quarta-feira, 31 de março de 2021

arte e história

 

Assim nasceram as artes: Zeus , a divindade que simboliza a ética e a justiça, venceu em luta as forças da barbárie. Porém, Zeus percebeu que não bastava vencer as forças da  barbárie  naquele presente apenas , era preciso criar uma memória de que se é possível  vencê-las novamente, pois há sempre o risco dessas forças da barbárie  retornarem  de seus bueiros e trevas, reaparecendo disfarçadas com  outros nomes, em outros tempos históricos ( como reapareceram  na Itália fascista, na Alemanha nazista, nas ditaduras militares  da América Latina e suas versões milicianas... ).

Então, Zeus esposou Mnemosyne, a divindade que simboliza a memória. Zeus queria, agenciado com Mnemosyne,  criar uma memória da ética , uma ética da memória, para assim co-memorar , criar memória, de que se é possível vencer a barbárie . Desse amor entre a ética e a memória nasceram então as nove Musas, cada uma simbolizando uma arte. “Musa” significa: “conhecimento por intermédio das artes”, isto é, um conhecimento que nasce quando se desperta a sensibilidade à ética, à justiça, ao conhecimento, à criatividade e à coragem. Pois arte não é distração ou passatempo, arte é a expressão de uma vitória da potência libertária sobre as forças da barbárie. Arte é educação, incluindo a educação política. Uma das Musas se chamava “Clio”, e simbolizava a História. Pois a História existe como arte a serviço do não esquecimento do passado. Quanto mais um povo esquece seu passado, ou não o compreende, mais as forças da barbárie tiram proveito dessa ignorância e reaparecem como se fossem uma “moral ” ,  “religião” ou “política” novas. Mas se a gente raspar as máscaras sob as quais se escondem esses aproveitadores, veremos o mesmo velho e sinistro rosto sujo de sangue dos que ,ao longo da história, ameaçaram de morte  a ética, as artes, o conhecimento, a liberdade, a educação, enfim, a vida.

O lugar no qual as Musas habitam  se chama “Museu”. Um autêntico Museu, portanto,  nada tem a ver com um  depósito de coisas mortas .  Um autêntico Museu guarda,  protege e co-memora as lutas travadas no passado, lutas essas  que hoje  devem nos inspirar para as urgentes  lutas do presente. São lutas assim que guarda o Museu da Maré ( onde vive o acervo da luta de Marielle) e o Museu Histórico de Bacurau, museu-arquetípico de um Brasil que é muito maior do que o “brazil militarista-miliciano”  cultuador de  armas. No Museu Histórico de Bacurau ainda vivem Zumbi, Dandara, Virgulino, Carolina de Jesus, Lima Barreto, Glauber, Cartola, Luísa Mahin...Pois o  principal  patrimônio desse Museu não é o passado, e sim um futuro que ainda nem nasceu. Um   futuro buscado por aqueles que por ele lutaram , e que  devem nos inspirar na luta presente  contra as  forças obscurantistas que nos ameaçam com o retorno de um passado de tortura, censura e medo.

 

“A arte não é um espelho do mundo, mas um martelo para forjá-lo”. (Maiakovski)

“Poesia pode ser que seja fazer outro mundo”. (Manoel de Barros)















sábado, 27 de março de 2021

a origem da música

 

Segundo a mitologia, assim teria surgido a música: certa vez, Pã  se apaixonou por uma Ninfa. Pã é o oposto do  Minotauro. Ambos são a junção  da animalidade com o homem, porém de forma inversa. Enquanto no Minotauro  a parte animal ocupa o lugar onde deveria  estar a cabeça pensante humana, em Pã  a parte  animal vigora  da cintura pra baixo. Em Pã as pernas  são  as “pulsões de vida”  a movê-lo. A cabeça de Pã é humana ,  porém ela não é  repressora dos  impulsos  vitais. Por isso,   também fazia parte do cortejo de  Dioniso celebrando   a arte e a vida. No Minotauro, ao contrário, onde deveriam estar ideias, dominava  a fúria do touro. No animal  touro essa fúria é expressão do instinto. Porém no Minotauro essa fúria se tornou  barbárie   a serviço da parte humana acéfala. A sede de sangue do Minotauro não vinha da parte que era touro ,  os touros são herbívoros;  a sede de sangue  vinha  da parte humana com mentalidade de  besta, a mesma mentalidade que hoje vemos na   besta-fascista. Enquanto o  Minotauro é movido pela pulsão de morte,  Pã segue as pulsões da vida, pulsões  que unem o homem ao seu corpo, para assim formarem um todo intensamente vivo ( isso explica, segundo alguns,  o nome “Pã”, que significa “todo”, dando origem também ao termo “panteísmo” ).

