sábado, 27 de abril de 2019

o pensar e seus inimigos


1. A filosofia não nasceu na Grécia. Ela foi deixada lá ainda criança, tal como aqueles bebês deixados   à porta de alguém que inspira confiança. Inclusive, a tez da filosofia é mais escura e mestiça do que a branca pele grega. Há quem diga que seus pais eram Egípcios; outros afirmam que foram os Assírios que a conceberam; e há quem defenda ainda que os pais da filosofia foram os nômades povos do deserto que se guiavam pelas estrelas e que nenhum império  , por mais que tentasse, conseguiu prender e escravizar . A porta em que a filosofia foi deixada para ser cuidada pertencia à casa de um homem digno chamado Tales, que deu o nome de Sofia  à criança. Ele a criou e a ensinou a ficar de pé.Com Heráclito Sofia aprendeu a brincar; com Nietzsche, a dançar; e  a fazer-se mais viva Sofia aprendeu com Espinosa, diante dos  obscurantistas  que a querem morta.
2. Quando alguém cobra honestidade dos políticos, este alguém está a filosofar, pois está exigindo uma virtude ética: a honestidade. E Ética é uma disciplina da filosofia. Quando alguém diz:  “o que esse cara fala não tem lógica! ”, também está a filosofar, pois Lógica é uma disciplina filosófica. Quando alguém sente: “ Gosto dessa música!”, também filosofa, pois o “gosto” ( assim como o belo, o feio, o cômico, o grotesco, o sublime, etc)  é uma categoria da Estética, uma disciplina filosófica. Quando alguém diz: “Sou pragmático, odeio teorias”, também está a filosofar, pois “Pragmatismo” (assim  como “Utilitarismo”) é uma  corrente da filosofia. E mesmo quando alguém questiona : “para que estudar filosofia?”, também está  a filosofar, pois  questiona sobre a Teoria do Conhecimento ( ou Epistemologia), uma disciplina da filosofia. Enfim, é impossível alguém estar vivo  e não se colocar questões  como: “O que é a vida ? O que é Deus? O que é o tempo? O que é a liberdade? O que é o amor? O que é a política? Quem eu sou?...” Não apenas para formular as perguntas, mas também para vislumbrar sentidos para elas, quem assim indaga também está a filosofar, mesmo que não tenha frequentado escola ou lido livros de filosofia,   pois essas são questões de uma disciplina da filosofia chamada “Metafísica”. Uma coisa é a filosofia, esta se encontra  registrada em livros escritos pelos filósofos;  outra é o filosofar, cujo sinônimo é pensar. Os tiranos de toda ordem sempre temem o pensar, e fazem o máximo que podem para impedir que as pessoas, sobretudo os jovens, façam essa  descoberta do  pensar ,  ou se já o descobriram, não o exerçam  ( não importando a faculdade que tenham escolhido cursar). Descobrir o pensar é governar a si mesmo. E apenas os tolos e obedientes , os mortos em vida, dizem  “amém”  a essa “cicuta” que esses fascistas querem impor a todos ( e não apenas aos filósofos e sociólogos).


(há  ainda  as crianças , que são filósofas /questionadoras já nascidas assim, mas que infelizmente um sistema perverso de acomodação as faz ir se afastando dessa condição questionadora. Enfim, quis dizer que a filosofia é condição de existência da cidadania, e não está restrita apenas às academias. Mesmo sem saber, quase todos filosofam, isto é, pensam, pois a isso exige a vida. Quando se descobre isso, o próximo passo é potencializar essa prática, vencendo a mera doxa (opinião). Para potencializar o pensar,  é necessário ir ler os filósofos ,  assistir aulas de filosofia ou tornar-se um/uma)


quinta-feira, 25 de abril de 2019

o que é a filosofia


Oriunda do grego, a palavra “filosofia” nasceu da reunião de duas outras palavras: “philo” e “sophia”. “Philo” significa tanto “amor” como “amizade”. Isso quer dizer que a filosofia não é prática apenas  intelectual , pois ela se nutre também de uma dimensão afetiva, expressa exatamente pelo termo “philo”. “Sophia” é mais do que “razão”. Não por acaso, “Sophia” é nome feminino que nada tem a ver com termos falocráticos. Sophia também é nome de gente, de algo vivo, ao passo que ninguém se chama “Razão”, embora  alguns deliram ser  a encarnação dela: falam como “Oráculos”  e posam como “Gurus”, nisso enganando  apenas os toscos.  Deleuze afirma que a filosofia não é apenas Conceito, ela também é Afeto (este termo não significa a mesma coisa que o mero sentimento   ). Espinosa ensina, por sua vez, que a filosofia é prática que se faz na Alegria. Outros, como Kierkegaard, Heidegger e Sartre, dizem que o pensar é filho da Angústia. Há ainda Aristóteles, para quem a filosofia começa na Admiração. Nunca, absolutamente nunca, algum filósofo ensinou que a filosofia pode nascer do ódio, da covardia, do medo ,  da intolerância ou do apego ao poder. Ao contrário, a filosofia é um esforço para se tentar vencer essas “sombras”, como diria Jung, ou essas “tristezas”, nas palavras de Espinosa. E é antes de tudo naquele que filosofa que a vitória deve anunciar-se primeiro, não para triunfalismos ególatras , e sim  para que suas ideias e palavras sejam antídoto na luta contra as “sombras”, sobretudo as “sombras sociais”. Se alguém se autointitula filósofo, como aquele indivíduo que mora nos EUA,  mas em cada palavra que diz só se vê tolice, ódio , palavrão, “sombras”   e delírios de grandeza, na verdade ele se apresenta como filósofo publicamente  apenas para dissimular  o que no seu íntimo, como os loucos,  ele realmente acha  que é: Napoleão. “Pode-se esconder a sabedoria, porém é impossível esconder a idiotia:  basta abrir a boca”(Sêneca).






