sábado, 31 de maio de 2014

Pessoa, as duas paisagens: a de dentro e a de fora


Quem tem alma não tem calma.
Sou minha própria paisagem: 
assisto a minha passagem,
não sei sentir-me onde estou.

Fernando Pessoa

















Vaga, no Azul Amplo Solta



Vaga, no azul amplo solta,
Vai uma nuvem errando.
O meu passado não volta.
Não é o que estou chorando.

O que choro é diferente.
Entra mais na alma da alma.
Mas como, no céu sem gente,
A nuvem flutua calma.

E isto lembra uma tristeza
E a lembrança é que entristece,
Dou à saudade a riqueza
De emoção que a hora tece.

Mas, em verdade, o que chora
Na minha amarga ansiedade
Mais alto que a nuvem mora,
Está para além da saudade.

Não sei o que é nem consinto
À alma que o saiba bem.
Visto da dor com que minto
Dor que a minha alma tem. 

            Fernando Pessoa



"Sopra o vento", poema de Pessoa na voz de Joana Amendoeira:









quinta-feira, 29 de maio de 2014

manoel de barros: o andarilho


Deixe-me ir, preciso andar...
Se alguém por mim perguntar,
diga que só vou voltar
depois que me encontrar.

Cartola


A linha de fuga é produção de uma desterritorialização
que se reterritorializa em um novo território  que não lhe pré-existe.

Deleuze & Guattari



- O andarilho

“O andarilho sabe tudo sobre o nada" ( 1997, p. 47). Este nada é o dos nadifúndios .Ele anda "atoamente" , pois “vagabundear é virtude atuante para ele” ( 1997, p. 47). “Vagabundear” provém de “vaga”, “onda”. O vagar das ondas. Edmond Husserl, em seu livro Origem da Geometria, afirma existir uma proto-geometria cujo objeto de estudo são as “essências vagas”, também chamadas de “essências anexatas”. Não se deve confundir o anexato com o inexato. O anexato é inexato por essência, e não por acidente. Ele não é, portanto, uma cópia imperfeita do Exato. O anexato possui uma forma, mas é uma forma "vaga", e “vaga” é o nome que também se dá ao ritmo do mar, enquanto fluxo. A vaga expressa um ritmo, mais do que um ir em linha reta. O anexato é, como diz Manoel de Barros, uma "forma em rascunho".A forma de tudo aquilo que é anexato constitui uma passagem onde o que lhe está dentro lhe desborda, posto que em intensa variação.Enquanto a forma precária do inexato tende a se apagar, a forma em metamorfose do anexato não pára de se reinventar.
Os andarilhos não são exatamente os que andam em estradas já prontas, eles não são peregrinos ou meramente viajantes. Os andarilhos são os que inventam caminhos, sobretudo os caminhos que inauguram sentidos para a linguagem: sinto que “a estrada bota sentido em mim" ( 2010b, p. 59); o sentido está no meio da estrada, e não no seu começo ou fim.  E é talvez por isso que “o andarilho não precisa do fim para chegar”,(1996 p. 71).Os andarilhos “carregam a liberdade deles nos passos que não têm onde parar” ( 2010b, p. 168): “no fundo os andarilhos só estão apalpando a liberdade. O caminho deserto deles é viver debaixo do chapéu” (2010b, p. 124).O “caminho deserto” é um “espaço liso” no qual se produz uma linha de fuga (DELEUZE E GUATTARI, 1980).Os andarilhos não são retirantes ou imigrantes, eles são itinerantes: eles inventam itinerários.O andarilho exerce a "pré-ciência da natureza de Deus". A "pré-ciência" é conhecimento das "pré-coisas", é conhecimento daquilo que é forma em rascunho.

- Obras de Manoel de Barros consultadas:

Compêndio para uso dos pássaros. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1961.
Gramática expositiva do chão. Rio de Janeiro: Ed. Tordos, 1969.
Arranjos para assobio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
O guardador de águas. São Paulo: Art Editora, 1989.
Gramática expositiva do chão — poesia quase toda. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992 ( segunda edição).
Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1996 .
Livro de pré-coisas. Rio de Janeiro: Record, 1997a.
O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 1997b .
Retrato do artista quando coisa. Rio de Janeiro: Record, 1998.
Exercícios de ser criança. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999.
Ensaios fotográficos. Rio de Janeiro: Record, 2000.
Memórias inventadas – a infância. São Paulo: Editora Planeta, 2003.
Concerto a céu aberto para solos de ave. Rio de Janeiro: Record, 2004.
Cantigas por um passarinho à toa. Rio de Janeiro: Record, 2005.
Memórias inventadas – a segunda infância. São Paulo: Editora Planeta, 2006.
Poemas rupestres. Rio de Janeiro: Record, 2007.
Encontros: Manoel de Barros . Rio de Janeiro, Azougue, 2010a (Org. Adalberto Müller).
Memórias inventadas - as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta, 2010b.
Menino do mato.São Paulo : Leya, 2010c.
Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010d.
Escritos em verbal de ave. São Paulo : Leya, 2011.

Outras referências:

ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Pioneira, 2000, 13ª edição.

BARBOSA, Luiz Henrique. Palavras do chão: um olhar sobre a linguagem adâmica  em Manoel de Barros. Belo Horizonte: Fumec/Annablume, 2003.

CAVALCANTI,Ana Símbolo e alegoria – a gênese da concepção de linguagem em Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2005

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka - pour une littérature mineure. Paris:
Minuit, 1975.

_____________. Mille plateaux. Paris: Minuit, 1980.

_____________. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34,1992.

LISPECTOR, Clarice.A Descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 1984.

PESSOA, Fernando. O eu profundo e os outros eus.Rio de Janeiro: Nova Fronteira,2006.

RANGEL, Pedro Paulo. Manoel de Barros por Pedro Paulo Rangel.Coleção Poesia Falada, vol. 08.CD.Rio de Janeiro: Luz da Cidade, 2001.

SOUZA, Elton Luiz Leite de. Manoel de Barros: a poética do deslimite. Rio de Janeiro: 7letras/FAPERJ, 2010.



















quarta-feira, 28 de maio de 2014

patrimônio tangível,patrimônio intangível

Cego é quem vê só até onde a vista alcança;
mudo é quem só se comunica com palavras.
Candeia