Voltando ao desejo de Pã  pela Ninfa. Rejeitando a aparência de Pã , a Ninfa não correspondeu e fugiu  , sem ao menos ouvir o  que Pã  queria dizer.  Pã a seguiu , desejando  apenas expressar para ela  aquilo que ele mesmo nem sabia ao certo como falar. Mas  a Ninfa entrou  num lago e pediu que as Nereidas , divindades aquáticas,  a escondessem  de tal forma que  Pã nunca a encontrasse. As Nereidas  metamorfosearam    a Ninfa num feixe de  caniços de bambu. Pã  chegou ao lago procurando  pela Ninfa ,  não a encontrou. Pela primeira vez, Pã ficou triste, sentindo uma  dor como nunca sentiu.  A dor tinha por causa   algo que estava dentro dele e que ele precisava expressar (  “ex-pressio”: “pressionar  para fora”). A parte pensante de Pã teve então uma ideia para tentar curar aquele sofrimento: Pã  pegou o feixe de caniços  , os amarrou e começou a soprar dentro deles. Embora fossem  apenas sons, tais sons diziam mais do que as palavras que ele queria dizer à Ninfa.  E assim nasceu a música, ao mesmo tempo arte e cura. “Sopro” é , em grego, “Pneuma” ( “spiritus” , em latim). Sem que Pã soubesse , seu espírito penetrou no corpo metamorfoseado da Ninfa, que enfim  lhe correspondeu sob a forma de música. Com a arte, Pã curava a dor e afirmava a vida , pois na   música a Ninfa lhe fazia companhia.


“Sem a música, a vida seria um erro”. (Nietzsche)


“A palavra abriu o roupão para mim: ela quer que eu a seja”. (Manoel de Barros)


(imagem: “O lago das Ninfas”/ Monet)



-  O relato que fiz narra a origem da música de sopro, música dionisíaca , ancestral sonoro das diversas espécies de flauta e instrumentos de sopro , como o sensível e intenso sax de Pixinguinha e John Coltrane,  Pneumas em estado puro. As músicas nascidas da corda, músicas apolíneas, têm outra origem.




 






















quarta-feira, 24 de março de 2021

sobre a simbologia dos mitos, ontem e hoje

 

Às vezes, os cúmplices do genocida  o chamam de "mito". De certo modo, eles não estão errados. Pois certos mitos também simbolizam as “sombras”, como diz Jung, da psiquê humana.  Assim, mitos não são apenas Zeus, Hermes, Afrodite, Eros, Dioniso ...Também são mitos , por exemplo, os "Ciclopes" , seres de um olho só na testa simbolizando “estreiteza de visão”. Os Ciclopes eram inimigos de Zeus, que simboliza a ética e a justiça, e de Eros, o deus do amor. Os Ciclopes simbolizavam    a besta  bárbara de visão estreita , e hoje essa visão estreita nos ameaça  com a ignorância negacionista . Outro mito que simboliza o genocida são as “Erínias” ( “Fúrias”, em latim), deusas do ódio e da vingança. Foram elas que despedaçaram “Orfeu”, o poeta que cantava a vida e a arte. Quando Eurídice desapareceu, o poeta Orfeu parou de cantar. Eurídice era o par de Orfeu. Para os gregos, “Eurídice” também é um dos nomes da alma, assim como “Psiquê” e “Pneuma”. Então, as Erínias  queriam que Orfeu esquecesse a alma e se tornasse o general do exército de morte delas , cantando assim a guerra , o ódio e a vingança, para ajudá-las a espalhar tais vilezas pelo mundo. Como Orfeu se recusou a usar sua arte para servir à barbárie, as Erínias  o despedaçaram ( tal como as Erínias-fascistas   de hoje que despedaçaram a placa de rua com o nome de Marielle...).  Mas isso não fez morrer o poeta , pois seu filho de nome “Museu”, poeta como o pai, recolheu os fragmentos que Orfeu se tornou e os reuniu novamente, fazendo surgir assim a primeira exposição do mundo, na qual Orfeu reencontrou sua alma-Eurídice expressa em sua arte. O genocida também lembra Procusto , um personagem perverso que oferecia uma “cama” fabricada por ele às pessoas que passavam cansadas por uma estrada. Quando as pessoas se deitavam na tal cama, porém, acontecia algo estranho: ninguém cabia direito nela. Quando a pessoa era maior do que a cama , Procusto pegava um machado e decepava as pernas e sobretudo a cabeça .  Quando, ao contrário, a pessoa era menor , Procusto amarrava as pernas e os braços dela com correntes , esticando brutalmente até desmembrá-los... Ninguém sobrevivia àquela cama transformada em túmulo: querendo que cada um se amoldasse à força, Procusto acabava matando todo mundo. Quando as pessoas reclamavam, Procusto pegava friamente uma régua e media com rigidez militar a cama, e dizia: “A cama é perfeita, normal, homogênea: cada lado é idêntico ao outro . A régua não mente! O defeito está em vocês :por serem  diferentes e heterogêneos, vocês não cabem na minha Verdade!” A cama de Procusto pode receber  outros nomes: “Minha Opinião”, “Meu Dogma”, “Meu Credo” ...O que não couber em tais “fôrmas”, Procusto vingativamente corta, nega, mata – física ou simbolicamente . O tamanho de tal cama é o da pequeneza: só ficando sem a cabeça, acéfalo, se pode caber nela.




