segunda-feira, 20 de julho de 2015

a origem que renova

                                 






                                                                                                        Quem se aproxima da origem se renova.

***   ***  

O que não aprendeu ainda a renunciar ao desejo de informar,
ao desejo de narrar, não aprendeu a cantar.
Quem canta é músico, passarinho, pintor, vento, poeta, chuva.
Poeta não precisa de informar sobre o mundo.
Poeta precisa de inventar outro mundo.

***   ***      

Palavra séria, para mim,
é aquela   que convida as outras 
para brincar de poesia.

Manoel de Barros

Não se escreve com lembranças de infância,
mas por blocos de infância, que são devires-criança do presente.
Gilles Deleuze

Há um poema de Manoel de Barros no qual ele diz ter visto, quando criança, dois homens "escovando osso" ( o nome do poema é exatamente "Escova").Isso o afetou singularmente. Tempos depois, ele soube o nome do  que aqueles homens estavam fazendo: eles faziam "arqueologia", eles eram "arqueólogos". "No começo achei que aqueles homens, afirma o poeta, não batiam bem. Porque ficavam sentados na terra  o dia inteiro escovando osso.Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos . E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor".Desse aprendizado ele inventou outro, pois o poeta diz que aprendeu a fazer algo semelhante , só que com as palavras. Ele aprendeu a "escovar" as palavras.
Os arqueólogos escovam o osso , algo aparentemente inerte e morto, para nele fazer viver a "arqué". "Arque-ologia" procede de "arqué". "Arquivo" também procede. "Arqué" tem por sentido "princípio", "causa" ,"fonte", "origem" ou "começo".Só arquivamos( em armários, gavetas , museus ou em nossa própria memória) aquilo que julgamos ter alguma relação com nossa existência, seja como causa , fonte ou origem.Em nossa memória não está apenas o passado, está também o que dá sentido ao presente.Em A Arqueologia do Saber, Foucault mostra que o saber é prática de construção de "arquivos" que co-existem sem se sucederem em progressão.No exemplo de Manoel de Barros, os arqueólogos descobriam que havia, naquele osso, algo arquivado: arquivado não como um papel em uma gaveta, já que , nesse caso, o que está arquivado é o próprio osso como arquivo, como signo, como sentido. O tempo estava arquivado nele, e ele, o osso, estava arquivado no tempo. E este tempo não é o passado no qual aquele osso foi esqueleto, já que se trata também do tempo no qual ele é descoberto como arquivo.Um osso não é apenas um osso, quando nele descobrimos um arquivo.Outrora ele fazia parte de um esqueleto escondido sob pele e músculo.Hoje, como arquivo, percebe-se que ele faz parte do universo inteiro, e sobre este ensina.O osso vira um documento: docere, aquilo que ensina.
O poeta escova a palavra, e a faz nos ensinar coisas que a mera informação utilitária não ensina. O poeta escova a palavra para nela fazer nascer sua alma: o sentido. Escovada, tornada arquivo, ela não designa apenas o referente que o uso consagra, pois ela passa a expressar também a origem que a inventou, e essa origem não está fora, mas lhe é imanente como ato de invenção.Esta é a fonte do sentido: a invenção. Ao escovar a palavra, não importa qual, o poeta acha a poesia, tal como o arqueólogo acha no osso o mundo no qual ele era uma parte, e  hoje esse mundo é parte dele, como mundo a descobrir. A palavra se torna mais do que palavra quando o poeta a escova, para nela fazer viver uma memória.
Nietzsche dizia que sempre nos esquecemos que nunca vivemos o que agora vivemos. Ele evoca então  uma memória singularíssima: uma memória que deveria nos lembrar que nunca vivemos o que agora vivemos; uma memória não do passado ou do que se viveu, mas uma memória do novo, do que nunca se viveu. Pois é disso que a gente se esquece: do novo. Nesse sentido, a percepção utilitária, aquela que busca sempre o "já visto" em todo ver, tal percepção também precisa ser escovada, para que assim de fato possamos deixar nascer em nós a memória daquilo que a todo tempo nasce,  e que somente pode ser visto por  uma "visão fontana" , uma visão que também é fonte do que vê.Quando olha para uma árvore, nela somente vendo o útil, o lenhador vê o possível móvel ou as folhas de papel que guiam sua percepção interessada, que se torna cega de uma cegueira ignorada. Ele não vê a árvore, muito menos a poesia que a faz e fez. Ele não vê a "arqué", ele não vê que ali há uma fonte.Em um museu, um objeto exposto deveria expressar essa poesia que faz o  objeto ser mais do que um objeto, tal como o escovar a palavra a faz ser mais do que mera informação utilitária que amanhã já será sucata, feito as informações  do jornal de ontem. O que é verdadeiramente novo nunca vira sucata, o verdadeiro novo nunca vira ontem.O novo é sempre fonte:arqué.A fonte é a "origem que renova".A fonte não é como um ponto de onde um fluxo jorra, pois este fluxo que a atravessa vem de um infinito com o qual ela permanece ligada. Pois é isto ser uma fonte: nos ligar a um infinito que nenhuma metragem utilitária pode diminuir. A fonte é o que nos liga e amplia.
"Poesia": poiésis, produção. Assim, o escovar é prática de cuidado também. Mais importante do que o "conhece-te a ti mesmo" é o "cuida de ti mesmo". Em latim, "caute" é a palavra que Espinosa imprimiu em seu anel. De caute provém cuidado também, assim como "curador": aquele que cuida."Caute" também pode ser "cautela" enquanto conduta ética. Desse modo, a poesia não é um conhecer meramente  intelectual, ela é um cuidado com o sentido, um cuidar do sentido.E é por isso que a poesia é também uma ética e uma clínica, como deveria sê-lo todo conhecimento, que nada é se não for também autoconhecimento. Assim , ao escovar um simples osso, é a nós mesmos que procuramos conhecer, não como um ser à parte , mas como parte de uma Natureza que é Poiésis.