 
Vem do Iluminismo a idéia de que existe uma dimensão material da cultura. Não apenas os livros e os objetos artísticos ensinam ou documentam, as realidades materiais também podem ser documentos ou testemunhas  que “falam” acerca de si próprios e daqueles que os fizeram, seja este “autor” o homem ou a própria natureza.
Essa percepção  de que a cultura também se inscreve na materialidade rompeu com a visão cartesiana,segundo a qual apenas o imaterial seria portador dos valores espirituais e humanos.
Todavia, a valorização do material  se fez ao preço da perda do que outrora era sua alma.Toda e qualquer indagação fora do útil passou a ser denunciada como metafísica romântica.O imaterial começou  a ser identificado com a exoticidade de povos sem a "verdadeira cultura", exatamente a cultura material da civilização europeia  e da América do Norte.O imaterial seria tão somente  mitologia  de povos atrasados que ainda não acederam à razão civilizada. Tanto a direita quanto  certa  esquerda se uniram  nesse ponto: desconsiderar o imaterial, o intangível. Este seria,quando muito, a intromissão da subjetividade na ordem objetiva das coisas.
Para os que teorizaram  mudar tal sociedade, a Revolução não viria pela experiência com  o intangível e com as ideias,descobrindo assim sua força libertária, mas pela mudança de mãos na posse do tangível : este seria tirado,mesmo que à força, das mãos da burguesia e passaria para as mãos  do Estado.Ora, o intangível é o campo das ideias. A ideia não é propriedade do capital, tampouco do Estado. Por isso,  as ideias foram relegadas a um segundo plano, como meras coadjuvantes no protagonismo das coisas,estas sim positivamente dadas .A idéia, ao contrário, é sempre um problema para aqueles que gostam de construir  cercas, físicas ou simbólicas,  em torno das coisas.
A contracultura de 68,como movimento de resistência, não foi exatamente um movimento para destruir a cultura reativamente. Diferentemente, a contracultura lutou posicionando-se a partir dos fluxos do intangível que a cultura do tangível asfixiava.  Resistir também é introduzir o popular como dimensão da cultura, como  pop'art e pop'filosofia.
Como o próprio termo indica,o tangível é o que pode ser tocado, medido, cercado, pesado, guardado, fechado em caixas,vitrines ou mesmo em cofres.A realidade tangível mais cobiçada são  exatamente os tesouros, embora poucos, pouquíssimos privilegiados, podem tocá-los e tê-los, às vezes os surrupiando de seus verdadeiros donos ( a história dos colonialismos o atesta,bem como o roubo feito pelos   nazistas dos acervos dos museus pertencentes aos povos que eles dominaram).
Quando o tangível se torna patrimônio,muitas vezes se suspende, paradoxalmente,  o princípio que o faz ser o que ele é, de tal forma que se passa a tratá-lo como se intangível ele fosse, e assim não se deixa tocá-lo.É uma espécie de religião do tangível que assim nasce, religião esta que muito interessa às especulações financeiras  dos mercados de arte .
O intangível, diferentemente, é aquilo que não se pode tocar, pesar,medir. Somente o pensamento e a sensibilidade podem apreender o intangível. O intangível não é o etéreo  ou o abstrato. O intangível   é o sentido,  o sentido enquanto valor.Um valor que não pode ser  reduzido aos valores econômicos, por mais que os mantenedores das universidades e instituições culturais o tentem.O tangível pode ser posse particular de um colecionador.O intangível, diferentemente, é de natureza comum.E o comum não pode ser posse privada ,tampouco posse pública ( como bem do Estado). Do comum se participa.O comum se descobre,se inventa,se institui.
A própria linguagem mostra o quanto colocamos o tangível  à frente do intangível, e o fazemos de juiz deste, já que definimos o intangível de forma negativa: o "in" de intangível é termo negativo, de tal modo que o intangível seria literalmente  o não-tangível,assim como o infinito  é o não-finito.Não se trata apenas  de  mera questão de linguagem:trata-se também, e sobretudo, do modo como representamos a realidade.Imaginamos que o infinito é uma negação do finito,supomos que o intangível é uma negação do tangível.Mas não seria o contrário?Não seria o finito uma negação que tomamos como coisa positiva  exatamente porque nos fechamos ao infinito?Não seria o tangível uma negação do intangível enquanto processo sempre aberto?Todavia,tomar o intangível como positivo não implica em tornar negativo o tangível, pois tal proceder se mostraria refém das dicotomias que apenas veem o preto e o branco,ignorantes que são das heterogêneas e múltiplas cores. Apreender o intangível como positivo reconcilia o tangível com a mudança,com os processos,com os devires, desde que vejamos o tangível como formando um com o intangível.
A quem pertence o intangível? Um objeto tangível pode ser guardado.E o intangível, ele pode ser guardado? Clarice Lispector dizia que aquilo que não podemos  segurar com as mãos devemos aprender apenas tocar,mas com a ponta do pensamento, com a extremidade de nós mesmos, pois é aí que está a sensibilidade:é nessa região que nasce o afeto,o contágio. O intangível só existe se nos contagiarmos com ele, se nos deixarmos afetar.
Desvallées afirma que  o mais potente utensílio criado pelo homem foi o conceito, e este não cabe em uma vitrine. Só o que possui tamanho menor que os limites de uma vitrine pode ser guardado nela.Mas e o que não tem limites? E o que é deslimite? É em nossa alma que o intangível entra,para assim abri-la ao mundo,à natureza,ao social,à linguagem. O intangível entra para que nossa alma salte,voe,invente uma linha de fuga (linha de fuga que a leve, no entanto, até ela mesma, ao seu processo e devir,ao seu crescimento, à sua potência).
Assim, cremos ser uma falsa oposição aquela que fala em  patrimônio tangível/patrimônio intangível. Tal dicotomia é herdeira de uma visão dualista do homem,uma visão cartesiana, que separa espírito e corpo. Muitos são cartesianos sem o saberem, mesmo que seja um cartesianismo pelo avesso ou de cabeça para baixo. Os que priorizam o tangível acabam por reificar a técnica e fazê-la de ídolo ( no sentido de Francis Bacon).Por outro lado,os que se aferram no patrimônio intangível acabam  reféns de um idealismo sem corpo.Um idealismo improdutivo, enfim. Eis a dicotomia: um fazer acéfalo em litígio com um idealismo improdutivo.Um intangível que despreza o tangível é mero platonismo;um tangível que ignora o intangível é ignorância mesmo ( o que nada tem a ver com falta de escolaridade: há ignorâncias tituladas...). 
As dicotomias são como fronteiras rígidas que separam Estados em guerra ou em mútua desconfiança. E é na fronteira dicotômica  que tais Estados colocam seus cães de guarda,para assim impedir as misturas,as linhas de fuga,os agenciamentos,enfim,a produção do comum.
Pensando com Espinosa essa questão,parece-nos que  é um falso problema essa dicotomização do patrimônio (  dicotomia esta que está apoiada mais em questões jurídicas ou administrativas do que culturais ou educativas). Só existe um patrimônio, não existem  dois. Existe um único patrimônio que pode ser apreendido/conhecido mediante duas perspectivas diferentes. O tangível é o intangível mesmo apreendido a partir de uma perspectiva diferente;o intangível é o tangível mesmo apreendido segundo uma perspectiva diferente. Não só o tangível e o intangível são patrimônios, também o são as perspectivas, os olhares,os afetos que os apreendem.
Só existe um único patrimônio que se expressa de dois modos diferentes,como tangível e como intangível. É preciso descobrir e fazer viver esse terceiro que une o tangível e o intangível, sem que eles percam suas respectivas diferenças. Então, existe o tangível, o intangível e as perspectivas que temos deles. Estas perspectivas são o maior patrimônio que podemos cultivar. E a essência da cultura é esse cultivo.
A perspectiva é o conhecimento que também é autoconhecimento, o conhecimento como verbo,como potência:conjugação e agenciamento entre  o pensar, o sentir, o agir e o criar.E o que se cria é sempre um sentido,sentido este nascido no encontro com o patrimônio.Ter uma perspectiva nada tem a ver com emitir uma opinião.Não raro, a mera opinião encobre uma ausência de perspectiva.A perspectiva é a prática do encontro, pois é no encontro que é construído  o comum.