Este  livro que sugeri não é de introdução à mitologia, e sim de interpretação de alguns mitos segundo a perspectiva do autor, perspectiva da qual muitas vezes discordo , sobretudo nas interpretações feitas do mito de Dioniso e Orfeu ( o mito de Procusto não se encontra no livro).  Em algumas versões do mito de Orfeu  são as Mênades, e não as Erínias/Fúrias, que despedaçam o poeta. Porém, mesmo com a cabeça decepada pela barbárie, a voz do poeta não é silenciada, pois ele continua a resistir cantando a vida. Em toda obra de arte na qual  a vida resiste àqueles que querem silenciá-la, a voz de Orfeu ainda está viva e canta.  



sábado, 20 de março de 2021

outonos

 

Certa vez, eu estava explicando para uma turma um poema de Fernando Pessoa. Era uma turma muito simpática e atenciosa, que sempre pedia para eu tocar nesses temas poéticos-filosóficos , apesar de não caírem na prova...rs...Quando terminei a narrativa, uma aluna  perguntou de repente  : “Professor, qual seu signo?” Quando respondi “touro”, ela ficou incrédula, e disse com humor : “professor, você não pode ser touro, os professores de touro gostam de ensinar apenas coisas utilitaristas sem poesia ...rs...” Então, ela me pediu a data e hora do meu nascimento, incluindo os minutos,  ela queria fazer meu “mapa astral”. Como eu sabia esses detalhes,  passei a informação para ela. Na aula seguinte, ela entrou sorridente na sala e disse: “Sabia que havia alguma coisa diferente, você  é assim por causa de seu ascendente: Aquário!”

Em homenagem àquela turma tão simpática e generosa comigo ( e a todos que , presencial ou virtualmente, apoiam meu trabalho), elaborei um pequeno “horóscopo filosófico”, no qual o céu sob o qual nascemos expressa a atmosfera que irradia de  determinado filósofo . Àquela época, eu morava perto de uma pracinha. De minha janela via as mães com seus filhinhos nos carrinhos de bebê. Deitados dentro dos carrinhos, os bebês ficavam o tempo todo  olhando para o céu. Pensei comigo: “se tudo nos influencia, ainda mais quando somos crianças, deve haver uma profunda influência dessa  primeira imagem do céu na alma e personalidade dos bebês”.

Assim, os que nasceram no verão veem um céu com  um sol intenso. Os bebês que trouxerem  esse sol para dentro deles se tornarão artistas . Chamei esse céu de CÉU DE NIETZSCHE. Os que nasceram no inverno, ao contrário, veem um céu cinza, e assim terão que buscar  criar um sol dentro de si . Os que nascem sob esse céu tenderão a ser mais introspectivos, buscando mais a “luz interior” . Chamei esse céu de CÉU DE SCHOPENHAUER. Os que nasceram sob o céu da primavera veem um sol que é como uma grande semente que faz tudo germinar. Os que plantarem  dentro de si esse sol-semente   tenderão a ser mais otimistas , acreditando que a vida pode de novo sempre brotar, apesar do deserto. Chamei esse céu de CÉU DE EPICURO. Enfim, os que nasceram no outono veem um céu de um azul profundo porém transparente, onde o sol brilha vivamente mas sem ofuscar, um sol como parte do infinito sempre aberto. Os que nasceram sob esse sol e céu , se aprenderem com esse sol e céu a se horizontarem, crescerão filósofos. Chamei esse céu de CÉU DE ESPINOSA.

Hoje começa o outono. Que a gente consiga   criar uma abertura na mente e no coração para que possam entrar a luz e o azul desse  céu que hoje nasce, que isso nos traga alguma força para agir contra essa escuridão-genocida  que nos ameaça de destruição e morte.

 

 

“Eu tentei me horizontar  às andorinhas”. (Manoel de Barros)

 

( imagem: “Efeito do outono”/ Monet)


(Sem dúvida, podemos colocar outros filósofos ainda  ao lado desses que mencionei para cada estação. Lucrécio e Sêneca, por exemplo, também são outono; Sartre é verão; Epicteto e Bergson, primavera; e Cioran, inverno. Mas como disse no texto, não basta a simples presença do referido céu, é preciso que ele seja internalizado e incorporado como parte da personalidade. Se ele não for internalizado/incorporado, não há o efeito poético-existencial)











quarta-feira, 17 de março de 2021

albatrozes

 

