca de mim saiu  desde que , com suas aulas, em minha vida entrou , passando a viver na companhia de  outros queridos  mestres que igualmente entraram  em mim e me tornaram o que sou : a  Professora Nadyr ( minha primeira professora de filosofia e quem me libertou), o  inesquecível Cláudio Ulpiano, o generoso Luiz Alfredo Garcia-Roza , o grande Gerd Bornheim e o sábio   Junito Brandão : “O melhor de mim sou Eles.”(Manoel de Barros)

Um abraço às professoras e professores por  seu dia!

 

( imagem: o professor Deleuze na companhia de alunas e alunos)



quinta-feira, 14 de outubro de 2021

bicentenário de Dostoiévski

 Em novembro próximo, estarei participando de evento na UFF em comemoração ao bicentenário de Dostoiévski. Entre outros assuntos , comentarei o texto (atualíssimo...) de Dostoiévski que serve de base a esta peça de teatro :

https://vimeo.com/578066425




terça-feira, 12 de outubro de 2021

o devir-criança do poeta

 

Quando fez 80 anos, o poeta Manoel de Barros recebeu pedido   de um editor para que escrevesse três memórias: da infância, da vida adulta e, sobretudo, da velhice. Com sua avançada idade, o editor supunha que o  poeta teria muito a dizer sobre si e aconselhar aos outros, principalmente aos jovens. 

Passado algum tempo, o poeta enviou ao editor o primeiro livro: "Memórias da primeira infância".  Em todos os sentidos, o livro foi um sucesso. Tempos depois, Manoel enviou novo livro ao editor: "Memórias da segunda infância". Como diz Manoel, poesia é saber que “não vem em tomos” . Assim, a segunda infância não era uma sequência da primeira , não era  uma infância posterior . A segunda infância era uma segunda ida do poeta à infância sempre primeira. 

Manoel reservava ainda fôlego para uma nova ida à infância, e assim enviou ao editor um terceiro livro: "Memórias da terceira infância". 

O tempo passou, o poeta nada mais enviou ao editor, que tomou coragem e indagou: “Poeta, suas três memórias da infância são extraordinárias, porém onde estão as memórias da vida adulta e, sobretudo,  da velhice?” 

Manoel respondeu : “Só tive infância”. E completou: “Nunca tive velhez. Só narro meus nascimentos”. 

Essa infância, enquanto antídoto à “velhez”, não é uma determinada idade. Pois ela também é a infância da linguagem, o seu fazer-se novidade para dizer o que ainda não foi dito: “As crianças sabem dizer palavras que ainda não têm idioma”.

“Velhez” também  é quando os dias vividos se tornam um peso curvando as costas, não importando a idade que se tenha. “Velhez”   é a  vida  prostrada, de joelhos, sem forças para caminhar e avançar. Às vezes, é a própria sociedade que sofre de “velhez” : quando seu futuro , ainda nem chegado, já parece extinto...

“A única coisa que carrego é meu chapéu: moro debaixo dele”, explica-se o andarilho-poeta. “Chapéu” é como Manoel nomeia as ideias que protegem os pensamentos que dão caminho às pernas : “O poeta-andarilho abastece de pernas as distâncias”. Sobre o  chapéu do poeta  um casal de pardais fez ninho: há nele ovos sendo chocados, assim como ,  dentro do poeta, auroras .

Manoel  também diz que  "velhez" é um tipo de vida  que se perdeu de seu "embrião", de seu  “minadouro” . 

O embrião nunca  está num passado remoto e morto. O imenso rio amazonas , por exemplo, tem seu embrião-minadouro  lá no alto dos Andes: mesmo há milênios a correr , o rio ainda está a nascer agora, umbilicado às águas novas. 

O que para o rio são as águas, para o poeta são as fontanas palavras de seu “devir-criança”: “A palavra até hoje me encontra na infância ; não avanço para o fim, avanço para o começo: para a Origem que renova.”





segunda-feira, 11 de outubro de 2021

as rosas de Cartola

 

Segundo o filósofo Heidegger, o mundo atual confunde o “diminuir a distância” com o “criar proximidade”. A tecnologia diminui as distâncias, sem dúvida. Mas uma coisa é diminuir a distância entre seres no espaço, outra bem diferente é criar proximidade com o sentido das coisas, pois tal sentido também é arte, afeto.

