domingo, 19 de junho de 2016

deleuze e o rio amazonas



Quem tem porque viver
suporta qualquer como.
Nietzsche.

Segundo Deleuze e Guattari, nossa existência se passa em territórios. Estes não são apenas físicos, pois há os territórios da linguagem, os territórios do desejo, os territórios mentais, os territórios profissionais, etc. Nenhum território  é absoluto: todo território é relativo. Mas além do território existe a Terra. Esta não é exatamente o planeta no qual vivemos, a Terra não é nenhum território conhecido ou a conhecer, pois a Terra é sempre terra incógnita . A Terra é desterritorializada e desterritorializante. Quando ligamos um território, não importa qual, à Terra, produzimos não uma coisa ou um objeto, produzimos um processo: o processo de desterritorialização. Quando este acontece, "o que é sólido  se desmancha no ar": as verdades outrora palpáveis , somem diante de nossos olhos; o chão do trajeto costumeiro  torna-se oceano ou deserto, e neles estancamos, sem bússola. Mas essas impressões de impossibilidade e impotência  são o efeito do antigo território que ainda se agarra à nossa mente , como uma imaginatio, como um hábito que reluta em perder seu império sobre nossa vida. 
Se conseguirmos vencer este estado, talvez possamos alcançar a criação de algo realmente novo, pois a Terra somente pode ser vista com  “olhos de descobrir”, como nos ensina Manoel de Barros, e não com  “olhos de reconhecer”. Então, poderá acontecer um segundo processo: a reterritorialização. Esta vai da Terra incógnita a um novo território, um território nunca antes visto, a não ser pelos olhos do desejo, que é sempre quem vê primeiro o que só existe em rascunho, em metamorfose. Todo território é relativo,  absoluta é apenas a TerraAb-soluto: o que não se dissolve. A criação de algo novo é absoluta pela sua relação com a Terra.  E este novo território não é uma conseqüência do primeiro, pois não foi o primeiro que o causou; ao contrário, o novo surgiu por   termos conseguido fazer com que ele, o antigo ,  não fosse mais, para nós, causa do que somos. O que produziu a reterritorialização não foi um antigo território como condição, mas a afirmação da Terra como o incondicionado.  O novo território nasce da Terra incógnita, e não do antigo território por demais conhecido. O novo território não é uma evolução do primeiro, ele não é o seu desenvolvimento, mas a total ruptura com ele, para assim criar o novo, como linha de fuga.
Segundo Deleuze e Guattari, não é difícil a desterritorialização relativa , pois esta pode ser artificialmente obtida por meios que aparentemente nos fazem sair do território da  consciência( são os "miseráveis milagres" de que nos fala Michaux...), mas sem alcançar potentemente a Terra; o capitalismo  também produz desterritorializações relativas que retiram o homem de antigos territórios e os reterritorializa em novos territórios que têm prazo de validade, não importando se são os territórios do consumo ou os das relações humanas banalizadas.O capitalismo oferece a lua e até mesmo marte como novos territórios que virão substituir a terra que ele mata ou pretender matar.Mas  difícil é a reterritorialização que afirma a Terra, pois "tudo o que liberta é tão difícil quanto raro", lembra-nos Espinosa. A reterritorialização que nasce da imanência da Terra incógnita  é “sem baliza e parapeito”: para ela não há “cartilha”, como diria Manoel de Barros, assim como não há cartilha que ensine alguém a torna-se autêntico, a tornar-se ele mesmo.
Muitos se perdem no caminho da desterritorialização, confundindo os fins com os meios, o absoluto com o relativo, e rapidamente voltam ao antigo território, convertidos ao deus da hora,  na esperança de algo que lhes venha preencher o vazio: um deus, um dogma,um título, um shopping, um anestesiante. E também existem   os que   imaginam terem visto a Terra, apressados que são para conquistar o que só vem com muito esforço: mas logo a simulação se revela  , uma vez que somente a  clichês alcançam.Por fim, há ainda os descrentes na Terra, embora  digam muito acreditar no céu,e passam a maldizer o território em que vivem, e perdem a chance de conectá-lo com o horizonte absoluto que os faria mudar ali mesmo onde estão, e não esperar que isto aconteça  em outra vida.
      Deleuze e Guattari dizem que "o território é a casa, a desterritorialização é o Universo, o Cosmos".Talvez seja por isso que as crianças, sábias que são, sábias por natureza e não por erudição, comecem seus desenhos não pelo triângulo edipiano eu-mamãe-papai, mas antes pela casa aberta ao sol ou à lua , às árvores ,às nuvens, às estrelas, ao espaço infinito, mesmo que expressos em uma diminuta folha de papel.
(cena da animação Histórias da unha do dedão do pé do fim do mundo, com poemas de Manoel de Barros)