sábado, 18 de julho de 2015

formas em rascunho: deslimite e cor



















Quero escrever movimento puro.
Clarice Lispector

É verdade que, no caminho que leva ao que cabe pensar,
tudo parte da sensibilidade.
Gilles Deleuze


Não é a coisa limitada que impõe um limite ao infinito;
é o limite que torna possível uma coisa limitada.
Todo limite é ilusório, e toda determinação é negação, 
se a determinação não está numa  relação imediata com o indeterminado.


Gilles Deleuze



Chega de teorias, de promessas de ser. Não escreverei mais, não mais falarei; vou fazer, construir, inventar. Não quero mais contemplar, nem figurar mundos possíveis. Quero apenas uma matéria, uma vida para modelar: serei o barro, o metal, a matéria...Mas também serei o artista, o artesão, as ferramentas, as cores e a singular perspectiva.Vou esculpir a mim mesmo, serei minha obra a inventar. Não a farei segundo cânones ou técnicas, tampouco de acordo com  regras desta ou daquela escola. Simplesmente me farei, me inventarei, me esculpirei. Será a mão quem me fará. Retirarei dela anéis, alianças, unhas...A quero nua, criança.
Ela então começa...Esculpe meu detalhe, meu contorno e espaços, de dentro e de fora. Esculpe meus pensamentos novos, meus desejos que nascem agora. Ela esculpe meu coração e o que nele sente. Ela vai esculpindo, sem projeto, sem a priori, sem expectativas. Ela apenas esculpe, cria, inventa, faz. Eu não antes era, tampouco serei. Sou todo agora, e este agora é processo, fazer-se.
Falta pouco, quase nada. A mão já esculpiu o braço , o antebraço, o punho...Falta agora somente mais uma coisa para ela me concluir: falta minha mão esculpir minha mão. Falta ela esculpir a si própria. Resta o produtor coincidir com o produto, resta o artista ser a própria obra.