No poema “O albatroz”, o poeta Baudelaire nos explica o  motivo de o albatroz ser o pássaro de maiores asas: é porque ele aceita o desafio do oceano. “Venha voar sobre mim se tiver coragem!”, assim é o desafio do oceano . A maioria dos pássaros voa apenas de ilha em ilha, perto do litoral conhecido, muito longe não se aventurando. Mas o albatroz criou imensas asas porque ele ouviu e aceitou o desafio .  Quem voa sobre  oceanos se desterritorializa e corre riscos,  nunca sabendo se vai achar onde pousar. Voar assim só voa quem confia em suas asas. O albatroz é capaz de ficar uma semana voando sem parar ! Quando tem sede , ele atravessa  as nuvens e bebe a água diretamente sob a forma de gotículas, antes de elas caírem como chuva e se tornarem o próprio oceano . O albatroz também inventou outra arte em sua travessia: enquanto voa, metade de seu cérebro dorme, fechando um dos olhos,  enquanto a outra metade fica de vigília , mantendo o outro olho aberto . Um olho sonha, o outro ao horizonte mira. Porém se engana quem pensa que é apenas  o olho aberto que guia o albatroz: pois quando nuvens negras barram sua visão, é com o olho que sonha que o albatroz avança em sua linha de fuga . Às vezes, no meio do oceano,  o albatroz vê abaixo de si um navio, ele então desce e pousa para descansar um pouco. O albatroz tenta fechar e guardar suas asas, porém  elas são maiores do que ele: hábeis para voos no céu, elas atrapalham o andar no rasteiro chão. Resultado: no chão o albatroz anda desajeitado, o que faz a marujada rir zombeteiramente. Quando enfim descansa, o albatroz novamente abre as asas e faz do vento uma escada para subir até ao altar azul onde novamente será coroado Príncipe dos Ares. Vendo o albatroz se elevar, a marujada cala o riso e algo neles se eleva também. Mas o capitão do navio , destilando ódio  ,  xinga coisas que traduzidas para o  mundo de hoje seriam mais ou menos assim  : “esse pássaro maldito deve ser comunista ou anarquista! Veio aqui perturbar a Ordem e o Progresso dos homens de bem!”, grita o capitão do navio cuja bandeira tremulava com uma sinistra caveira da morte pintada.  Tentando  se vingar do albatroz , o capitão-paranoico  atira   flechas e balas de canhão contra o pássaro-libertário. Porém  o albatroz voa tão alto e potentemente, que não o alcançam flechas, canhões e nem a opinião de ódio  dos que veem nos seres livres uma ameaça  . E quando vê a tempestade adiante , o albatroz a atravessa pelo meio e segue em frente.

 

“Poesia é voar fora da asa”. (Manoel de Barros)

 

(imagem: “Albatroz”/ Graça Craidy)







- e hoje, 17/03, é o dia de nascimento da grande albatroz Elis:



sábado, 13 de março de 2021

Pitágoras e o aprendizado

 

Foi na boca  de  Pitágoras que pela primeira vez se ouviu a palavra “filósofo”.  Mas em sua aurora o filósofo também era, ao mesmo tempo, artista, poeta. Certa vez pediram a Pitágoras que ele  explicasse melhor o que significava enfim ser “filósofo”. Pitágoras respondeu mais ou menos o seguinte: “Há os que vão ao mercado  para vender, outros para comprar; há ainda os que vão exibir suas posses, seus bens e dotes em busca de aplausos, e assim rivalizam com outros que também querem aplausos. Eu nada vendo, nem o que ofereço se acha em mercados...Eu apenas observo como os homens são e busco compreender suas ações como parte do Cosmos, o mesmo Cosmos que não pode ser vendido ou comprado, o Cosmos que não tem dono, Cosmos esse que com o pensamento eu aplaudo. Pois é o Cosmos que me ajuda a compreender porque alguns são bons, e constroem;  enquanto outros são maus, e apenas destroem”.

Pitágoras foi um dos primeiros a acreditar na reencarnação das almas. Ele dizia que essa  reencarnação é parte de  um "colégio cósmico" no qual o homem vem à vida para aprender a se tornar  um ser humano. Segundo Pitágoras , os que não aprendem e se tornam ignorantes, obscurantistas e maus , esses retornam  numa vida futura como hienas e porcos.  Se Pitágoras tivesse conhecido os fascistas-genocidas de hoje, creio que ele  diria se tratarem de hienas e porcos que , após morrerem numa vida passada,  reencarnaram agora com aparência de homens.  Mas os seres humanos  que avançam no aprendizado  e conseguem superar a si mesmos,  retornam como pássaros canoros. O poeta Orfeu, por exemplo, Pitágoras acreditava que retornou como Rouxinol. Quem avança ainda mais e aprende a doar-se em desapego egóico, retorna em vida futura  como flores. Quanto mais sábio, justo e generoso alguém foi, retorna em flor , aromas e cores .  E os seres que mais aprenderam não retornam mais,  pois voltam para o ventre de onde vieram: as estrelas. E eternamente brilham para afastar a escuridão e atraírem   nossos olhos,  para assim  erguermos  a cabeça.


"Poesia é celestar as coisas do chão". (Manoel de Barros)







sexta-feira, 12 de março de 2021

os pré-socráticos

 

Apesar da diversidade de doutrinas que caracteriza esse grupo de pensadores originários , uma questão pode ser apresentada como sendo a característica geral dos pré-socráticos: a busca pelo Um. Diante da multiplicidade de aspectos que a natureza apresenta aos órgãos da sensibilidade, os pré-socráticos buscavam a unidade que tornaria essa multiplicidade pensável e inteligível. A essa unidade eles deram um  nome: arqué. Este termo grego possui uma rica carga semântica. Os principais sentidos atribuídos a arqué são: origem, princípio, comando e causa. Os pré-socráticos empregavam arqué no sentido de causa. Perguntar sobre a  arqué era indagar acerca da causa que gerou tudo o que existe.

Diante da multiplicidade de aspectos cambiantes que nossos sentidos testemunham, o pensamento se erguia diante dessa multiplicidade e fazia uma exigência: o Um, a arqué, a causa. A pré-socrática representou o primeiro momento de tematização de um problema que acompanhará toda a filosofia , de Tales de Mileto  a Deleuze: as relações entre o Um e o Múltiplo. Se o múltiplo constitui a realidade tal como ela se apresenta aos sentidos, alcançar o Um exige outro instrumento distinto da sensibilidade. Assim, emerge igualmente nesse período uma visão de que o homem é constituído por dois princípios: a sensibilidade, necessariamente ligada ao múltiplo, sendo ela própria múltipla, e o Logos, este igualmente Um, tal como a arqué. Assim, seria o Logos o instrumento que poria o homem em contato com a arqué, com o Um.