Os bruxos ou feiticeiros se diferem dos Caciques ( tanto nas aldeias quanto na  filosofia , pois esta também tem seus Caciques, assim como a política) .Os Caciques imaginam que ter poder é dominar, explorar, vencer, ser o primeiro, derrotar o rival. Os Caciques tendem à paranoia. Já os bruxos-feiticeiros exercem a potência. A potência  é o exercício de descobrir misturas entre seres heterogêneos. Os bruxos-feiticeiros operam por agenciamentos, contágios, mestiçagens. Os bruxos-feiticeiros estão mais próximos dos Guerreiros do que dos Caciques, uma vez que todo bruxo-feiticeiro é um Guerreiro do mundo espiritual. No mundo espiritual  os inimigos são os maus pensamentos, os sentimentos de ódio e tristeza, de tirania e servidão.
Os Caciques moram no centro da taba, ao passo que os bruxos-feiticeiros frequentam as zonas fronteiriças das aldeias, os limiares, tornando-se a ponte entre as aldeias e a floresta imensa. Os Caciques exibem a cabeça dos animais mortos como troféus, já os bruxos-feiticeiros aprendem os signos e as maneiras dos animais nos quais a vida moldou beleza,  força, altivez, independência ,coragem .  Não raro, os bruxos-feiticeiros são aceitos como um deles, aprendendo seus cantos, suas camuflagens, suas velocidades e percepções.


-dia 25 de abril: data em que se comemora a vitória do povo português sobre  as sombras da tirania de Salazar:



terça-feira, 23 de abril de 2019

mensagem e interpretação


“Interpretação” em grego se escreve “hermenêutica”. Na raiz dessa palavra está um nome: “Hermes”, a divindade que transporta as mensagens. Nem tudo é mensagem. “Atenas é a capital da Grécia” não é uma mensagem, é uma informação. “Mensagem” é tudo aquilo que requer o exercício de interpretação. Um poeta não escreve informações, ele cria mensagens; um filósofo não nos faz pensar com informações, ele nos envia mensagens. Informações apenas engordam a memória, mensagens põem em ação a sensibilidade e o pensamento. Informações somente instruem, mensagens educam. Um horizonte, a abóbada celeste, o voo do albatroz, os  mares , os desertos...e até mesmo o silêncio também podem ser mensagens . O código genético não é informação codificada, ele é mensagem que a vida escreveu mais como poema do que como fórmula matemática. A natureza é mais mensagem a decifrar do que informação a decorar.
Um acontecimento tornou Hermes a divindade que transporta as mensagens : quando Dioniso era criança, seus irmãos mais velhos, movidos por ciúmes, o despedaçaram. Hermes então pegou o coração de Dioniso e o guardou consigo. Assim, Hermes apenas transporta as mensagens, mas o sentido delas cada um interpreta conforme o coração que tem. Se o coração é  pequeno, apequenará ; se o coração é generoso, acrescentará; se o coração é dissimulado, adulterará; se o coração é autêntico, não se esconderá.

“Não se descobre nenhuma verdade, não se aprende nada, se não por decifração e interpretação.” (Deleuze)


"Poeta não precisa de informar sobre o mundo.Poeta precisa de inventar outro mundo. "(Manoel de Barros)