A mão então se contorce, tenta alcançar seu ser, que no entanto escapa. Não adianta virar do avesso, pois criar uma vida nova não é virar uma vida antiga pelo avesso. Então, a mão para, estanca, treme, parece ter chegado a um limite.É nesse momento que o pensamento vem tomar-lhe o lugar . Ele que ali , no entanto, sempre estivera. Pois o pensamento é  a mão da mão, ele é o fazer que pensa. Assim, sabendo-me  rascunho, obra se fazendo, anexata, liberto-me  de toda vontade de ser obra acabada.


                                 (Escher)

Não basta apenas a diferença por oposição a uma identidade rígida, oca, neurótica.É preciso “fazer a diferença” ( Deleuze). Só há diferença quando  feita, arriscada, ousada, instaurada. A diferença que não faz diferença não é diferença, é mera oposição, reação, impotência.A diferença, quando faz diferença, inventa a si própria como acontecimento novo, que para ser compreendido requer também um modo de conhecer e perceber diferentes.A diferença não é algo que se encontra pronto, muito menos se acha codificada em uma cartilha ou receita.Não se sabe o que é fazer diferença a não ser quando ela é feita. O conhecimento da diferença vem depois de ela mesmo ter sido feita, pois a diferença é exatamente aquilo que não se conhece antes dela, não se pode conhecê-la de forma a priori.Ao ser feita, a diferença também faz o conhecimento que se tem dela, conhecimento este também diferente, novo.Como fazer a diferença? Repetindo-a.  Por isso, a diferença é inseparável da experiência com ela própria. Em tudo aquilo que fez diferença há um aprendizado: repetir não o que se fez, mas repetir a diferença , que somente no novo se pode fazer.E qual é essa diferença? Invente-a.É do fazer a diferença que nasce um estilo. O estilo é uma harmonia na diferença, uma harmonia nada domesticada , uma harmonia selvagem, como os solos de uma alma livre, que sabe que todo solo somente é possível quando agenciada.




segunda-feira, 13 de julho de 2015

o céu, o sangue e o sol

Oliveiras com sol , Van Gogh


                                                                                   O amarelo pode modificar o  seu comportamento.
Você pode modificar sua cabeça com o vermelho.
Você sabe que é possível fazer uma revolução com as cores?
Antônio Manuel


O céu da teoria é cinza;
mas sempre verdejante é a arvore da vida.
Goethe


1-Muitas são as cores. Porém três, apenas três , são as cores-fontes das quais todas as  outras cores nascem. As três cores primárias são: o amarelo, o vermelho e o azul. Não por acaso, cada uma delas está associada a realidades que são mais do que meramente físicas, pois tais realidades também são símbolos de processos afetivos, espirituais.
O amarelo é o sol. Ele é a cor mais quente. É por isso que os girassóis que Van Gogh pintou eram, na verdade, sóis do espírito que nele irradiava, mas que também o consumia. Das páginas de Nietzsche também irradia um amarelo intenso,  chama  que é de mais de um sol: "Para brilhar e ter luz própria é preciso ter sóis dentro de si."
O vermelho é o sangue. Sangue é paixão, na medida em que  é  vida. Vida que corre e transpõe toda barreira, vida que não pode parar, como o sangue nas veias.As revoluções escolhem o sangue como bandeira: não exatamente o sangue que se derrama por mera violência bruta, mas o que colore o rosto quando a voz , como instrumento da liberdade, a um  povo chama para a luta.Todo país que fez sua revolução, para assim instituir a dignidade e a justiça, tem o vermelho em sua bandeira. Sua ausência na bandeira brasileira nos faz pensar mais do que na falta dessa cor...
O azul é a cor do céu, isto é, daquilo que está na distância. Ele é a cor da paz ,mais do que o branco, uma vez que o azul é a cor da paz de espírito. O azul  também colore  a tranqüilidade, a reflexão e a felicidade . Quem a esses afetos sente se põe à distância de tudo o que apequena a alma: aprende a  trazer um céu dentro de si quem pinta a própria alma com essa cor .Sêneca vestia azul, a mesma cor preferida de Espinosa.A voz da sabedoria-poesia, voz que "celesta as coisas do chão", "é voz pintada de azul"( Manoel de Barros).