Os primeiros pré-socráticos estão ainda muito próximos da poesia. Há neles uma visão do caráter divino da natureza. Em grego, natureza é “physis”, palavra esta cujo sentido  se reporta ao processo de  “nascer” ou “brotar”. Mais do que se pautarem pela abstração dos conceitos, eles ainda se apoiam em imagens, apesar de já se fazer presente a exigência de racionalização comandada pelo Logos.

Tales de Mileto dizia que “tudo é água”. A água seria a arqué da qual tudo nasceu. Como ele chegou a essa posição?Após a chuva, ele percebia que a natureza se renovava ou renascia. Quando estão saudáveis, os olhos estão sempre umedecidos. Do mar vêm vários seres vivos. A placenta, que é o primeiro berço de todo ser vivo, é um reservatório de água. As fontes trazem vida aos desertos. Assim, onde está a água se encontra  a vida. Por outro lado, Tales  constatou que tudo o que morre e definha vai perdendo água e secando. A terra sem umidade se torna estéril. Enfim, Tales intuiu que a água é o princípio da vida. Então, existe a água visível em suas mais variadas formas. Mas existe ainda a água enquanto arqué ou causa de tudo o que existe. Esta água universal não tem um aspecto particular, e só o logos intuitivo a pode apreender. Ela não é doce ou salgada: ela é simplesmente água, a pura água que apenas o pensamento pode intuir e conceber.

Heráclito, por sua vez, afirma que o fogo é a arqué ou o  Um do qual tudo é feito. Este Um, no entanto, reúne nele o múltiplo, de tal modo que este Um é idêntico ao movimento, ao devir. O fogo nunca fica imóvel, e é por isso que ele também é a imagem do tempo. E é isso que diz o célebre fragmento de Heráclito: “Nós não podemos entrar duas vezes no mesmo rio”. Quando saímos do rio e retornarmos para entrar nele, suas águas já passaram, assim como nós mesmos já somos “outro”. Muda o rio e mudamos nós. Nada é, tudo devém, pensava Heráclito. “Devir” significa: “vir de novo”. Cada “momento” do devir é uma repetição, um re-venir. Cada momento do devir é uma repetição dele mesmo, que sempre se repete diferente, pois nunca ele é o mesmo, assim como as águas do rio do tempo. Segundo dirá Platão, ninguém mais que Heráclito compreendeu tão perfeitamente o mundo sensível, que sempre é regido pela mudança. Hegel, Nietzsche, Bérgson e Deleuze foram muito influenciados por essa intuição heraclítica do devir.

Mas por que as coisas mudam? Heráclito dirá: “não existe um porquê”( Aristóteles , por sua vez, responderá a Heráclito afirmando que as coisas mudam para realizar um fim: a forma). Heráclito dizia que há no devir uma “inocência” pela qual o devir  constrói e destrói, tal como crianças que brincam de construir e destruir castelos de areia. Não raro, Heráclito  era visto observando crianças brincando e jogando. E a muitos ele dizia que aprendia mais com elas do que com os doutos. Para muitos, um obscuro. Para outros, o primeiro dos pensadores trágicos. Com Heráclito teria nascido o primeiro pensamento da imanência. “Imanência” provém de “i-manare”. “Manancial” se origina de manare. Manancial é a mesma coisa que “fluxo”. Assim, imanência é, literalmente, o que existe interior ao fluxo, ao devir, ao tempo. Por oposição, temos o vocábulo  “transcendência”. “Transcendência” é: “ir para além dos entes” ( no núcleo da palavra transcendência  existe o termo “ens”, “ente”).

Vale destacar outro pré-socrático: Empédocles. Ao invés de apontar para apenas um elemento como arqué, Empédocles nos diz que a causa de tudo são as quatro raízes e os dois princípios. As quatro raízes são: a água, o fogo, o ar e a terra. Os dois princípios são o Amor e o Ódio. O Amor é a Vida, ao passo que o Ódio é a morte. Sob o poder do Amor, as quatro raízes se combinam para gerar tudo o que existe, uma vez que tudo o que existe seria a união da água, da terra, do fogo e do ar. O ódio, por sua vez, é o princípio que dissolve o ser organizado e faz as quatro  raízes  voltarem a existir separadas. O ódio faz as raízes existirem sós.O ódio é a solidão.O ódio não destrói as quatro raízes, ele apenas desfaz os seres que nascem de sua união e composição. Além de realidades meramente físicas, Empédocles introduz Afetos (Amor e Ódio) na gênese do mundo. Estes afetos não estariam apenas no homem, eles não seriam tão somente subjetivos. Tais  afetos seriam também cósmicos e presidiriam, ao mesmo tempo, a vida dos homens e a vida do universo.