- mensagens de Nina:




domingo, 21 de abril de 2019

artaud & van gogh


No livro “Van Gogh, o suicidado da sociedade” , Artaud argumenta que Van Gogh não se suicidou, ele foi “suicidado”. Sem dúvida, foi a mão de Van Gogh que apanhou o revólver e o colocou contra o peito, também foi seu dedo que apertou o gatilho. Porém, a mão de Van Gogh  não estava sozinha nesse ato, sozinho estava apenas o coração de Van Gogh que recebeu o tiro, sujando  de sangue a mão que sempre se cobriu com as tintas das obras as quais deu vida. Nem sempre o gesto que um corpo faz explica, sozinho, o sentido da ação. Quem vê o beijo de Judas pode imaginar que  tal gesto é amor; quem vê o boxeador golpear o adversário pode supor que ele golpeia com ódio. Às vezes, no entanto, um beijo pode conter mais ódio do que um soco. A mão de Van Gogh não estava sozinha, ela foi agarrada e forçada a fazer tal ato. Foi a mão da sociedade, ou de parte dela, que fez a mão de Van Gogh puxar o gatilho. Essa mão deve ser a mesma que, hoje, é chamada de “a mão invisível do mercado”, que também arma crianças pobres com facas e revólver, pois lhes rouba o lápis e o caderno.
Quando a sociedade , ou parcelas dominantes dela, suicida um poeta, um artista, uma criança, um idoso ou o futuro de todos , que tribunal julgará tal crime ? Que parlamento elaborará a lei que condenará tal assassinato? Esses que vestem terno e gravata caros e se ornam de tronos togados não têm tintas nas mãos , nem o resíduo do giz que pôs a lição no quadro, muito menos calos do trabalho pesado. Por mais que tentem esconder, se olharmos bem ainda veremos nas mãos deles  o sangue de Van Gogh.




( poeta, pensadora, atriz e fotógrafa, Francesca é outra "suicidada pela sociedade"):

sábado, 20 de abril de 2019

devir-índio


Certa vez, um antropólogo inglês entrou na oca de um índio e viu uma máquina de escrever pendurada na parede da oca  como se fosse um "desutensílio", diria Manoel. Isso aconteceu em 1950, época em que a máquina de escrever era o símbolo técnico da cultura autointitulada “civilizada”. O antropólogo nada perguntou ao índio, retornando   a Londres para tentar entender aquele ato que subvertia o significado e uso costumeiros daquele objeto. O antropólogo   consultou teses e tratados, porém nada encontrou  na teoria que explicasse   o gesto do índio.  Até que , de repente, ele olhou para a parede de sua biblioteca e viu um arco e flecha pendurados como enfeite...Então,  o acadêmico compreendeu que aquilo que ele fizera com o arco e flecha, o índio fez com a máquina de escrever... Graças ao ato artístico-subversivo do índio, o antropólogo compreendeu mais acerca de seu próprio “mundo civilizado” do que lhe ensinaram os livros.  O que nos faz enxergamos a nós mesmos nunca  são nossos próprios olhos costumeiros. O que nos  faz  enxergarmos, para assim nos compreendermos,  são olhares que vêm de fora, como lugar da diferença. O índio era o outro do branco, mas o branco também era o outro do índio. Nem todos são brancos, nem todos são índios, mas todos são outros: o outro é o valor mais universal. É isto o que o poder paranoico mais teme:   esse “fora” revelador  de outras formas de ver e viver . O paranoico-branco está sempre a querer impor seu modo de ser ao outro.Talvez precisemos  (re)descobrir em nossos “olhos civilizados” aquele   olhar insubmisso  de um  índio.

"Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens. Não sei se isso é um gosto literário ou uma coisa genética. Procurei sempre chegar ao criançamento das palavras. O conceito de Vanguarda Primitiva há de ser virtude da minha fascinação pelo primitivo. Essa fascinação me levou a conhecer melhor os índios” (Manoel de Barros)






quinta-feira, 18 de abril de 2019

sherazade


Havia uma aldeia onde um Sultão  resolveu vingar-se das mulheres. Seu ressentimento era devido ao fato de que nenhuma mulher o amava espontaneamente, apenas à força. Rico e poderoso , ele conseguia ter tudo, menos amor.  Valendo-se de seu poder, e querendo se vingar, ele resolveu obrigar  todas as mulheres solteiras da aldeia a se casarem com ele , uma a uma. Seu plano era, após a  lua de mel, tirar a vida de cada uma.  Ele juntou as mulheres em uma ampla sala . E antes que ele escolhesse uma para ser sua primeira vítima , tomou a frente de todas e ofereceu-se  uma jovem chamada  Sherazade. Quando o Sultão a levou para o quarto  e ordenou que ela fosse para a cama, Sherazade pediu: “Posso lhe contar uma história?”. E ouviu como resposta: “uma história a uma hora dessas!? Conte, mas seja rápida...”. Mas quando Sherazade começou a narrar a história, o Sultão ficou tão absorvido que não reparou o passar do tempo. Quando já estava amanhecendo, Sherazade disse: “não consegui terminar a narrativa, posso recomeçar amanhã?”.  “Sim, mas de amanhã você não passa!” , ameaçou  o Sultão . No dia seguinte, Sherazade  prosseguia com a história e logo a emendava com outra. O Sultão não conseguia ficar imune a esse poder que ele desconhecia: o poder da  palavra  que cria mundos (o Sultão imaginava, ao contrário, que poderosa é a palavra que ameaça de morte) .  Naqueles momentos ao menos , o Sultão curava-se de si próprio,  desabrindo nele  um outro . Quando o dia amanhecia e Sherazade precisava interromper a narrativa, o Sultão agora lamentava  e até pedia:"Não vá se atrasar amanhã! “.  Como Ariadne ,   Sherazade  tecia suas histórias mais do que com palavras: ela as tecia com o fio da vida, e a este estendia  como linha de fuga. A narrativa durou uma, duas, dez, cem... mil e uma noites: “inventar aumenta o mundo”, já dizia Manoel.  Sherazade simboliza a vida que se expressa    múltipla, nas escolas, museus, teatros, cinemas e livros,  apesar dos Sultões de hoje que ameaçam calá-la  : “poesia é afloramento de falas” (Manoel de Barros).

