sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Manoel de Barros: a visão fontana





Segundo Manoel de Barros, o poeta é aquele que possui visão fontana, uma visão que é fonte do que vê. Não é uma visão que constata o referente ou objeto; diferentemente, ela é uma visão que vê , antes, o sentido - que é a alma das coisas. Toda fonte se comunica com um fluxo invisível , que é de onde vêm as águas que nela nascem e fluem. Embora possam estar, hoje, sob o chão, tais águas já estiveram, outrora, no céu  - do qual caíram como chuva; elas já circularam também no interior dos animais, como sangue e suor ; já desceram as montanhas quando a neve derreteu; já foram orvalho nas flores, seiva nos troncos e ,nos frutos, o doce sumo; já foram lágrimas de dor, lágrimas de alegria; já foram o meio que alimentou o feto no interior da placenta. Um dia tais águas sustentaram a Terra, como nos faz crer Tales; e Cristo fez delas vinho, o sangue de toda festa; sobre elas o Espírito, um dia, andou ;hoje sobre elas se surfa, se desliza, se mergulha. E todos, insetos e humanos, flores e animais, até mesmo a Terra, todos a bebem. É esse elemento que está em tudo , e que é a Vida de tudo em processo, é este elemento o que o poeta vê e sente , primeiro nele, como metamorfose e encantamento.


quarta-feira, 1 de agosto de 2012

orpheu




Na Grécia Antiga vivia Orpheu. Poeta, Orpheu cantava suas poesias, mais do que as escrevia. E assim ele mais do que as recitava: ele as vivia. "Orpheu" significa: "o que toca a lira", o músico que exerce a arte da lira.A lira é um instrumento constituído por cordas singularmente diferentes, cujo tocar exige sutil percepção das combinações heterogêneas, suas convergências e divergências.Muitos comparam a alma à lira : assim como esta , a alma é constituída de diferentes cordas ( o desejo, a imaginação, a razão, a memória...), cujo tocar requer um autoconhecimento nascido do domínio de si mesmo.A salut da alma, a sua saúde, é o seu tocar em polifonia: esta nos protege das mil formas de loucura que podem eclodir quando nosso ser de-lira ( "delirar" é, literalmente,  "sair fora da lira", o que acontece quando a alma, alienando-se, não consegue pôr-se de acordo com si mesma naquilo que pensa , diz e faz).Era com sua lira, com sua alma, que Orpheu cantava.
A palavra "poesia" provém de "poiésis", que significa, em grego, "produção". Ao cantar suas poesias, Orpheu produzia algo, e este algo também produzia modificações naqueles que o ouviam. Mas o que o poeta, com a poesia, produzia?Antes de tudo, o poeta produzia a si mesmo: ele se autoproduzia na metamorfose que sua arte lhe causava. Quem ouvia Orpheu, também o mesmo não permanecia, uma vez que a arte a todos intensificava. Do canto de Orpheu irradiava uma luz distinta da luz física:enquanto esta toca por fora, a luz da poesia ilumina por dentro, pois ela é a própria alma que se acende.Essa luz tinha o poder de retirar do escuro todo desejo e sentimento que aí estivesse cativo, uma vez que ela desfazia não o desejo ou o sentimento, mas o escuro que, sob tal luz,  não mais poder tinha. A luz física ilumina os seres em uma de suas faces, deixando muitas outras na sombra, ao passo que a luz da poesia nasce de dentro, e dentro de cada um faz brotar uma clareza que , sob sua potência, mesmo o escuro nós conseguimos ver mais claro, tal como se o vê nos quadros de Vermeer .
Orpheu cantava porque a Musa o tocou. Desse tocar nasceu o afeto como expressão de uma Vida que no poeta se intensificou. De "Musa" provém "Música", assim como "Memória". O canto do poeta era uma Música tocada em sua alma transformada em instrumento. Ao cantar, o poeta não deixava ser esquecido, e a todos lembrava, que o momento que agora vivemos, nunca antes o vivemos. A Memória que o poeta evocava não era a de um passado, de algo que aconteceu: ela era a Memória que nascia junto com o presente novo que nunca se viveu. Ela era a Memória que nos queria fazer lembrar que a Vida é eterna novidade, como mais tarde nos lembrou Pessoa. A poesia existe para não deixar a gente se esquecer de lembrar que a Vida é para ser vivida, experimentada, e não lembrada como tendo sido vivida. Chamava-se Eurídice a esposa de Orpheu, com a qual ele teve um filho, cujo nome era Museu. Em certas tradições gregas, "Eurídice" também é um dos nomes da alma, assim como o são "Psiquê" e "Pneuma". O poeta é um apaixonado pela alma, como o é Orpheu por Eurídice. Nem a morte destroi o amor que os liga  , como não destruiu o afeto de  Orpheu para com sua esposa: Orpheu foi ao Hades, o "Mundo das Sombras",  para resgatar Eurídice, assim como somente a arte pode resgatar nossa alma quando ela, cativa do passado,  sofre como uma sombra perdida , esquecida de si mesma e da Vida.
Quando Orpheu morreu, continuou ele ainda a viver na Vida que nunca deixa de ser Vida. Ele vivia agora expresso em suas obras, que se encontravam espalhadas e fragmentadas, reféns do espaço e dos lugares por onde o poeta passou.Seu filho, Museu, empenhou-se em recolher esses fragmentos e reuni-los em um único lugar, para que assim eles pudessem comunicar e expressar o afeto que fez de Orpheu poeta