Outro pré-socrático importante foi Anaximandro. Com Anaximandro, o pensamento atinge graus de abstração nunca antes alcançados. Para este pensador, a arqué não é a água, o ar , a terra, o fogo ou a mera combinação deles. Para ele, a arqué não pode ser nada de determinado, pois tudo o que é determinado possui um limite, uma identidade. E tudo o que possui limites não é o todo. Assim, para ele  a arqué ou causa de tudo será chamada de Apeiron. A-peiron:o que não tem limites.Mas por quê existem as coisas com limites, as coisas finitas? A resposta de Anaximandro introduz um elemento de julgamento moral: as coisas finitas existem por uma culpa. Todo ser finito que se separa do infinito o faz por uma culpa. Dessa forma, tudo o que é limitado, por isso mesmo, sofre. O sofrimento é a condição existencial de tudo o que existe separado. Anaximandro acreditava que a sabedoria seria um processo de reatamento com o que não tem limites, o que implicava em uma regra de vida que se libertasse do império das coisas limitadas. Por exemplo, bens materiais, por maiores que sejam, são coisas com limites.Todo apego ao limitado, seja o limitado das coisas ou o limitado do “ego” ( embora Anaximandro não empregue exatamente esta palavra tão moderna),  todo apego alimenta ainda mais a culpa e o sofrimento.  Por essa razão, impede a liberdade e o pensamento.

Por fim, existiu Parmênides.Para este filósofo , a arqué não é mais nada físico, tampouco a combinação de coisas físicas.A arqué também não é, para ele, algo que se assemelhe a afetos humanos.  A arqué, porém, também não seria o infinito, o que carece de fins. Para Parmênides, a arqué, a causa de tudo, seria o Ser. E o que é o Ser?A resposta de Parmênides é seca,lacônica, e já anuncia,firmemente, o princípio fundante da  lógica: o Ser é o Ser. O Ser é idêntico a ele mesmo. O Ser não devém. Quando a água devém nuvem, ela deixa de ser água para se transformar em outra coisa. Como pode algo deixar de ser?Aceitar o devir é aceitar um paradoxo:afirmar que o não ser é.Assim, pensava Parmênides, o Ser não se move, ele não muda: ele simplesmente É. Os sentidos nos enganam: eles não nos mostram o Ser, eles nos mostram apenas as aparências. Desse modo, existiriam dois caminhos: o da Verdade, caminho este que apenas a Razão/Logos pode trilhar,  e o da opinião,que é o caminho no qual reinam as aparências e ilusões nascidas de vivermos apenas a vida do corpo. O caminho da Verdade  é o do Ser,ao passo que o da opinião é o caminho da mera aparência, isto é, do não ser. Com Parmênides são esboçadas  as primeiras exigências de um pensamento lógico, que posteriormente será desenvolvido por Aristóteles;em Parmênides também se dá início à célebre  distinção entre Essência e aparência, tema este que merecerá especial atenção de Platão, e que marcará, até hoje, o vocabulário da filosofia.


Sugestões  de leitura para quem desejar saber mais:





 

 


Filme sugerido: Sócrates, de Rossellini.

 

tangentes

 

Segundo a matemática, um triângulo possui três pontos singulares ( também chamados de “pontos extraordinários”) e uma quantidade indefinida de pontos regulares ou  “ordinários”. Os pontos singulares do triângulo são aqueles que ocupam os três vértices, ao passo que os pontos ordinários são os que estão nos lados do triângulo. Já um quadrado possui quatro pontos singulares e uma quantidade indefinida de pontos ordinários em seus quatro lados. Uma linha reta possui dois pontos singulares: os que estão no início e no fim da linha, entre os quais se encontra uma quantidade indefinida de  pontos ordinários. Os pontos singulares/extraordinários são aqueles nos quais se expressa uma diferença , enquanto os pontos ordinários se comportam como uma massa indistinta e homogênea, como um rebanho. E o círculo, quantos pontos singulares/ordinários ele possui? À primeira vista, parece que o círculo é destituído de pontos singulares, refém ele parece ser de pontos  ordinários apenas . Costuma-se comparar nossa vida a um círculo: “o círculo da vida”. Estaria então nossa vida refém da ordinariedade? Será que o rebanho vence a singularidade? O ordinário tem mais poder que o extraordinário? Mas o círculo guarda um segredo, tanto na matemática quanto na vida: qualquer ponto dele pode se metamorfosear em ponto singular/extraordinário, desde que por ele passe uma tangente.  “Tangente” significa: “o que toca e afeta”. Como diz o poeta Manoel de Barros, uma tangente é o que “nos desabre”. Tangente é o que vem de fora, como um sopro de coisa nova e inesperada que fende o círculo estreito das verdades fechadas. Numa tangente , o ponto pertencerá, ao mesmo tempo, ao círculo e à linha que vem de fora.  Tangente também pode ser uma ideia libertária que desfaz o círculo no qual se fechava, crendo-se derrotada, a nossa mente. Tangente também pode ser  a poesia que abre a palavra acostumada e nela põe sentido novo. A própria vida surgiu em nosso planeta como uma tangente que abriu o círculo opaco da matéria, e nela pôs olhos , ouvidos e bocas como abertura ao mundo. Uma tangente é como o fio de Ariadne: fende o círculo de morte dos labirintos onde a inação nos prende. Sem dúvida, não é fácil vencer a ordinariedade e seus rebanhos. Porém não se pode esquecer que, enquanto houver vida e história humana, as tangentes sempre emergem com sua força renovadora e fendem o círculo do mesmo  para fazer entrar um pouco de ar de fora. Mas as tangentes não existem prontas, elas não caem do céu. Na maioria das vezes, somos nós mesmos que precisamos criar nossas próprias  tangentes, e isso não se faz sem luta. Toda  tangente faz  o círculo da vida e da história saírem da imobilidade e girarem para o lado certo, para assim avançarmos.