(imagem: “Sherazade”, obra-instalação de Sami Hilal  . Os livros se agenciam em um mesmo fluxo, como um  rio inaprisionável :"Sou água que corre entre pedras, liberdade caça jeito”, Manoel de Barros)








“Escrever não é certamente impor uma forma (de expressão) a uma matéria vivida. A literatura está antes do lado do informe ou do inacabamento. (...) Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e  o vivido.” (Deleuze, Crítica e Clínica)

terça-feira, 16 de abril de 2019

manoel e o antesmente verbal


Manoel diz que a poesia está no “antesmente verbal”. O verbal é a palavra , escrita ou falada. A poesia está antes da palavra, mas não como o esboço que está antes do quadro . Quando o pintor termina a obra, o esboço se torna algo dado: o quadro. Neste, o esboço deixa de existir. O antesmente onde vive o poético não é semelhante ao que vem antes do que está dado e que logo fará parte do mundo dado, como o esboço que se torna quadro e assim morre. O antesmente poético nunca será dado, a não ser como sentido inventado que subverte o significado do que está dado. Nenhum verbal esgota o antesmente verbal e o faz deixar de existir. O antesmente não é o verbal ou a palavra, mas também não é ideia pronta já pensada. Essa realidade antesmente verbal só pode ser conhecida se experimentada, desde que aquele que a experimenta também se coloque antesmente em relação ao que sabe e a tudo o que parece definitivamente pronto e acabado, para assim devir outro, pondo-se antesmente a si mesmo, mas na imanência do mundo, da vida e daquilo que ainda não tem nome: “As coisas sem nome são mais ditas pelas crianças” ( Manoel de Barros). Antes de estar na palavra, o sentido está nesse antesmente, mais como parte de mundos a criar do que como parte de livros já lidos. Lá, o sentido não está escrito ou dito, lá ele só pode ser pensado e sentido, tal como o embrião de uma vida nova.





Manoel de Barros se formou em Direito. No entanto, seu primeiro cliente foi também o último. Tratava-se de um peixeiro  que foi acusado de desonestidade no uso da balança : na hora de pesar a mercadoria, sorrateiramente ele apoiava o dedo para aumentar o peso de forma fraudulenta. Uma senhora viu e acusou o peixeiro, abrindo um processo contra ele. Era a palavra do peixeiro contra a da senhora que o acusava, pois não havia outra testemunha, embora a fama do peixeiro não fosse boa. Manoel pediu para conversar a sós com o peixeiro, e perguntou: “É verdade o que ela diz? Você burlou o peso?” E o peixeiro respondeu: “É verdade.” Manoel pediu imediatamente licença ao peixeiro e foi conversar com o dono do escritório de advocacia, dizendo: "Desisto do caso, não vou defender esse homem: não é esse tipo de  falsidade e mentira   a invenção de que gosto”.

domingo, 14 de abril de 2019

carpe diem


Quando a nave sai da terra e entra no espaço, o céu não está somente acima: ele está também  à frente, atrás, dos lados e até abaixo. No infinito, não há lugar para o inferno.  Um horizonte envolve a vida em todas as direções  do espaço: descobre-se então que moramos no interminável, sem precisar de teto,  paredes ,  chão ou terraço. Nesse aberto horizontado, as estrelas são sóis que nunca se põem . Por isso, engana-se quem pensa que fora da terra há noite: no infinito faz apenas dia, dia eterno de múltiplos sóis,  carpe diem.






(o que ontem foi o mar , amanhã será o céu para os exploradores)