2-Da combinação do amarelo-calor-sol com o vermelho-paixão-sangue surge o alaranjado como cor que tinge os dias de verão. Nessa época do ano predomina o calor de tudo o que, voltando-se para fora,expressa-se como expansiva paixão.
Da combinação do azul-paciência-céu com o vermelho-paixão-sangue nasce o violeta ( ou púrpura) como cor que veste os dias de outono.Nesses dias, a paciência vence o imediatismo da mera paixão: o sentir ganha mais consistência, e permanece revificado pelo pensamento que o amplia e conecta.
Da combinação do azul-paciência-céu com o amarelo-calor-sol brota o verde como cor que cobre a primavera.Sob a primavera, a paciência envolve a vida que nasce, paciência da gestação do novo, e perdura como calor imanente a tudo o que vive.
A combinação das cores primárias ( amarelo, vermelho e azul) faz surgir as cores secundárias que identificamos aos processos da natureza.Isso nos mostra a íntima relação entre o espiritual e o físico, o afeto e o acontecimento.Não raro, nascem primaveras no espírito, mesmo fazendo inverno ao redor.
O inverno é alternância do branco com o negro: o branco é a presença indistinta de todas as cores, ao passo que o negro é a ausência das mesmas.Ao contrário do que se pensa, o cinza não nasce da mera combinação do branco com o negro, mas da união das cores virtualmente no branco. Há ainda a possibilidade do cinza nascer pela adição do negro a qualquer outra cor. Contudo, dizem os físicos , tal processo é, na verdade, uma subtração: o negro não acrescenta negro, a ausência não pode acrescer ausência, o negro subtrai de uma dada cor a vida dela mesma, enfraquecendo-a. É por isso que ao cinza é associada a ideia de tristeza, como também ao próprio inverno.
Porém, facilmente se esquece que no inverno há também o branco e, neste, as cores. E se o negro é alguma coisa, o é na medida em que é apenas a ausência do que realmente existe. Nas noites estreladas, o negro que rodeia as estrelas não é alguma coisa, ele é a subtração do que não podemos ver.Somente o que verdadeiramente existe pode combinar-se  e  fazer nascer algo. O negro não combina ou compõe: ele apenas subtrai, posto que ele é ausência. Para a subtração ou negação ter poder,   é preciso que a vejamos como uma presença que de fato ela não é. Mas a ausência não é algo: ela é apenas o enfraquecimento de algo.Isso vale não apenas para o inverno físico, vale também, e sobretudo, para os invernos espirituais.O negro do luto, por exemplo, expressa que algo foi subtraído da existência.
Porém acima das cores está a Luz.Esta não é o branco,pois em relação à Luz o branco não é mais claro que o   vermelho,o azul ou o amarelo.Mesmo o branco mais puro é mais escuro do que a Luz.O branco é mais escuro do que a Luz permanecendo branco, sem enegrecer, sem se diminuir.A Luz também não é a claridade que emana do sol, uma vez que esta nasce do amarelo.Há na Luz mais paz e paciência do que há no azul, mas sem fazer desta uma cor intranquila ou impaciente. Por fim, há na Luz mais paixão do que há no vermelho, mais calor do que há no amarelo de todos os sóis juntos.
A Luz não é o branco.A junção do negro com o branco faz aparecer o cinza, contudo a junção do negro com a Luz faz aparecer a Luz mais ainda, ao mesmo tempo que faz o negro desaparecer.O negro pode tornar cinza qualquer cor ,ele o faz por subtração. Diante da Luz,porém, o negro se desfaz e mostra o que verdadeiramente é:"o escuro é o que não se vê", canta Gil em uma de suas canções.