quarta-feira, 10 de março de 2021

diferença entre "doença" e "doentio"

 

Sempre associamos os vírus às doenças. Na Idade Média, porém, se imaginava que as doenças eram odiosos demônios. Por extensão, os ignorantes daquela época acabavam por odiar não apenas as doenças, eles odiavam também o próprio doente, lançando-o à fogueira... Com o desenvolvimento do conhecimento descobrimos que o vírus age como age não por ódio a nós, tampouco ele é o enviado de demônios. O vírus age como age porque ele busca a sua saúde própria. Para o vírus, sua saúde é reproduzir-se e multiplicar-se enquanto ente vivo. E ele faz isso nos usando como meio. A saúde do vírus é a nossa doença. O que chamamos de doença é a saúde do vírus vista sob nossa perspectiva. Não foi odiando ou demonizando os vírus que conseguimos vencê-los, mas sim adquirindo amor ao conhecimento. Pois o conhecimento é o instrumento da nossa saúde enquanto humanidade civilizada. O conhecimento nos levou a compreender não somente como o vírus pode nos matar, mas também como ele vive. Pelo conhecimento, passamos a conhecer sua maneira de ser e agir. Vencemos os vírus não os matando totalmente, mas os usando a nosso favor, pois as vacinas são feitas com vírus , porém enfraquecidos. Quando olhamos a vida de uma perspectiva mais ampla, compreendemos que não existe doença em si, existe apenas saúde. “Saúde” significa “potência”. O conhecimento é a nossa saúde maior, dizia o médico-filósofo Espinosa.
Mas acontece algo diferente com aquilo que é “doentio”. O doentio é uma mentalidade que existe em certo tipo de gente, o doentio não vem de nenhum vírus. O doentio, sim, é doença: uma doença que põe em risco o próprio conhecimento que nos faz vencer os vírus. Muitos desses que têm mente doentia até louvam os vírus que trazem as doenças, pois isso lhes permite pregar suas ideias doentias de que estamos no fim do mundo e que a doença é um castigo enviado por um Deus vingativo que nos odeia.
Precisamos fortalecer nossa saúde, agenciar em todos os espaços a nossa potência . As mentes doentias odeiam as vacinas, por isso odeiam a ciência, o conhecimento, a cultura e a educação, pois conhecimento, cultura e educação também são vacinas que nos protegem das mentes doentias.

“Mesmo muito doente, jamais fui doentio. ” (Nietzsche)




domingo, 7 de março de 2021

Sofias...

 

PARA AS “SOFIAS” QUE TAMBÉM ATENDEM POR DANDARA, CLARICE, BETHÂNIA, NINA, ELZA,  CLEMENTINA, MARIELLE...

Em grego, “Sofia”  é “Sabedoria”. Não se deve confundir “Sofia” com “Razão”. A  palavra “Razão” em grego  é masculina (“Logos”)  e tinha  em Zeus um dos seus símbolos. Porém Zeus  não era a Sabedoria, pois  Sofia é filha de Zeus com Métis.  Por possuir muitos dons e capacidades, Métis era conhecida como  a deusa das “habilidades”. Não a  habilidade meramente   técnica, mas habilidade no sentido de produzir , além de ideias,  um querer e um agir múltiplo e criativo. Métis também estava  associada à noção  de “saúde” enquanto cuidado consigo e com os outros. A palavra “caute” , base da Ética de Espinosa, provém dessa habilidade médico-curativa . Pois de “Métis” também vem “meticuloso” , no sentido do cuidado (“caute”)  que caracteriza o bom médico ( tanto os médicos do corpo quanto os médicos da alma).

Uma das características de “Métis” é que ela era capaz de metamorfoses, de devires. Então, Zeus, o deus da razão, buscou na metamorfose de Métis uma nova saúde , uma saúde unindo pensamento e ação. De certo modo, a razão buscou sua saúde para além da própria razão, como se a simples razão fosse , sozinha, impotente para enfrentar as doenças que a põem sob risco.  Mesmo a razão precisa aprender habilidades que a pura razão não ensina. As habilidades de Métis são artes que unem o pensar ao agir. E foi desse agenciamento mais afetivo do que teórico , mais artístico e poético do que acadêmico, que nasceu  então Sofia, também conhecida como “Atena”, filha de Zeus com Métis.   Os teóricos da razão  inspiram-se em Zeus, mas os pensadores são  apaixonados por Sofia: e por essa paixão não apenas pensam, como também agem e criam. Na luta contra a ignorância e a obscuridade, ontem e hoje, a razão não vence sozinha: é preciso que a acompanhe Sofia. Às vezes, é a própria Sofia que salva a razão de si mesma , fecundando nela sensibilidade  e vida, impedindo  assim que a razão fique dogmaticamente rígida.