manoel, klee & miró


Manoel de Barros diz que aprendeu a fazer “desaprendizagens” com o pintor  Paul Klee  . O pintor ensinou ao poeta  a necessidade de "aprender a desaprender" . Assim fez  Klee : embora ele desenhasse de forma precisa e técnica, essa mesma precisão se tornou uma  prisão para o novo que ele queria criar.  Já estava no pintor a alma nova, porém faltava um corpo para ela. No auge do sucesso e reconhecimento , Klee entrou em crise, parou de pintar: ao invés de nascer, a alma nova corria risco de abortar. Quando  tudo parecia perdido,  certo dia porém  o pintor começa a desenhar com a mão esquerda, brincativamente.  Essa mão esquerda não frequentou academias ou escolas, também nada sabia de cânones ou regras, como sabia a mão direita. Nunca ficou vaidosa por receber elogios, tampouco segurou, ostentando, prêmios e títulos, como se habituou a mão direita  . Se a mão  direita adquirisse a capacidade de falar  e alguém lhe perguntasse  qual a opinião dela sobre a mão esquerda, com certeza ouviria: “ a mão esquerda é vagabunda: e ainda quer tirar meu poder, subversiva!”.  As duas mãos tinham a mesma idade biológica, mas era a mão esquerda o corpo novo que a alma  nova exigia . O   artista descobriu-se novamente criança nesta mão: cada desenho era o desenhar de novo nascendo ,  fazendo-se como novidade, experiência e descoberta. Ao desaprender o “acostumado”  da mão direita, Klee  redescobriu a pintura e a ele mesmo: reencontrou a alegria da criança cujo brincar e inventar é a coisa mais séria e verdadeira. Mais do que pintar, o pintor inventava “natências”. Toda  gramática, não importa qual, dá poder à mão direita ; porém  a arte de se reinventar só a pode desenhar um instrumento não domado: a mão esquerda  . A mão direita se liga a uma metade do cérebro apenas , enquanto  a mão esquerda se liga à outra metade  do cérebro e ainda ao coração inteiro que, assim como ela, também está do  lado esquerdo.




Klee



Mirá também ensinou ao poeta desaprendizagens



Deleuze lembra que “vagabundo” vem de “vaga”:  "vagabundo" é "aquele que vaga". “Vaga” também é “onda”: “as vagas do oceano”. A “vaga” é modulação de um espaço liso, seja o oceano ou o deserto ( as dunas também são vagas). O vagabundo é nômade-andarilho  de espaços lisos, o oposto do sedentário  de espaços estriados ( codificados). As vagas, diz Manoel , são “formas em rascunho”. Assim são os desenhos de Klee e Miró , bem como a poesia de Manoel: formas em rascunho, vagas de um oceano múltiplo e aberto ( o mesmo oceano que pensou  Espinosa ).

sábado, 13 de abril de 2019

o Quilombo-Grêmio



Foi quando eu fazia o antigo segundo grau, ainda sob a ditadura militar, que eu descobri a política. O regime militar  tentava escondê-la, sufocá-la, exterminá-la. Mas não conseguiu matá-la. E foi lá em Marechal Hermes, em um colégio para filhos de trabalhadores, que a política foi nos encontrar. Foi a maior descoberta da minha vida , pois foi ali que o mundo começou a fazer sentido, e estudar história , geografia e até mesmo literatura ( não tínhamos  filosofia e sociologia ainda), não era apenas ler livros, mas ler o mundo. Não foi em sala de aula que esse encontro com a política aconteceu, pois  a política estava proibida de pisar lá.  Foi no auditório do colégio que ela nos achou. Explico: àquela época, eu e um grupo de alunos queríamos fazer o grêmio estudantil, porém o diretor do colégio, um simpatizante dos milicos, proibia. A gente não sabia que organizar um grêmio já era fazer política. Então,  a gente fingiu que estava  fazendo uma peça. Mas a gente se reunia mesmo era  para começar a organizar o grêmio. Quando o diretor reaça aparecia para espionar, a gente fingia que estava ensaiando uma peça. Ele perguntava: “cadê o roteiro?”, e a gente respondia: “é uma peça experimental sem roteiro, coisa nova: ‘teatro do absurdo’ de um tal de Ionesco...”. E o reaça se ia, desconfiado. Até que um dia entrou um homem no auditório e nos deu um livrinho mimeografado. Ele nos disse: “Não deixem o diretor ou os professores  apanharem  vocês com isso! Leiam escondido!”. A  gente nunca tinha visto  aquele homem. Na capa do livrinho estava escrito: “Manifesto Comunista, de Marx e Engels”. Quando a gente abriu para ler, veio o susto: a gente não sabia que palavra podia pôr abaixo a ordem do mundo. Aquelas palavras nos puseram no mundo, mundo este no qual a gente se achava, até ali, meio estranhos nele. Corremos atrás de mais palavras assim: que não fossem apenas letras no papel. E foi assim que descobrimos depois Bakunin ( que me tocou mais, confesso... ) e  Rosa de Luxemburgo; mas também Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro , Sérgio Buarque de Holanda e o que mais nos ensinou em termos de política: Zumbi dos Palmares. Escola sem política, como quer esse governo, não é escola: é caserna, fábrica de alienados ou prisão para adestramento forçado.