 Segundo Deleuze e Guattari , a Terra é a Pura Reserva. Não a reserva de alguma coisa determinada, como a mina que é reserva de ouro, ou como a poupança que é reserva de recursos. A Terra é a Pura Reserva daquilo que nunca nenhum território poderá conter totalmente: a reserva de novos territórios por criar. A Pura Reserva do rio amazonas, sua riqueza, não é o volume imenso das águas que passam; sua Pura Reserva é um acontecimento discreto, quase que imperceptível, que acontece lá no alto dos platôs andinos: o rio nasce do simples pingar de pequenas gotas singulares  nascidas do degelo das neves eternas. Despertando novamente para voltarem à terra, as simples gotas  se tornam o fluxo pelo qual o rio se inventa e persevera. A Pura Reserva nunca é acúmulo quantitativo, mas generosidade do que permanece ligado à sua terra incógnita .




sexta-feira, 17 de junho de 2016

o estilo como diferença

                                   DIFERENÇA E REPETIÇÃO
                                                       
                                                         
                                                            Repetir repetir - até ficar diferente.
                                                            Repetir é um dom do estilo.
                                                                    Manoel de Barros
         
Repetir não é reproduzir ou imitar. Repetir e  imitar são atividades que diferem em natureza. Na repetição, dois elementos encontram-se presentes: o repetido e o meio onde a repetição é levada a efetuar-se, isto é, a diferença. Desse modo, toda repetição tem como condição uma diferença, pois é nessa última que o repetido  devém o motivo da repetição. Na imitação ou reprodução, ao contrário, a diferença é anulada ou diminuída em sua positividade, sendo então considerada menos eminente ( moral e ontologicamente) que o  imitado ou reproduzido . Este último é elevado à condição de Modelo para as imitações  que o tomam como referência ou Fundamento.
  A condição para que isso funcione desse modo repousa na idéia de que ele, o Modelo, não seja reprodução ou imitação de nada que lhe seja preexistente. O Modelo existe em si, não tendo sido criado ou inventado. Ele é o critério primeiro de toda aferição de verdade e objetividade.  É a partir da eminência do Modelo que se distribuem as hierarquias entre as imitações: a melhor imitação , a mais elevada, é aquela que mais se aproxima do Modelo. “Aproximar-se do Modelo” significa: “a ele assemelhar-se”.   O Modelo torna-se então a Identidade Referencial à qual toda imitação procura assemelhar-se. As melhores imitações ou reproduções, aquelas que se encontram no ápice da hierarquia, são exatamente aquelas  cuja diferença se encontra no grau mais baixo de potência ou afirmação de sua respectivas singularidades ou perspectivas. Todo Modelo só se propaga com a condição de reduzir as diferenças a zero, ou ao mais próximo disso.
Ocorre na repetição que a diferença torna-se o elemento genético e positivo que confere à repetição um critério seletivo que não é por eminência hierárquica, mas por potência inovadora. Repetir é inovar, isto é, estender diferencialmente a potência daquilo mesmo que se repete.  Na repetição, o próprio repetido é já repetição de um outro repetido que também é repetição, isto é, diferença. Só a diferença tem a potência de se repetir em outras diferenças . Só a diferença é o verdadeiro critério a servir de plano aos agenciamentos afirmadores da multiplicidade. A diferença não é um modelo, ela é a construção de um plano.
Para a repetição, a regra é a diferença. A maçã de Cézanne , por exemplo, não imita ou reproduz a maçã percebida, mas a repete a partir de uma diferença que se eterniza ao  tornar-se visível por intermédio das tintas. Estas últimas tornam-se maçã  ao mesmo tempo em que a maçã devém tinta, isto é, coincide com a própria perspectiva que lhe acrescenta , por sensação, uma diferença. A maçã pintada não existe fora da perspectiva que a produziu ( e expressa, diferencialmente, a maçã efetiva que nela se repete).
Toda repetição é um devir do repetido. E o próprio repetido  já é um devir. Toda repetição é um  devir do repetido, no qual se acrescenta  ( ao repetido) uma diferença que o faz ser sua própria perspectiva.
(trecho do livro: )




segunda-feira, 13 de junho de 2016

o daimon poético-filosófico




(escrevi um capítulo deste livro, segue um trecho)