Segundo Nietzsche, a filosofia contemporânea atende  por outro nome, um nome feminino  também : “Ariadne”. Ariadne significa “aranha”, pois Ariadne é tecedora de fios, fios que ela tira de seu próprio ventre, como a “linha de fuga” ensinada por Deleuze . Os gregos inventaram a democracia  e admiravam  o cosmos, a natureza. Hoje, as mesmas forças reativas que negam a democracia também destroem a natureza e cultuam  misoginia. Ariadne simboliza a necessidade de um fio que nos agencie . Um fio de Ariadne também  nasce das mãos que se unem na luta contra a barbárie.


“Eu não vou sucumbir 

Eu não vou sucumbir

Avisa na hora que tremer o chão                      

Amiga, é agora, segura a minha mão”. ( LIBERTAÇÃO/ Elza Soares)


- Ao  Dia internacional de Luta das Mulheres ( 8 de março e todos os dias)














quinta-feira, 4 de março de 2021

manoel e o pote

 

No poema "Aventura", o personagem é um pote que Manoel de Barros encontra jogado fora de "barriga vazia para cima", “encostado  à natureza”. Nesse estado de abandono, o pote continha apenas o vazio.  Talvez o pote já  tenha guardado  um dia algo muito desejável, e que com avidez  os homens devoraram. Enquanto durou esse conteúdo , o pote foi amado – ou  imaginou que o  fosse. Depois de lhe tirarem tudo , ele   foi então  abandonado pelos mesmos homens que  dele se alimentaram.  “Inútil”,  o pote já não servia para nada, a não ser para metamorfoses, pois é isso que a natureza produz em tudo aquilo que, ao encostar nela, sofre um contágio, uma comunhão: "depois desse desmanche em natureza, as latas podem até namorar com as borboletas", pressagiou o poeta. Tomado pela dor, o poeta se foi  pensando  no triste fim daquele pote...

Tempos depois, o poeta teve que passar pelo mesmo lugar ermo. Lembrou do pote e preparou-se para ver de novo aquela imagem do sofrimento. Porém, nesse intervalo de tempo , sem que o poeta soubesse, um passarinho passou voando “atoamente” sobre o pote e cuspiu uma semente em seu ventre vazio. Ali já havia areia e cisco  que a natureza depositou. "As chuvas e os ventos deram à gravidez do pote forças de parir", constatou o poeta. Onde antes crescia o vazio,  agora um vivo poema aflorou: nasceu do  ventre  um pé de rosas .E repleto ficou o pote com a beleza que se oferta sem nada pedir em troca, feito a poesia que o poeta oferta  para aplacar um pouco a nossa dor.


"O que é a arte? É criar uma magia sugestiva contendo ao mesmo tempo o objeto e o sujeito, o mundo exterior ao artista e o próprio artista". (Baudelaire)



- A capa do livro é de autoria de Martha Barros:

http://www.marthabarros.com.br/












segunda-feira, 1 de março de 2021

os ipês de pindorama

 

Há árvores que são mais do que árvores: elas   também podem ser para nós  símbolos, inspirações,   ideias. Por exemplo ,  o ipê. A flor do ipê é uma das poucas que floresce colorida durante todo o ano, resistindo até mesmo ao cinza do inverno. A flor do ipê assim nos mostra que é possível ser forte e resistente sem perder a arte de criar beleza. Antes de os colonizadores aqui chegarem, os índios acreditavam que o ipê era a própria expressão da força fértil de Pindorama, nossa Terra-Mãe ancestral . Na mitologia tupi-guarani, um dos sentidos de Pindorama é: “terra onde os maus são vencidos”. As flores do ipê são sempre de cores múltiplas, combinando o púrpura, o rosa, o branco e o amarelo . Os colonizadores tentaram acabar com o ipê, porém não conseguiram. Então, descobriram que podiam ganhar dinheiro sangrando uma árvore chamada pau-brasil, cuja resina avermelhada corre no tronco da árvore como em nossas veias o sangue. Foi a partir do comércio dessa resina cor de sangue que a terra explorada ganhou novo nome, sendo então chamada de "Brasil" pelos seus algozes. Essa  mentalidade predadora hoje novamente se volta contra o  ipê, derrubando   ilegal e criminosamente  sua madeira, quase sempre sequestrada  de terras indígenas. Por trás desse crime contra o ipê existe algo ainda mais sombrio:  também  move essa gente um ódio niilista contra  as cores , a natureza,  a multiplicidade e arte que o ipê simboliza como imagem  que nos liga aos nossos ancestrais povos da floresta.

Por debaixo do culto fascista e pseudonacionalista ao verde e amarelo existe ainda a mesma mentalidade criminosa que sangrou e ainda sangra nossa Terra-Mãe, mátria ancestral. Nunca haverá independência enquanto os maus continuarem sangrando nossa vida e dignidade. Simbolicamente, devemos aprender com a autêntica independência perseverante dos ipês de Pindorama, que resistem aos seus carrascos , de ontem e de hoje,  florescendo como vivas bandeiras pintadas pela própria natureza em púrpura, rosa, branco e amarelo.


(fiz esta postagem há tempos...Hoje vi um ipê que me fez lembrar da história)