segunda-feira, 8 de abril de 2019

nise & espinosa


Nise da Silveira cita Bachelard quando este dizia que nossa saúde mental , ou a falta dela, depende mais do que fazemos com nossas mãos do que daquilo que teorizamos com nossa mente . Talvez por isso, depois de filosofar, Espinosa se dedicava a polir lentes, como um simples artesão; Wittgenstein largava os livros para plantar flores, feito um jardineiro; Deleuze costumava desenhar entre as aulas, nisto se assemelhando a um cartógrafo; Plotino deixava seus profundos estudos metafísicos para ir alimentar com as próprias mãos crianças órfãs, como se fosse um cozinheiro.
Sobretudo para aqueles cujo pensamento ousa ir muito longe em busca de terras novas, para ele não se perder, é bom mantê-lo unido a mãos que tocam, transformam ou cuidam da realidade próxima, mãos que nada têm a ver com a “mão invisível” e pragmática do mercado e sua lógica de apenas contar dinheiro, sem se importar eticamente de onde ele veio. Somente mãos que cuidam ,alimentam ou transformam podem ser a afetiva âncora do pensamento no aqui e agora, sem fazê-lo perder o horizonte aberto para o qual sempre decola .
                                                                                                               
(imagem: “Cartas a Spinoza “, maravilhoso livro de Nise da Silveira, criadora do Museu de Imagens do Inconsciente)





desenho de Deleuze:

sábado, 6 de abril de 2019

hércules


Hera , a esposa de Zeus, descobriu que foi traída. Ela resolve então procurar pelo filho nascido do amor  de  Zeus com uma simples mortal. Sua intenção era encontrar a criança e tirar-lhe a vida, essa seria sua vingança. Ela procurou em todos os lares, porém não achou  a criança. Ao passar  por um bosque a deusa viu uma criança deixada ao pé de uma árvore. Ela ficou impressionada com a beleza e  vigor da criança. Decidiu então  que alimentaria com seu próprio leite aquele ser  recém saído de um ventre. Esse ato imortalizaria a vida que batia intensamente no coração do rebento. Quando a deusa segurou no colo a criança e a aproximou de seu seio, o bebê foi com tal ímpeto para sorver a  vida  que a deusa ,  surpreendida,  afastou rapidamente a criança : o jorro do leite esguichou ao céu e virou a via láctea, o “caminho do leite”. Sem que a deusa soubesse, a criança que ela queria matar era a mesma que ela alimentou com a vida imortal que estava em seu peito ,   vida esta que   a criança ajudou a libertar,  para  no céu virar estrelas.   E foi assim que aquela criança se tornou o invencível Hércules, cuja força não vem de músculos, como erradamente se interpreta, mas do desejo de querer viver que sorve a vida com toda a potência  que  pode.



O nascimento da via láctea, de Rubens )


sexta-feira, 5 de abril de 2019

manoel e a não velhez


O poeta Manoel de Barros já passava dos 80 anos quando um editor  pediu que ele escrevesse  três memórias: da infância, da vida adulta e da velhice. Afinal, quem chega aos 80 anos parece que tem muito a  falar de si...Depois de algum tempo, o poeta enviou ao editor o seguinte livro: “Memórias da primeira infância”. Meses depois, nova publicação: “Memórias da segunda infância”. Após novo intervalo, outra obra nasceu: “Memórias da terceira infância”. Como as memórias da vida adulta e da velhice não apareciam, Manoel foi indagado a respeito, e assim o poeta  respondeu: “ só tive infância, não tive velhez: só narro meus nascimentos”. Para o poeta, a "velhez" não é  uma idade,  a "velhez"  é um tipo de vida, individual ou coletiva, que se perdeu de seu "embrião" . O embrião não está num passado remoto e morto. Mesmo o imenso rio amazonas tem seu embrião lá no alto dos Andes: mesmo há muitos anos a  correr , o rio ainda está a nascer agora, umbilicado às águas novas.  O que para o rio são as águas, para o poeta são as fontanas palavras de seu “devir-criança”:   “A palavra  até hoje  me encontra na infância.” (Manoel de Barros)








quinta-feira, 4 de abril de 2019

a pequena Musa

“Museu” provém de “Musa”. Originalmente, “musa” significa “conhecimento”. Tanto os poetas quanto os filósofos pré-socráticos evocavam as Musas para auxiliá-los na seguinte tarefa: vencer o esquecimento daquilo que não pode ser esquecido. Assim, o conhecimento das Musas não é só intelecto ou razão,  ele é , também, recordação: “re-cordis”, “trazer de novo ao coração”, como lugar do Afeto.
As Musas expressavam a  memória do que não pode ser esquecido. No mito, as Musas são filhas de Zeus , divindade ligada à justiça e à ética, com Mnemósyne, Deusa da Memória.  Zeus uniu-se a Mnemósyne após uma guerra vencida por ele contra as forças da barbárie vinculadas à  ignorância em seus variados aspectos. Dessa união entre a ética e a memória nasceram as Musas, divindades da cultura e do patrimônio. Assim,  todo patrimônio cultural  nasce do matrimônio gerador de uma ética da memória, de uma memória da ética.
A cultura não existe apenas para relembrar algo que se deu no passado e passou. A cultura existe para  fazer lembrar e dar a conhecer que se é possível vencer a barbárie da violência física e simbólica. Foi este acontecimento a origem do museu: a luta contra a ignorância, que apenas o intelecto sozinho não pode vencer. Não a ignorância em relação a datas e regras, mas ignorância acerca do que é a justiça, a ética, a beleza, a natureza, enfim, a vida. É esse acontecimento que dá ao museu o seu sentido. Mesmo que destruam todos seus prédios , não podem destruir sua ideia geradora.
Na singela foto , vemos a bailarina em seu gesto eterno  imortalizado nas tintas. Na menininha, esse gesto renasce, outro. Ele renasce em seu corpo, em seu jeito: a criança interpreta, dançando, o que é dançar , reinventando o dançar à sua maneira. Que a pequenina Musa, em sua inocência brincativa,  nos ajude a não esquecer o que precisa ser sempre lembrado: que é possível vencer, com cultura e conhecimento, a barbárie e suas várias faces.