terça-feira, 20 de maio de 2014

Espinosa e a natureza humana

O andarilho alimenta de pernas as distâncias.
Manoel de Barros


A água pode apagar o fogo. Mas a água não existe com a finalidade de apagar o fogo. Basta ela existir como água, basta ela ser o que é, para o encontro dela com o fogo destruir este último.Esta destruição de uma outra existência, que nasce da simples afirmação de si próprio,  nada tem a ver,contudo,com um ódio: o teria se imaginássemos que ela o destrói por alguma finalidade, o que resultaria em considerar a água como boa e o fogo como mau. A água é: é sendo água que dela resultam certos efeitos, como o matar a sede, o apagar o fogo, etc. Estes efeitos se explicam pela essência da água, pela sua maneira de ser.A água não escolheu ser água: ela simplesmente o é e se esforça  para continuar sendo.Disto procede sua alegria e júbilo.Alegria e júbilo de água que ama ser o que é, e que ,portanto,não sente a menor falta ou carência de ser outra coisa,mesmo o ouro.Sendo água, sendo o que já é, a água já é livre, e seria um absurdo supô-la querer ser outra coisa; ou já sendo água,querer no entanto ainda  sê-lo. A água não existe como um todo à parte, ela existe como parte de um todo que não é  apenas água, pois o fogo também é parte do mesmo todo: é a água que destroi o fogo,não o todo.Este conserva o fogo mesmo quando ele é destruído pela água. O todo o conserva nele mesmo , como parte sua.Vejamos um exemplo bem simples tirado da vida: João e Maria viveram o amor.Cada um se sentia parte desse todo, um todo que eles ao mesmo tempo produziam e que os produzia,os singularizando. O amor não era Maria, o amor não era João:o amor era um todo, um comum, do qual Maria e João eram partes vivas.Este todo os fazia se sentir existindo mais. Por algum motivo,termina aquela relação que os unia, mas não a relação de cada um com o amor. Se de fato houve amor entre eles, cada um fará parte do amor que o outro viveu, e quando cada um se lembrar ou tentar compreender o amor, se lembrará do outro como parte do amor, mesmo que aquela relação que viveram não mais exista, desde que ainda exista a relação de cada um com amor. João será parte eterna do amor que viveu Maria,Maria será parte eterna do amor que viveu João.Cada um continuará a existir apenas no amor.Então,talvez cada um compreenderá que o que matou o amor  que viveram não foi o amor,mas outra coisa que agora já não existe mais, posto que não tem eternidade.Quando participamos realmente da eternidade, por um breve instante que seja, ficamos eternamente nela, por mais que o tempo passe.
 Imaginamos que uma coisa morre ou é destruída totalmente quando a supomos um todo à parte.Mas quando a compreendemos como parte de um todo, o que chamamos de morte é o desparecimento  apenas daquilo  nela é a parte que imaginamos poder existir sem o todo.  Enquanto parte do todo o fogo é indestrutível, já que indestrutível é o todo.Imaginar uma coisa como um todo à parte é como traçar ao redor dela um limite, um contorno, que a faz perder mais do que ganhar, já que esse limite é, na verdade, uma negação.Se isolarmos a onda do oceano, traçando-lhe um contorno , a onda deixa de existir, já que ela perderá o todo, perdendo igualmente  a si mesma. O que vale para a onda também não valerá para o homem?O que chamamos de ego não seria um contorno através do qual nos negamos como parte de um todo?O certo é que a onda se distingue do oceano  sem precisar de um contorno.Ela se distingue sendo um modo do oceano,isto é,  sendo uma maneira de ele se expressar.O que verdadeiramente se distingue , afirmando sua diferença, o faz sem se separar.Somente nos distinguimos realmente afirmando-nos forma em rascunho.
 O todo não é soma de todas as coisas, pois somente podemos somar as coisas que pertencem a um conjunto fechado, finito. Sendo o todo infinito, ele apenas multiplica, ele não soma e nem se deixar somar. Se ele não se deixar somar, também não se deixa diminuir. Ele apenas multiplica e se deixa dividir, desde que em cada parte ele esteja,mas de uma forma que não é numérica ou quantitativa.
O que vale para água vale igualmente para tudo o que existe,incluindo o homem. O homem não pode escolher ser um homem, pois ele já o é antes de toda escolha.O homem o é por necessidade, e não por escolha.Ele pode, sim, escolher ser um lobo, ou uma hiena,ou uma cascavel, e imitar o comportamento destes seres, sendo ainda um homem. Mas a escolha por ser tais coisas não o torna tais seres, e sim o diminui enquanto homem, embora ele imagine que o aumente.O homem livre não escolhe ser homem, ele simplesmente afirma o ser que já é:ele se afirma como maneira ou modo de ser da Natureza. E esta  não é apenas o homem, ela também é a cascavel,o lobo , a hiena, mas não como tais seres são quando os quer imitar um homem que ignora o que é ser homem.
Várias coisas podem destruir o homem, incluindo outro homem. Mas quanto mais em seu íntimo o homem ligar-se ao todo, o todo indestrutível que sempre produz e nada destroi,mais ele já estará conservado na eternidade, como parte singular dela.Ele estará conservado não como o cadáver no formol, ou o espírito na letra; ele estará conservado como a semente  que continua a existir na árvore, como a criança que continua a existir no adulto.





quinta-feira, 15 de maio de 2014

as infâncias do poeta


O devir-criança em Manoel de Barros

Em anos recentes, já  com mais de 80 anos, uma idéia foi apresentada a Manoel de Barros: poeticamente, escrever uma memória.Afinal, muito o poeta já havia vivido e escrito. Tanto, que nem seria uma memória, seriam memórias: da infância, da mocidade e da velhice[1]. A primeira memória, a da infância, veio ao mundo. Ela surgiu expressa em um “inauguramento  de falas” ( 1992, p.298),  ela  nasceu singular e múltipla , pois  o poeta nos fala não apenas de uma, mas de três infâncias: a primeira, a segunda e a terceira. Parece-nos que não se trata de uma ordem baseada em cronologias, a primeira infância não é mais infância do que a segunda e a terceira. Há apenas uma infância, e esta é múltipla, heterogênea, inumerável. Primeira, segunda e terceira são distinções intrínsecas de uma mesma infância. As distinções extrínsecas são aquelas nas quais os termos distintos permanecem exteriores uns aos outros, como as partes de uma pedra que se parte, ao passo que as distinções intrínsecas expressam partes que, embora diferentes, expressam o mesmo todo que em cada uma se expressa diferentemente, como  o tema de uma polifonia.
Cada parte é uma distinção intrínseca de um mesmo todo, e este não lhes permanece exterior, dado que  lhes é íntimo, tal como a cor verde é íntima a cada grau seu, a cada grau de verde O todo da vida do poeta é tão vário e amplo, que vai muito além de sua vida pessoal, e é por isso que este todo nada tem a ver com as vivências , perceptivas e memorativas, de um “eu”. O todo, do qual cada infância é uma parte, este todo é um nós, do qual fazem parte outros seres que não o poeta, mas que ao o lerem sentem que aquela infância lhes concerne e vive em seus íntimos, como Afeto não pessoal de um devir-criança:  "Vou até a infância e volto" (  2010a, p. 147 ).
No poema “Achadouros”, Manoel de Barros afirma que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com elas: “há de ser como acontece com o amor”. E é por isso que o poeta é aquele que diz “eu-te-amo a todas as coisas” (  1992, p. 316). Mais do que pela ação de algo externo que nos torna passivos, o contágio é a comunhão de cada coisa com outra pela experiência daquilo que lhes é íntimo, e que “desabre” cada coisa e as torna “pré-coisas”: matéria de poesia.
Enfim, vieram ao mundo as três infâncias. Como as memórias da mocidade e da velhice não nasciam, o poeta foi indagado a respeito, no que respondeu: “ só tive infância”. Ele diz que em seu lápis, na ponta do seu lápis, “há apenas nascimento” ( 2010a, p 135), “só narro meus nascimentos” (  1992, p. 261). A “velhez não tem embrião” (2010a, p. 98). A velhez não é propriamente uma idade, mas a impossibilidade de se perceber como “forma em rascunho”, como minadouro de sentidos. A palavra que apenas informa tem essa velhez jornalística, uma vez que para o jornal de amanhã, para a vida de amanhã, ela já será cadáver: “A palavra  até hoje  me encontra na infância” ( 2010a, p.111).




[1] Esse projeto é explicitado em texto do Editor presente na contracapa de Memórias inventadas: as infâncias de Manoel de Barros, São Paulo: Planeta, 2010.







domingo, 4 de maio de 2014

marginal paisagem








Marginal é quem escreve à margem,
deixando branco a página
para que a paisagem passe
e deixe tudo claro à sua passagem.

Paulo Leminski


*** *** ***

DURAÇÃO


Com a mão direita segurando o passado,
para que não fuja,
e com a mão esquerda estendida ao futuro,
para que me puxe,
abro o meu coração para que nele entre o presente.







manoel de barros: a poesia como um afloramento de falas

Eu sou dois seres.
O primeiro é fruto do amor de João e Alice.
O segundo é letral:
É fruto de uma natureza que pensa por imagens,
Como diria Paul Valéry.
O primeiro está aqui de unha, roupa , chapéu
e vaidades.
O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades
frases.
E aceitamos que você empregue o seu amor em nós.

Manoel de Barros


A natureza produz os seres; a poesia produz sentido. O poeta produz o sentido dos seres que a natureza produz. O poeta possui o olho para ver esse processo;ele o vê vendo-se na eucaristia do verbo com o substantivo, para dessa maneira “inventar comportamentos” verbais. O poeta se veste com a natureza, para assim ser camaleão, “Ninguém”.
O poeta se desfaz do seu ego e da sedução das propriedades e títulos: ele divina o chão e descobre que é daí que nasce o voo. Mas um voo “fora da asa”, feito pelo tranver as coisas tendo o “condão para sê-las”.
O poeta é um agente coletivo . Por intermédio dele, dá-se um “afloramento de falas” da coletividade feita não só de homens, mas de tudo que existe e não existe , pois “as coisas que não existem são mais bonitas”. E estas o poeta as colhe em seus “nadifúndios”.

No escrever o menino viu
que era capaz de ser
noviça , monge ou mendigo
ao mesmo tempo.

O nadifúndio é a Terra de um povo de criadores, sem “existidura de limites” (tais como nacionalidade, preferências partidárias, grau de instrução, cor da pele, tempo, espaço, língua...). O nadifúndio é o “território liso”, “nômade”, que o poeta inventa dentro da língua, fazendo esta pegar delírio, para em seu deslimite sonhar, criar, inventar .

 Cabe à poesia curar a linguagem do mais triste dos delírios: o de uma língua-clichê que impede um “afloramento de falas”.


trecho do livro:


sexta-feira, 2 de maio de 2014

regeneratio 2





Poesia pode ser que seja fazer outro mundo.

Manoel de Barros


Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento,
prisão, hospital, fábrica, escola,família.
Há novas forças que se anunciam: são as sociedades de controle que estão
substituindo  as sociedades disciplinares. 
"Controle" é o nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que Foucault 
reconhece como nosso futuro próximo(...).
Não se deve perguntar qual é o regime mais duro,ou o mais intolerável,
pois é em cada um deles que se enfrentam as liberações e as sujeições(...).
Muitos jovens pedem estranhamente para serem "motivados",
e solicitam novos estágios e formação permanente;
cabe a eles descobrir a que estão sendo levados a servir, 
assim como seus antecessores descobriram, não sem dor, a finalidade das disciplinas.

Deleuze


DIÁLOGO 7

- O Rei baixou um último decreto.
- Do que trata?
- Expressamente, determina: “É proibido pensar”.
- Qual inimigo pretende tal decreto enquadrar?
- Não se sabe ao certo... Segundo se diz, esse inimigo está em todo lugar: ele ameaça a Sociedade de Controle. 

- O que a Sociedade de Controle controla?
- Ela somente pode controlar o que se mexe e se extroverte.Escapa-lhe o que é nômade por dentro, e que fica quieto e em silêncio, e que ouve mais do que fala.Por isso, a Sociedade de Controle estimula os trânsitos , os posts, os cartões, os chats,as milhagens, os lisings, os canais...Outrora, era se fechando e imobilizando entre os muros e paredes  que se exercia o poder sobre os corpos, embora a alma sempre escapasse em suas linhas de fuga inventadas,literárias, filosóficas,poéticas,marginais, místicas; hoje,o poder estimula que o corpo se mova e circule,com a condição de que a alma esteja na caixa...
-Que caixa?
- As que têm na frente uma tela.Enquanto a mente estiver seduzida por uma caixa,o Rei saberá onde ela está: ela estará presa.Mas o  Rei teme   que o tal  inimigo esteja dentro.
- Dentro de onde?
- Dentro de tudo que é margem: favelas, desejos, poetas, loucos, crianças.
- Mas como saber?
- Não queira saber, apenas ajoelhe-se e baixe a cabeça .
- Ajoelhar e baixar a cabeça diante do Rei?
- Não apenas diante dele. Também diante  de seus representantes: as estatísticas, as medianias, as "metas",o sacrossanto mercado e, sobretudo, a lógica. Nunca se esqueça de dizer que está tudo bem,sobretudo ao seu carrasco. E não se esqueça também de sempre  atualizar a Suma e o Vade Mecum das cartilhas que  lhe autoajudam a atrair o amor, o prazer, o sexo, o dinheiro, o sucesso e milhares de visualizações em seu vídeo . Lembre-se: sexta-feira é dia de ficar bêbado, e na segunda o Rei quer que todo mundo fique triste. Leia o bestseller que a propaganda recomenda. Para dúvidas existenciais, consulte um psicólogo, jamais ouse tentar encontrar um sentido por si mesmo.
- Que polícia prenderá os infratores ao decreto?
- A polícia do pensamento. Foi criada ontem. Cuidado...
- Cuidado com o quê?
- Cuidado com tudo. Vê aquela câmera?
- O que tem ela?
- Ela tem sensores que captam idéias ainda não catalogadas.
- Catalogadas?
- Sim, o utilitarismo pragmático catalogou todas as idéias que valem a pena pensar. O CNPq financiou o projeto. Teve até concurso público para selecionar esses polícias. 10 mil por mês de salário, exige-se D.E.

- O que é D.E?
- Dedicação Exclusiva.
- E os poetas?
- Cuidado com o que diz....
- E os filósofos?
- A câmera virou para cá...precisamos ir...
- Ir para onde?
- Você pergunta demais. Disfarça e sorria...E lembre-se: a ciência explica tudo. Explica o amor, a morte, a vida, o tempo... O código genético é só mais uma gramática. O google tem todas as respostas, ao menos para as perguntas que são permitidas e valem nota na prova.Também está proibido fazer filme que ninguém entende.
- Como fugir?
- Não existe mais fora...
- Isso é o que você acredita. O fora ainda existe. O que nos falta é reinventar uma porta.
- Se o Rei desconfiar de suas idéias, ele mandará trancar os corações...Não é isso que você está chamando de porta?
- Não... O coração é exatamente o que está fora do que pode dominar o poder do Rei. O coração é o cosmos inteiro, talvez seja o que Espinosa chama de Deus. Este fora somente o vislumbramos através daqueles que se fizeram porta aberta para ele, e por eles podemos sair , respirar e voltar;  para assim, quem sabe, subverter, re-educar,re-acreditar.



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RETRATOS

Ao pé da amendoeira
caem inertes as folhas amarelas,
que ainda ontem pareciam eternas.

Mas acima delas,
em verdes folhas inesperadas,
abre-se em broto a vida renovada.