      A filosofia é Grega, isto todos sabem. Todavia,  o filósofo vem de uma zona de vizinhança entre o ocidente e o oriente. O filósofo vem das bordas do mundo grego. Se a filosofia tem seu nascimento em Atenas, constituindo assim o primeiro capítulo de sua história, o surgimento do filósofo nos mostra a insuficiência da história da filosofia para compreender essa questão, uma vez que o filósofo vem de fora dessa história: “os filósofos são estrangeiros, mas a filosofia é grega” (DELEUZE e GUATTARI,O que é a filosofia?, p.116). A relação da filosofia com o filósofo pede uma geofilosofia.                   
           O filósofo não habita exatamente uma fronteira, ele habita limiares. O ser que habita  limiares recebe o nome de daimon [1] . Na Grécia, o daimon possuía asas[2]. Eram asas de borboleta, e não de pássaro. Os pássaros já nascem com asas, ao passo que o nascer das asas da borboleta foi precedido por uma metamorfose. As asas do daimon são os atributos espinosistas de um sujeito larvar. O conceito sobrevoa o plano de imanência com asas que são a expressão de uma metamorfose, de uma anexatidão.O conceito também tem asas ( O que é a filosofia?, p 58).
               O daimon é o habitante de um espaço liso que só se deixar habitar como nômade. O nômade não é exatamente quem muito se movimenta de lugar a lugar. Como diz Manoel de Barros, o nômade é um Andarilho, um Andaleço que "abastece de pernas as distâncias" e "mora debaixo do próprio chapéu". O filósofo mora debaixo do conceito que ele cria: o conceito “é vagabundo, não-discursivo, em deslocamento sobre um plano de imanência” ( O que é a filosofia?, p. 187). 
               É na Grécia do século V a.C que o filósofo encontrará condições favoráveis ao exercício do pensamento. Trata-se de uma sociedade movida pelo gosto da opinião e pela associação, da qual emergirá o afeto da amizade; por isso mesmo, é nessa sociedade que também há o gosto por desfazer a associação, pela rivalidade.  O filósofo  chega a Atenas como estrangeiro. Se a filosofia tem sua história, o filósofo tem apenas devir. É o filósofo que faz a filosofia entrar em um devir-estrangeiro, de tal modo que ela, a filosofia, entra em relação com a não-filosofia: inventa mais do que amigos, inventa intercessores.
            Deleuze e Guattari afirmam que faz parte da compreensão de um conceito filosófico a sua compreensão não-conceitual: os conceitos não remetem apenas a outros conceitos, “os conceitos remetem eles mesmos a uma compreensão não-conceitual. (...) O não-filosófico está talvez mais no coração da filosofia que a própria filosofia, e significa que a filosofia não pode contentar-se em ser compreendida somente de maneira filosófica ou conceitual, mas que ela se endereça também, em sua essência, aos não-filósofos” (O que é a filosofia?, p. 57). Para compreendermos adequadamente toda a potência  que um conceito filosófico possui, é necessário que saibamos ter igualmente uma compreensão não-conceitual do conceito. Esta compreensão não-conceitual implica que saibamos compreendê-lo também politicamente, etologicamente, clinicamente, eticamente, enfim, poeticamente. Esta  compreensão heterogenética  não é exterior ao conceito, uma vez que faz parte da compreensão do conceito o seu devir não-conceitual, que é o seu devir-estrangeiro, a sua geofilosofia.
             Essa não-filosofia não é o senso comum ou o bom senso. O senso comum se caracteriza pelo predomínio da opinião e da recognição (ULPIANO, Gilles Deleuze: a grande aventura do pensamento,2013, p.77). A filosofia dogmática parece romper com o senso comum em relação aos conteúdos deste, mas não quanto à forma: esta reaparece sob veste  filosófica com o predomínio de um sujeito suposto universal e de um objeto pretendido geral. Segundo Deleuze e Guattari, quando a filosofia rompe de fato com o senso comum, com seu conteúdo e com sua forma, ela o faz por instauração de um território e de uma Terra. Ao invés de um Sujeito e um Objeto, um território e uma Terra, uma geofilosofia, enfim.
   O ser estrangeiro do filósofo não é em relação a um território no qual ele teria vivido e nascido de fato, e que seria diferente deste no qual ele está. O ser estrangeiro do filósofo é definido em sua relação de direito com a Terra. Esta é um natal, não um inato. É em relação com a Terra que o filósofo se torna um estrangeiro de direito, estrangeiro inclusive ao território acadêmico da filosofia. O ser estrangeiro do filósofo o torna um Outsider (DELEUZE; GUATTARI, Mil platôs, 1980): ele vive o invivível: a "Pura Reserva" ( O que é a filosofia?, p. 202).A reserva não é a dele, não é uma reserva por oposição a uma extroversão de opiniões. A reserva em questão, a Pura Reserva, é a do Acontecimento que o filósofo experimenta viver: o Acontecimento é sempre reserva de si mesmo, uma vez que ele não se esgota nas atualizações do vivido: “O conceito é o contorno, a configuração, a constelação de um acontecimento por vir” ( O que é a filosofia?, p. 46). O por vir não é o futuro do tempo cronológico, ele não é o prolongamento do presente no qual somos, mas no qual também deixamos de ser, uma vez que o presente passa; o por vir é o tempo da metamorfose.