a metafísica

                     O QUE SIGNIFICA METAFÍSICA?[1]

A metafísica é a disciplina mais nobre da filosofia. Ela é a mais digna, a mais elevada, a mais afastada dos interesses meramente utilitários ou pragmáticos. A palavra metafísica é composta de duas outras palavras que se agenciaram: meta e physis. Erradamente se traduz “meta” por “além”. Isso pode levar a imaginar que a busca pela metafísica seria como uma viagem de desterro, um ir para longe, para o alto e distante. Às vezes perguntamos a  alguém: “qual é sua meta?” . Isso pode significar: “o que você quer alcançar? O que você deseja?” .Se alguém perguntasse à semente qual é sua meta, ela responderia dizendo que sua meta é ser uma  árvore, uma árvore que dê frutos e sementes. Se alguém indagasse às letras qual é sua meta, talvez elas respondessem: minha meta é ser palavra poética no papel ou na boca de alguém que canta. É pouco provável que letras tivessem como meta tornarem-se palavras mentirosas, que negassem a si mesmas, privadas de dignidade. Em metafísica, dignidade é a virtude do que é verdadeiro, autêntico.
A meta de uma semente de abacateiro é tornar-se uma árvore: o abacateiro. Mas a árvore que a semente será já existe na semente, como a sua razão de ser ou finalidade. Essa árvore que existe na semente está além da mera existência material da semente, porém não lhe está fora, distante. Essa árvore enquanto meta da semente é sua essência. A árvore, enquanto essência, já está na semente, mas não enquanto matéria. Essa essência é a forma. A forma é a causa de a semente se tornar árvore. Uma semente de abacateiro não se torna um abacateiro devido ao acaso: há uma razão de ser. Por isso, a semente tem na forma a sua finalidade de existir. A essência-árvore é a causa de a semente se tornar árvore. Contudo, não é uma causa que age de fora, tal como um cinzel moldando o mármore. A essência é uma causa que age dentro, no ser mesmo da semente, e dá inteligibilidade à sua existência individual de semente. É a  essência-árvore que dá vida à semente. Essa essência ou forma existe metafisicamente na semente.
Assim, meta não é o que está além no sentido de algo a ser alcançado. “Meta” também é um movimento de alcançar o que precisa ser criado. Meta-físico não é o que está além do físico , como o céu está além do chão. O meta é o que dá sentido ao físico, o organiza, o faz ter uma forma, um aspecto, um querer. Uma realidade metafísica não é uma realidade distante e além, ela é uma realidade diferente da realidade física, e não está além ou aquém desta, mas junto, embora diferente.
Toda realidade metafísica é incorpórea. Porém, nem tudo o que é imaterial é metafísico. Por exemplo, posso imaginar que estou a correr em uma praia, embora eu esteja na verdade aqui sentado no sofá de casa. Essa imagem ou fantasia não existe por si mesma, ela existe em minha mente apenas. Ela não tem autonomia. Essa imaginação pode ser apenas o efeito de meu enfado de estar em casa. Tal fantasiar existe apenas enquanto realidade psicológica. As realidades psicológicas existem em razão das vivências de um ego. É sempre o ego , ou algo que sobre ele age, que explica o surgir de uma imagem ou imaginação. O mesmo aconteceria se eu , ao invés de imaginar , me lembrasse da ocasião em que estive em uma praia e corri sobre sua areia. Coisa diferente, no entanto, é se indagar acerca do que é o eu, ou do que é a imaginação ou do que é a mente. Para tais coisas, seria preciso formar ideias. E ainda mais: indagar acerca do que é uma ideia! A metafísica não se encerra nos produtos da mente, ela indaga acerca do que é a mente e também sobre o que existe fora dela.
A metafísica conheceu ou conhece duas maneiras de se expressar. A primeira delas se confunde com sua origem grega, ao passo que a outra nasce e traduz a posição moderna, mais próxima de nós no tempo. Entre os gregos, a metafísica nascia de uma experiência. Não a experiência com algo já visto, mas experiência com algo que põe no limite todo ver. Não era uma experiência meramente teórica ou conceitual. O motor dessa experiência era um afeto: a admiração ou o espanto. Não o espanto ou admiração diante de um fenômeno natural ou fato grandioso , tampouco espanto ou admiração diante de um prédio enorme ou um artefato técnico feito pelo homem. O espanto era em relação à existência. Não exatamente com a  própria existência daquele que se admira  ou com a existência  de algo externo que se vê ou percebe. O espanto e admiração eram em relação à existência inteira, toda, imensurável, infinita, absoluta. Era uma admiração por aquilo que não se podia abarcar, com o olho ou com o pensamento, mas que  estimulava o olho e o pensamento, mais do que as cores , para aquele, e mais do que teorias, para este. Esse espanto ou admiração eram afetos afirmativos, expansivos, confiantes, que faziam a vida própria transbordar para fora e ir além (“meta”).
Essa admiração pelo infinito  vinha sem aviso, sem preparação ou estudos em livros. Ela nascia de um certo desapego ao habitual e familiar, para que o grego pudesse se  familiarizar com o mais estranho e inaudito. Era uma espécie de acordar de um sono, sono este ao qual a doxa  chama de realidade. Esse despertar não se fazia apenas com o espírito, pois dele também participava o corpo, através de um olhar que se metamorfoseava em uma visão fontana, diria o poeta. Era o inaugurar do ver no ato mesmo de ver, e isso depois de tanto olhar sem ver. Nesse olhar o conhecimento e a poesia ainda estavam unidos no mesmo jorro indistinto da vida ,  e esta convidava o pensamento  a ser o seu destino, livremente.
Enquanto a metafísica grega se apoiava no ponto de exclamação, será o ponto de interrogação a motivação da metafísica moderna. A metafísica moderna pode ser expressa em uma pergunta: “por que existe o ser e não, antes, o nada?”. A metafísica moderna introduz algo impensável para o grego: o nada. Quando Parmênides, por exemplo, fala em não-ser, este não é o "nada", e sim ignorância do Ser.
Enquanto no mundo grego a metafísica constituiu o acabamento ou fundamentação das ciências, no mundo moderno haverá radical cisão entre a ciência e a metafísica. A ciência moderna se debruça sobre fatos ou fenômenos: ela não indaga sobre o ser, ela procede mediante recortes que lhe darão seus respectivos objetos. Assim, a física não estuda o ser, mas os objetos físicos. A química não estuda o ser, e sim os objetos químicos. Para um cientista, pensar o nada é loucura...além de perda de tempo. E mais perda de tempo ainda é pensar o Ser...
O mundo grego desconheceu o que é isso: o nada. Segundo Heidegger, a ciência é um esquecimento do ser, ela se inscreve  ainda dentro da história da metafísica, mas como seu epílogo, como o lugar de um esquecimento daquilo que tornou o humano humano: a indagação ,sem fins utilitários, acerca do sentido da existência. Para Heidegger, está vedado para nós para todo sempre aquilo que os gregos experimentaram e chamaram de existência. Não sabemos mais o que é isso, ficamos apenas com a letra e nos fugiu o espírito.