quarta-feira, 8 de julho de 2015

o museu do céu

Segundo Mário Quintana, há um “museu do Céu”. Neste, o próprio eterno é o curador. Nesse museu eterno só entra o que também é eterno, só entra o que for absoluto. “Ab-soluto”: “o que não se dissolve”,  "o que não é soluto".
Não é um museu para lembrar o que foi, mas para conservar o que é eterno. O eterno não é o que dura muito, o eterno é o que , mesmo tendo durado pouco, foi intenso. “In-tenso” é, literalmente, “ir para dentro da tensão”, “habitar a tensão”. O “extenso”, ao contrário, é o que “sai da tensão”( "ex"= "ir para fora"). As coisas materiais e “objetivas” são extensas. Também são extensas as coisas tangíveis. Somente as coisas extensas podem ser medidas, pesadas, contadas, quantificadas por números e etiquetadas. Somente quando saímos daquilo que é tenso conseguimos fazer essas coisas típicas da inteligência e da técnica. Mas o que é o tenso?
A corda do violão é tensionada quando produz o som. As fibras musculares do coração nunca deixam de estar tensas, pois é assim que o coração envia para fora de si o sangue. Tenso é o que exerce uma potência, uma capacidade. Viver extensivamente é viver muitos anos. Mas viver intensamente é produzir uma música nas cordas tensas do coração.Fazer muitos aniversários extensivamente pode ser mais facilmente esquecido do que o acontecimento intenso que  torna inesquecível um único aniversário que foi cheio de vida, repleto de intensidade.Quanto mais viva/intensa a música, mais riscos correm as cordas de rebentarem. Contudo, este é o risco da tensão: ela é um esforço, uma produção, um ir até o limite, até um limiar.
 São os acontecimentos que nasceram da intensidade que mais perto estão do museu do céu.Nele não estão batalhas, medalhas, coroas com brilhantes, invenções mirabolantes, animais ou esqueletos. No museu do céu estão gestos, acontecimentos, simplicidades, cortesias, ousadias, imaginações...tudo o que foi espontâneo e que o homem criou/viveu sem fazer cálculos, sem pesar, sem medir, sem comparar.No museu do céu não está a lua como realidade tangível, nele está  o luar enquanto acontecimento que une o tangível ao intangível que , para ser compreendido, requer mais do que palavras.





No museu do céu não está o que se planeja fazer amanhã ou o que se viveu ontem,muito menos o que se espera viver em outra vida, mas o que se deseja viver e afirmar no  hoje, pois  é somente aí que pode  estar a felicidade intensa,mesmo ao preço de uma extensa dor,  como em Os girassóis da Rússia.













A SINGULARIDADE


As intensidades do girassol são forças do tempo?
Cláudio Ulpiano


O plano geral mostra uma realidade ampla, que se funde com o horizonte. Vemos os girassóis, um campo de girassóis. Eles formam uma realidade nova, ampla, que parece ter uma personalidade não pessoal. Difícil ver os limites onde termina esse ser que parece não ter contornos, apenas limiares. Vemos um todo.
Então , da perspectiva desse todo a câmera parece que  vai se fechando, diminuindo sua amplitude. Porém, se virmos o que acontece de uma outra perspectiva , veremos que a câmera vai ampliando uma outra realidade que permanecia imperceptível enquanto apenas olhávamos para o todo.À medida em que a câmera vai diminuindo de amplitude extensiva, outra amplitude vai se mostrando aos nossos olhos: uma amplitude expressiva. Então, começamos a ver o que até então não víamos: percebemos a existência de um suave vento que toca e agita alguns girassóis apenas. Enquanto olhávamos para o todo, não percebíamos esses acontecimentos que atingem apenas parte do todo.
 Começamos a ver então que o todo é composto de partes. Cada vez mais essas partes vão perdendo a relação exterior e extensiva com o todo , e começam a realçar sua singularidade, o seu ser um. Já não vemos mais o todo, o horizonte. Vemos agora três girassóis, em seguida dois ,até que a câmera nos mostra um girassol.O girassol preenche toda a tela, que outrora era preenchida pelo todo. Vemos que uma singularidade pode também preencher e preencher-nos, mas de maneira intensiva, expressiva. Pois a realidade que agora vemos se explica por cores, texturas, molecularidades. Saímos de uma realidade extensiva e entramos em uma realidade expressiva.Entramos, enfim, em nós.