Esse sentido nem sempre está dado, às vezes precisa ser descoberto ou mesmo inventado.

O telescópio diminui a distância entre a lua e nossos olhos, isso é fato. Porém, quando lemos Manoel de Barros falando sobre a lua em suas poesias, o poeta não põe a lua perto de nós no espaço, porém ele a põe a tal ponto próxima que, empoemando-nos, experimentamos seu sentido também em nós, no "devir-lunar" que nos tornamos.

Quando Cartola diz que “as rosas não falam”, qual o sentido dessas rosas? O que elas têm que não têm as rosas que pomos em jarros? Um dia estas últimas murcham, como tudo aquilo que a arte não salva; mas nunca morrem as rosas que a canção de Cartola nos põe próximos . Essas rosas que vencem  a morte também nos ensinam a resistência.


Este texto é uma pequena homenagem ao grande  poeta Cartola, que faria aniversário hoje!


( foto roubartilhada de Enrico Rocha . Certa vez, as forças repressoras, forças da tristeza, queriam acabar com uma roda de samba. Elegantemente, mas firme, Cartola resistiu. Viva Cartola!)














sábado, 9 de outubro de 2021

o mestre passarinho-azul

 

Quando eu tinha 5 anos, antes mesmo de entrar para a escola, queria muito aprender a ler por causa dos gibis que meu primeiro grande amigo, o Edinho, trazia sempre à mão. Edinho tinha dez anos , ele era o irmão mais velho que não tive (sou primogênito).

 Então, minha mãe me colocou  para ter aulas particulares de alfabetização com uma professora vizinha. Lembro até hoje: ela morava numa casa com um imenso quintal,  no meio do qual  havia um grande viveiro com passarinhos  cantando o tempo todo.

Havia especialmente um passarinho que me marcou profundamente. Ele não era o maior  fisicamente , porém  sua cor azul celeste e  seu canto  singular e potente fizeram ninho em  mim.

A mesa da professora ficava perto da janela. Então, na minha imaginação eu  sentia ter dois mestres: a que com dedicação me ensinava as letras da língua, e o passarinho-artista que, como um Orfeu,  me ensinava a língua dos cantos.

Eu amava ser aluno dos dois. A língua que a professora me ensinava eu ainda não conseguia ler, porém a língua do passarinho parecia que já estava dentro de mim. Às vezes, enquanto a professora tentava me alfabetizar na língua dos homens,  na língua do passarinho eu  até já me arriscava a falar, assobiando no meio da aula. A professora olhava para mim e sorria.

Ler palavras eu ainda não conseguia , mas já sabia assobiar a poesia  que  aprendia com  o mestre  passarinho azul.

Quanto à língua dos homens, eu já sabia que “b” + “a” formava “ba”,  que “l” + “a” era “la”, mas eu não conseguia ler o todo que as letras  formavam quando se juntavam  na palavra “bala”. Eu ia das letras  às sílabas, porém não conseguia passar das sílabas à palavra. Via apenas as partes, não via o todo, e o todo é sempre maior do que suas partes.

À noite antes de dormir, eu abria um gibi e  ficava olhando as imagens e identificando as letras e sílabas. Até que houve uma noite em que, enquanto assobiava inocentemente,  vi de repente a palavra “bala”.

Foi instantaneamente que a palavra apareceu, fulgurante. Ela sempre estivera ali, eu é que não a via. Não que me faltassem os olhos do corpo, eram outros olhos que ainda não estavam abertos em mim .  A palavra que abre a mente é como um raio, diz Espinosa.

Pulei de uma palavra à outra, depois às frases,  destas à história inteira, e corri para contá-la para minha mãe , surpresa. Maior do que a emoção que tive ao aprender a ler, foi a alegria de partilhar , recriando, o que li.

A querida professora me ensinou a gramática, mas creio ter sido aquele passarinho azul que me ensinou a ler mais do que palavras;  e é o canto dele que ainda ouço nas poesias de   Manoel ,  no pensar de Espinosa e na voz de  todo libertário.

 

“Sei falar a língua dos pássaros: é só cantar.” (Manoel de Barros)




- Com Caetano, o "assobio" de Gil:





                                        ( flautista: Antônio Rocha, do conjunto Época de Ouro)




quarta-feira, 6 de outubro de 2021

novo livro sobre Manoel de Barros

 

 

Segundo o filósofo Deleuze, e aqui ele segue as lições de Espinosa, o pensar é uma potência imanente em cada um de nós. Porém, essa potência somente é descoberta  e exercida quando algo acontece suspendendo os roteiros , desdizendo as cartilhas, pondo em dúvida costumeiros  credos.  