[1] Texto elaborado  como complemento às aulas.


                          

(Haroldo de Campos)




quarta-feira, 3 de abril de 2019

procustos, ontem e hoje...


No mito, Procusto era um personagem que oferecia uma “cama”  fabricada por ele às pessoas que passavam cansadas  por uma estrada. Quando as pessoas se deitavam na tal cama, porém,  acontecia algo estranho: ninguém cabia direito nela. Quando  a pessoa era maior do que a cama , Procusto pegava um machado e decepava a   cabeça e os pés excedidos. Quando, ao contrário, a  pessoa  era menor  , Procusto   amarrava as pernas e os braços dela com correntes ,  esticando brutalmente   até desmembrá-los...  Ninguém sobrevivia àquela cama  transformada em túmulo: querendo que  cada um se amoldasse  à força, Procusto acabava matando todo mundo.  Quando as pessoas reclamavam, Procusto pegava uma régua e media com   rigidez a cama, e dizia: “A cama é   perfeita, exata: cada lado é idêntico ao outro . A régua não mente! O defeito está em vocês : diferentes e heterogêneos. Amoldem-se , mesmo que se violentando, e caberão na minha Verdade.” A cama de Procusto pode receber  vários  outros nomes:  “Minha Opinião”,  “Meu Credo” ...O que não couber   em tais “fôrmas”, Procusto  vingativamente corta, nega, mata – física  ou simbolicamente .  Procusto  odeia tudo que “não se pode passar régua”, diria Manoel de Barros. Esses  Procustos que se encontram  no poder estão sempre querendo  decepar nossa cabeça  e nos tornar acéfalos  a qualquer preço, ao  dizerem que  “ o nazismo  foi de esquerda” , ou que “ a terra é plana” , ou que “não houve ditadura em 64” , ou que  “o guru deles  é filósofo”...