terça-feira, 14 de setembro de 2010

trecho de conferência que será feita na Uff, em 25/10, às 9hrs, no evento ARTE-TEMPO

SOBRE O TEMPO QUE NÃO PASSA


Instalados no presente, olhamos para trás, para o passado. O que vemos nele? Antigos presentes nos quais estávamos. Imaginariamente, traçamos uma linha, uma linha reta, que vai dos antigos presentes a este presente, que também passa, como se a tivesse traçado uma finalidade da qual estivéssemos conscientes e fôssemos seu Sujeito. Porém, estarmos instalados no presente não significa estarmos instalados no tempo. Talvez este exija de nós um salto, um mergulho, um sobrevoar. Um sobrevoar os antigos presentes, mas em busca de algo que nunca foi presente: o passado. Somente estamos aptos a este sobrevôo quando compreendemos a diferença entre o passado e os antigos presentes, pois o passado enquanto tal não é um antigo presente. Quando relacionamos o antigo presente com o atual no qual estamos, nasce a ilusão mais entranhada na consciência: a do tempo como linha que vai dos mais antigos presentes ao atual, como num percurso que vai do mais indeterminado ao determinado.
Contudo, tudo muda quando relacionamos o antigo presente não com o presente atual, mas com o passado em relação ao qual ele era presente. Visto dessa forma, o antigo presente já não é mais antigo, mas novo: diferença acrescida ao passado.
E o passado, o que é? O passado puro, livre das armadilhas psicológicas da consciência, nada tem a ver com um antigo presente, isto porque o passado nunca foi presente. Em relação a todo presente, ele é Diferença. Reportado então a esse passado puro, o presente é Repetição. O que repete a diferença nunca é o mesmo. Por isso, o presente é sempre novidade que se sobrevoa, e nunca pousa no mesmo, no já visto. De certo modo, o passado não passa, o que passa é o presente. Porém, o que faz o presente passar não é o passado, é a emergência intempestiva do futuro. O passado conserva, o presente passa, mas só o futuro cria. Originalmente, as palavras “crer” e “criar” têm uma origem comum. Somente crê quem cria. E é por isso que a verdadeira crença tem por questão não o que foi ou o que é, e sim o que ainda não existe, e que precisa ser criado. Essa exigência é, no seio mesmo do que passa, o que não passa, posto que eterna e intempestiva novidade. E o que é verdadeiramente novo o é e será sempre. O que é verdadeiramente novo nunca passa, como passam as coisas que são apenas frutos de um presente sem passado e sem futuro ( como o que vige em nossos sombrios tempos...).

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

trecho do livro "Manoel de Barros:a poética do deslimite" (Editora 7letras/FAPERJ), a sair em dezembro




No "Livro de pré-coisas" , na prosa poética intitulada "Agroval", Manoel de Barros descreve um acontecimento ordinário do pantanal. “Ordinário”, aqui, significa a mesma coisa que comum ou regular. À idéia de “ordinário” costumamos opor a noção de “extraordinário”. Vale a pena lembrar a origem matemática destes termos. Na matemática, os “pontos ordinários” de um triângulo são os inumeráveis e indistintos pontos que ocupam cada um dos lados da figura, ao passo que seus três “pontos extraordinários”, ou singulares, localizam-se em cada ângulo do triângulo. Em uma reta, por sua vez, os pontos extraordinários são dois: aqueles que ocupam os extremos da linha.
Todavia, a diferença entre ordinário e extraordinário mostra toda a sua riqueza quando examinamos o círculo. Aparentemente, tal figura geométrica é destituída de pontos extraordinários ou singulares. Mais do que uma linha reta, geralmente costuma-se afirmar que nossa vida é um círculo: o círculo de nossa vida. Então, estaria o círculo de nossa existência destituído de momentos singulares? Estaria nossa vida refém do ordinário?
Mas o círculo guarda um segredo, tanto na matemática como na vida: qualquer ponto ordinário seu pode metamorfosear-se em ponto extraordinário, se por ele passar uma tangente. No encontro da tangente com o círculo, ambos dividirão o mesmo ponto, abrindo assim o círculo a uma força que vem de fora de seus limites e contornos. Quando o ordinário se converte em extraordinário, acontece o deslimite -renovando-se a vida.
Assim, entre o ordinário e o extraordinário não existe uma diferença intransponível: é no seio do ordinário que o extraordinário acontece. “Cada coisa ordinária é um elemento de estima”, afirma o poeta. Pois, complementa, “é no ínfimo que eu vejo a exuberância”. Em "O Guardador de águas", ele revela ainda: “No achamento do chão também foram descobertas as origens do vôo.” É no ordinário do chão que o extraordinário, como vôo, é “achado”. Enfim, “o chão é um ensino”.

"O que eu descubro ao fim da minha Estética da Ordinariedade , afirma o poeta,é que eu gostaria de redimir as pobres coisas do chão".