O girassol em sua singularidade continua a comunicar-se com o todo, mas através de sua diferença, de sua singularidade, pois o todo está inserido nele, e ele está inserido no todo, no horizonte. .Enquanto víamos apenas as amplidões do espaço, não víamos a realidade intensa do afeto que o singular expressa. Na linguagem do cinema, quando colocamos algo em primeiro plano , não importa o que coloquemos, esse ser assim ampliado torna-se um rosto. Ele não ganha um rosto: ele se torna , ele inteiro, um rosto. Ele se torna uma superfície que  se explica apenas por valores expressivos, intensos. Em toda expressão há algo implicado. Toda expressão é uma explicação. A expressão explica, traz para fora, o que está implicado nela, o que lhe é imanente.A expressão é esse duplo movimento onde o dentro e o fora enfim se conjugam, potencializados em uma singularidade viva. Pois é isto que é um rosto. Então, o girassol parece viver/expressar alegrias, dramas, imaginações, vida. Ele parece pensar, ele parece sentir.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

somos todos gregos





(trecho do livro):
Liberdade é pouco.
O que desejo ainda não tem nome.
Clarice Lispector

O pensamento é o telescópio
de uma astronomia apaixonada.
Gilles Deleuze


A poética é grega. Ela se vincula não apenas à Grécia histórica : a  Grécia de Homero, Hesíodo, Ésquilo, Mênon, Heráclito, Protágoras, Diógenes, Demóstenes... Mas também à Grécia enquanto Terra que serve de imanência a todos os territórios, inclusive o Pantanal. Enquanto imanência do pensamento e da sensibilidade, a Grécia é a Terra de Lucrécio, Hume, Godard, Marx, Visconti, Artaud, Lima Barreto, Gláuber, Clarice Lispector, James Joyce, Proust, John Coltrane, Nietszche, Van Gogh, Rimbaud...Este é seu povo, ao mesmo tempo aristocrático e popular, em  permanentes rebeldias contra o clichê e contra as mais variadas formas de opressão e banalização da vida.
Quando evocada pelo pensamento e pela arte, esta Grécia torna-se um nome que é, ao mesmo tempo, a conjugação de dois verbos: Pensar e Sentir. Uma Grécia onde não existem mais “rei nem regências” de poder, mas potências criativas que, em seus deslimites, nos deixam ver a Vida.
Sua localização não é geográfica, mas noográfica, intempestiva.Acreditamos que foi a essa Grécia que Rafael pintara e imortalizara como imagem cujo ponto de fuga é a Diferença. É uma Grécia sem fronteiras, “espaço liso”, pois seu chão é o  Deslimite
Grécia-Subúrbio, Grécia-África, Grécia-América Latina, Grécia Quilombo, Grécia-Pantanal , Grécia-Nadifúndio ― Grécias nas quais não se pode passar o “metron”  do saber acadêmico que faz da Grécia  a pátria de uma  Razão Estriada . 











( O triunfo de dioniso , séc. III DC, autor anônimo.Museu Arqueológico de Sousse )




(cena do filme Viver a vida, de Godard)