[1] Na Grécia antiga, "Daimon" era a divindade que não tinha casa no "Céu", como possuíam os deuses olímpicos. Tampouco morava o Daimon no chão, entre os homens. O Daimon habitava o espaço entre o Céu e a terra, um espaço de travessias. Mas não era uma travessia como aquela que fazemos quando cruzamos uma ponte, uma rua ou mesmo uma fronteira que separa dois países. O espaço de travessia no qual habita o Daimon é aquele que liga o tempo à eternidade, o que nasce e morre ao que se imortaliza. Contudo, entre o tempo e a eternidade não existe uma fronteira determinada, nem  se tratava de morrer  para alcançar o Céu. Era nesta vida que se alcançava ou vislumbrava aquela esfera divina, desde que nos guiasse um Daimon. O Daimon não habita o Céu ou a terra, ele vive nessa zona que somente se pode atravessar em metamorfose. "Metamorfose" não é a mesma coisa que "transformação". Em ambos os termos existe a palavra grega "morfé", que significa "forma".Trans-formar significa: "passar de uma forma à outra" ( esse é o princípio, por exemplo, da reencarnação pitagórica).Meta-morfé, por sua vez, tem o sentido de "ir além da forma, do limite". Sozinho, o homem não consegue ir além de sua forma, de sua medida. Daí a necessidade de ele encontrar um Daimon, se o seu desejo for o de ir além de si mesmo. Existiam vários Daimons. Nem todos sabiam o caminho....Alguns eram apenas promessa.Outros, fingiam levar ao Céu , quando na verdade faziam subir muito alto com a intenção de aumentarem o tamanho da queda, como aquela que seduziu Ícaro.De todos os Daimons, o mais buscado, porém o mais difícil de achar, era exatamente Eros. Em latim, o Amor. Em grego, "Eros" significa também "asas", mas asas de borboleta. Em latim, "Amor" significa : "não-morte", pois o "a" tem valor de negação, tal como em "afasia", "sem fala". Para os gregos, então, Eros era o agente de uma metamorfose propiciadora de uma experiência de não-morte.Fora dele, sem sua mão a conduzir, tudo é morte.
[2] Desenvolvo esse tema no artigo: Espinosa, Deleuze e Guattari: o desejo como metamorfose, Revista Alegrar, DEZ/2012, nº 10.






domingo, 5 de junho de 2016

rascunho a lápis de cor


O homem seria metafisicamente grande
se a criança fosse seu mestre.
Kierkegaard
(Epígrafe escolhida por Manoel de Barros na Primeira Parte do livro Menino do mato)


Geralmente, pensa-se no rascunho como algo que prepara o advento da forma acabada, como se o rascunho existisse apenas para  dar lugar à forma pronta: somente esta  daria sentido, retrospectivamente, à existência precária e temporária do rascunho.
 O rascunho seria um momento a serviço de um modelo. Assim concebida, a infância seria o rascunho para a adolescência, e a adolescência, o rascunho  da vida adulta. Em Manoel de Barros, porém, o rascunho não é um momento a ser ultrapassado em direção à forma de um modelo. O rascunho não é a imperfeição de uma perfeição buscada. Ele, o rascunho , é a razão de ser de si mesmo, no seu inacabamento sempre aberto, sempre a (re)fazer-se.
Em Manoel, poesia é “ir até à infância e voltar”. E aquele que vai não é o mesmo que retorna. Aquele que foi tinha celular, relógio, pretensões e  opiniões nas mãos , além de tremores e suores. O que retorna traz apenas  lápis de cor nos dedos da mão, e de mais nada sente falta. Mas para o adulto ir à infância, é necessário que ele desfaça a ilusão de que ele é um modelo que dá sentido à infância, é preciso que ache, na forma que se imagina pronta , o movimento da linha livre que a desenhou, brincada com a mão de inventar. Então, ele se perceberá como o rascunho sonhante de uma criança . Com os olhos de tal criança olhará para si ; e assim , quem sabe, regenerando-se, se transverá.



(Decifra-me - 01, de Cláudia Alves.Gravura digital, 2013 .http://www.claudiaalves.com.br/desenho-intuitivo/ )