Não que o pensar seja para poucos, porém não são muitos os que são despertados por ele, às vezes mais às custas de derrotas do que de vitórias, mais na dor do que na alegria. Mas quem pelo pensar é desperto, age para que ele desperte também os outros, e isso não se faz sem  alegria. 

Manoel de Barros parece concordar com Deleuze quando diz que  o inimigo maior do pensar é o “mesmal”. O “mesmal” nasce da mente acostumada, dos olhos acostumados, enfim, do viver acostumado.

O mesmal leva o homem a se  acostumar  não só com os hábitos, mas também com a torpeza que o cerca, com a ignorância que o ameaça e até mesmo com o fascismo que já pisoteou seu jardim e agora bate à porta,  querendo  arrombá-la.

Manoel criou um verbo como antídoto para o mesmal: é o “empoemar-se”. Mas  empoemar-se não é exatamente passar o dia lendo ou escrevendo poesia, tampouco entregar-se a narcisismos  líricos.

Empoemar-se é mais do que ler versos, empoemar-se também é  educação, ética e ação política. Empoemar é um verbo que se conjuga em várias pessoas , em diversos tempos, em diferentes flexões, sempre como ato libertário. A “poética” de Manoel é, na verdade, uma “empoética” para ser não apenas lida: é para ser feita ,  vivida.

O conhecimento   empoema a mente; a liberdade  empoema a ação; a  música empoema o som; pintar empoema as tintas; a saúde empoema o corpo; o ir adiante empoema os passos; o horizonte empoema a visão; o doar empoema a mão;  enfim,  o pensar empoema  a existência .

E mesmo a vida talvez  tenha surgido no planeta como  um  empoemar-se da própria natureza   criando-se como arte,  diferenciando-se   do mesmal das leis físicas.

O empoemar não é definível apenas em palavras  , ele se explica sendo produzido  no mundo, na vida : subvertendo o mesmal onde quer que ele esteja.

 

“Interpretar não é falar de algo, interpretar é falar com algo ( a partir de nós mesmos)." ( Pareyson)






-Escrevi um capítulo para este  livro sobre Manoel de Barros lançado recentemente. Como  professor e filósofo,  falar com Manoel é sempre um aprendizado para mim. O livro pode ser baixado gratuitamente aqui:

https://omp.ufgd.edu.br/omp/index.php/livrosabertos/catalog/view/335/266/2497-4?fbclid=IwAR15PEARnlI7ZjWn5WqelYc45Jw3PR1YfWj3nOIREqt64nv78TtNpED5K4w

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Francisco e o lado certo do muro

 

Ouvi certa vez a seguinte história de autoria popular ( que aqui parafraseio e interpreto): de um lado estava São Francisco, do outro o Diabo. Separando a ambos ,  um muro; e em cima do muro estava  alguém que se dizia “Neutro”.

 Francisco  disse ao “Neutro”: “- Venha para este lado, aqui há luz e  empatia  pela vida do outro.” Do   lado oposto do muro , porém, o Diabo permanecia calado.

Vendo  o “Neutro” ainda indeciso e  parado, Francisco  prosseguia : “- Venha se juntar a nós , Buda também está aqui; também estão Lao-Tsé, Confúcio,  Orixás , Tupã, Mães-de-Santo,  pajés ... Bem como todos aqueles que, tendo ou não religião,  agiram para defender e libertar  os oprimidos e injustiçados.”

Estranhamente, o Diabo seguia mudo, ele que gosta tanto de se vangloriar... Então, Francisco levantou a cabeça , olhou sobre o muro e indagou ao que reinava na treva  do outro lado : “- Por que você   permanece  calado?” “- É que esse muro onde o ‘Neutro’ está  instalado  pertence a mim”, disse o Diabo.

 

“São Francisco monumentou os passarinhos.” (Manoel de Barros)


( Este texto é uma pequena homenagem a São Francisco do lado certo do muro, cujo dia é hoje).


-Trecho do filme "Irmão Sol, Irmã Lua", de Franco Zeffirelli: