terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

embriagar-se, mesmo com leite

O carnaval é uma festa muito antiga. Ou melhor, o carnaval é o protótipo das festas. Entretanto, o nome “carnaval” é mais recente do que o acontecimento que tal nome designa. Quando foi inventado pelos romanos, para designar uma prática que o antecedia e que vinha de outro povo,  esse nome  expressava mais a distância de que se estava do acontecimento do que propriamente sua essência. “Carnaval”, como “festa da carne”, é um nome que se deu ao rio quando este já se ia muito longe de sua fonte. “Festa da carne” não traduz exatamente o que era, em sua origem, o que hoje chamamos de carnaval.
Sua origem se confunde com o começo mesmo da Grécia. Não a Grécia de Platão ou Aristóteles, Grécia historicamente estabelecida. A Grécia na qual nasceu a festa é uma pátria  sem fronteiras demarcadas, nem ocidente e nem oriente, escondida na história e dentro da alma de cada homem que , ainda hoje, sente a necessidade , idêntica ao desejo, de pôr uma fantasia , e ser uma fantasia. Talvez a essência do carnaval não  esteja escondida apenas dentro da alma inconsciente do homem, mas  de tudo o que tenha vida.
Pois é este o sentido genuíno da festa: libertar a vida do homem, desaprisioná-la da rotina e ritos, para assim suspender o império da consciência. Foi isso que ensinou Dioniso aos homens: tornar a vida de novo inocente, sem culpa, sem memória do ontem e sem expectativas do amanhã. Foi Dioniso quem ensinou a festa aos homens. Ele os ensinou a brincar como suprema brincadeira o existir.
Era em festa que se seguia Dioniso. A ocasião dessas festas era a colheita. O produto assim extraído da terra não era posse particular de ninguém, tampouco existia para ser acumulado. Colhe-se o que se plantou. E o que se plantou foi colocado no ventre da terra. Esta somente pode gerar novamente vida se de novo estiver fértil. Na plantação que se fizera  a terra se deu e expirou, morreu. A festa é a celebração de novamente haver um começo. A festa nasceu como triunfo da vida em relação à morte, simbolizado pela terra que renasce em cada colheita.
E era isto a vida para os gregos: um triunfo. Não o triunfo de uma vida sobre outra vida, mas triunfo da vida sobre o seu fim. A festa é o renascer da terra acontecendo no nascer do fruto novo.

Quando nascem, nus e de olhos fechados,os homens nada sabem, por isso choram. A festa é o nascer sabendo-se, mas sem que se possa conhecer o porquê de se nascer, e nem para isso buscar, com teorias,  uma finalidade no distante. Se os bebês nascessem sabendo o que é o morrer, e que seu nascer é um triunfo, decerto que nasceriam festejando.E como vinho beberiam o seu puro leite, embriagando-se.



(Attika, orquestra grega de mandolins)

o amor em espinosa (2)

Nossa suprema felicidade ou infelicidade depende da qualidade do ser 
com  o qual nos unimos através do amor.

Espinosa (Tratado sobre a emenda do intelecto)




I-Segundo Espinosa, quanto mais causas estão envolvidas na produção de uma coisa, mais esta coisa existe e menos ela pode ser destruída. O muito torna forte o um que dele nasce, a multiplicidade fortalece a vida da singularidade que lhe permanece ligada: a singularidade lhe permanece ligada não de fora, mas por dentro, intimamente. Um exemplo bem simples: o amor.Se o amor que sentimos por alguém tem por causa apenas um aspecto desse alguém , mais fácil esse amor poderá ser destruído: basta que desapareça esse aspecto que causou o amor .Os amores vencidos pelo ciúme, os amores infelizes, os amores inconstantes, os amores que fazem sofrer, todos esses amores têm por causa poucas causas, isto é, são poucos os aspectos do ser amado que realmente amamos. Então, passamos a querer modificar os outros aspectos que não amamos, o que só conduz à incompreensão , decepções e mútuas acusações de desamor. Se amamos alguém por causa da aparência de uma parte do seu corpo, poderá morrer o amor se esta parte mudar de aparência, o que sempre acaba ocorrendo com o tempo ou por um acidente.Mais grave: se amamos alguém por algo que lhe seja externo, como bens , propriedades ou poder, basta haver a diminuição ou perda dessas coisas para que o amor assim nascido também desapareça ou se perca.A autêntica beleza, além disso, nunca nasce apenas de um aspecto físico , mas da composição de elementos físicos e não físicos .Na mitologia grega, por exemplo, a graça , que é a alma de toda beleza,era representada por três irmãs: as Graças, cada uma diferente da outra ( o que significa dizer que a graciosidade de alguém sempre se deve, no mínimo, a três aspectos que nela estão de acordo).
Assim, diz Espinosa, o amor por alguém, seja este alguém um par ou um amigo, será mais potente se esse amor tiver por causa vários aspectos desse alguém, e não apenas os aspectos físicos que o tempo pode mudar; o amor existe   mais   quando amamos  também os aspectos invisíveis de um ser, aspectos estes que se sente mas não se  pode tocar ou ver. Reduzir alguém a um aspecto apenas torna mais fácil a pretensão de querer dominá-lo e controlá-lo. Querer dominar é ódio, não amor.Se nosso amor, diferentemente, tem por causa vários aspectos, desse amor não nascerá o querer dominar, pois tal amor nos produzirá novos aspectos, que serão nosso ser ampliado.As pessoas não são apenas rosto ou corpo, muito menos carros ou profissões, elas também são atmosferas, acontecimentos, sensações, mistérios.Sobretudo, que seja causa do seu amor a pessoa inteira e mais o universo que está dentro e fora dela. Quanto mais causas, menos poderá ser destruído o amor assim nascido e vivido, seja ele o amor no sentido estrito ou o amor universal, como aquele que sentimos por um amigo. E mesmo quando da pessoa amada morrer tudo o que for visível, permanecerá ainda o amor causado pelo que nela é eterno.E o eterno em alguém nunca é uma coisa só, mas uma multiplicidade de aspectos . E o mais importante: seja você mesmo um ser que uma multiplicidade faz ser: não ser vários, mas ser uma singularidade que existe porque muitas causas o fazem .Um estilo, por exemplo, nunca se expressa por linha reta, mas pelas linhas curvas, espiraladas, serpenteantes, labirínticas, abstratas...pois tais linhas expressam as várias forças que as dobram e as fazem ter curvas, como tudo o que é vivo.Sobretudo, ame-se  a partir dessas muitas causas, e não apenas a partir do seu ego.O amor que tem muitas causas , embora seja um só, nos produz uma infinidade de coisas: ele também se torna causa para que em nós nasçam muitas coisas, sobretudo mais amor em seus múltiplos aspectos.
 Por outro lado, torno-me capaz de vencer o ódio quando também o refiro a várias causas, e não apenas à pessoa ou coisa que odeio.Não apenas devo referir o ódio a várias causas, como devo compreender essas várias causas como o produzindo: incluindo eu mesmo, pois sou causa parcial do ódio que sinto.Isto não significa relativizar o ódio que sinto, e sim tornar absoluta a idéia adequada que me permite compreendê-lo.Ab-soluto: o que não se dissolve.Somente a compreensão impede que o ódio nos dissolva.Para Espinosa, o amor existe mais do que o ódio:reportar o amor a muitas causas o torna ainda mais forte, ao passo que o reportar o ódio a muitas causas o faz diminuir. Quando associamos o ódio a apenas uma causa, mais odiaremos a pessoa ou coisa que imaginaremos ser a causa exclusiva do ódio que sentimos. Este é o princípio da demonização. As causas são as diferentes e múltiplas realidades que constituem tudo o que existe: quanto mais realidades são conectadas ao amor, mais o amor existe; quanto mais realidades são conectadas ao ódio, menos ele existe, isso porque o ódio, como paixão triste, é mais imaginação do que realidade.Não obstante isto não impede que o homem se deixe dominar pelos frutos de sua imaginação, dada a ignorância sob a qual muitas vezes vive, e , cego, roube,mate, minta, zombe, enfim, empreste seu coração , mãos e cérebro para que por eles viva um fantasma.A escuridão não é um outro princípio ativo distinto da luz , mas tão somente a ausência  da luz como princípio ativo:"o dia que nasce é a noite ao despertar", canta Alvaiade. Em Espinosa, a luz é idêntica ao amor: somente o amor é verdadeiramente causa. Quando assim o vivemos, o amor se torna inseparável do desejo.
O amor em Espinosa não se confunde com o Eros grego, tampouco com a visão romântica, que acabou impregnando toda a compreensão posterior desse afeto, reduzindo-o ao mero sentimento psicológico, subjetivo. Espinosa é o herdeiro de certa visão romana desse afeto, como se encontra por exemplo no filósofo Lucrécio. Não a Roma centrada em si mesma, belicosa e imperialista,e sim a Roma como microcosmos da natureza, como cosmópolis :cidade do cosmos, do mundo. É sob essa inspiração que nasce a concepção do amor como a-mor, isto é, a junção da letra "a" com função de negação ( como em a-fasia, "sem fala") e a abreviação da palavra "morte". Desse modo, para os romanos de então, como para Espinosa, o amor é "não morte": fora do amor, tudo é morte . Não apenas morte física, mas morte no sentido mais amplo dessa palavra.
O amor que o sábio sente e vive é o mais indestrutível,pois tal amor tem por causa o que nunca morre, e que está presente em cada coisa, mesmo naquelas diminutas coisas que ninguém vê ou dá importância. O sábio sente que sua essência tem por causa o universo inteiro. Por isso, ele sente de alguma maneira que sua essência é indestrutível, pois para destruí-la seria preciso destruir o universo inteiro. Ele sente isso sem alarde, sem se gabar, sem se achar um santo ou alguém acima dos outros. Como dizia Manoel de Barros, o sábio-poeta é aquele que diz “eu-te-amo para todas as coisas”.
Remeter a existência de algo a muitas causas somente faz sentido quando as referidas causas são outros modos finitos existentes. Se conseguirmos perceber uma relação necessária entre algo e muitas causas ,vencemos a contingência e sua inconstância, uma vez que a contingência se caracteriza pela relação restrita entre algo e pouquíssimas causas, ou pela imaginação de que algo acontece devido a “causas” incompreensíveis. Todavia, podemos ainda relacionar a existência de algo à sua essência, o que significa dizer que não é pela mera relação entre existências que a compreenderemos, mesmo levando ao infinito a cadeia explicativa.A compreensão da essência de algo implica na relação deste algo com sua causa imanente, e esta nunca lhe é exterior.Tudo o que realmente existe traz em sua imanência a causa que a produz e a torna inteligível.Descobrimos, assim, um infinito de potência, que é um infinito de capacidade. O que pode o amor? Pode um infinito. Este infinito que o amor pode não lhe é exterior, como o são as infinitas coisas que existem fora de nós. Este infinito que é imanente ao amor é imanente a todas as coisas finitas que nos são exteriores: é experimentando em nossa imanência esse infinito que compreendemos o infinito que é imanente a cada coisa, e não experimentando cada coisa uma a uma, como para ter certeza de que a Natureza lhe está imanente, isto por que o infinito não nasce da mera soma de coisas finitas. As coisas finitas não se tornam infinitas pela soma delas, mas pelo infinito que já lhes é imanente na singularidade de cada uma. O infinito não nasce da soma de finitos exteriores uns aos outros: o infinito é imanente a cada coisa em sua diferença, em cada coisa singular o infinito está inteiro.O infinito é o que multiplica cada coisa singular,dotando-a da potência de produzir o que sua mera existência não nos deixa conhecer totalmente.O infinito não multiplica algo por mil, um milhão ou um bilhão: ele multiplica cada coisa tornando múltipla sua potência, pois múltipla é toda potência que singulariza.

Desse modo, compreendemos o verdadeiro sentido de “reportar o amor a muitas causas”: para assim compreendermos que ele não se torna mais forte quanto mais depender de muitas coisas externas, do mesmo modo que um escravo não se torna livre pelo acréscimo infinito de seus senhores. Um escravo se torna livre pela causa da liberdade, e esta nunca nasce do aumento da escravidão, mas pela sua destruição.Todavia, a liberdade não é destruição da escravidão, mas afirmação de liberdade, e liberdade nada tem a ver com escravidão. De maneira análoga, as muitas causas que tornam o amor mais forte são todas já amorosas, são todas já amor. Logo, já são imanentes ao amor, e não lhe estão fora.

II-Toda produção de um indivíduo pressupõe um processo de individuação. Um automóvel, por exemplo, antes de ser um indivíduo com seus contornos e características,ele foi chapa de ferro, borracha, aço, etc. Ou melhor, nem mesmo isso ele era, pois uma coisa é o ferro, a borracha, etc., outra coisa é um automóvel. Ademais , o processo de produção de um automóvel significou a criação de um indivíduo, não de uma ideia geral ( "O" automóvel).Todo indivíduo possui semelhanças e diferenças em relação a outros indivíduos. Tudo o que existe foi produzido de forma análoga. Um indivíduo humano, por exemplo, é o produto de um processo de individuação químico, físico, biológico e psíquico. Quando tal indivíduo assume papéis e funções na sociedade, um novo fator entra no processo de sua individuação: o fator social. Todo processo de individuação nunca termina, dado que constantemente o indivíduo lida com elementos externos que ameaçam a sua individualidade.Para conservar a si mesmo, não raro os indivíduos disputam por elementos necessários à sua manutenção como indivíduo.É comum ao indivíduo ver-se  em oposição   a um meio externo físico ou social que lhe pode ser hostil ou favorável, conforme o tempo e a situação.Mas e o amor, onde entra?
O amor é um processo também, assim como a individuação. Como tal, ele também produz. O amor é um processo de singularização.A singularidade não é a mesma coisa que o indivíduo, disso sabe quem ama, mesmo que não tenha a consciência dessa diferença.Antes de se amarem , Romeu e Julieta eram dois indivíduos de duas famílias que se odiavam.Antes de se amarem , era assim que eles se conheciam. Contudo, quando se amaram perceberam que o antigo conhecimento, o que fomentava o ódio, era na verdade uma forma social de ignorância.O amor faz conhecer coisas que o conhecimento do indivíduo ignora. A ciência ora pende para o universal,como no Racionalismo, ora para o individual, como no Empirismo.Entretanto, nenhuma dessas formas de conhecimento consegue atingir o singular.Conhecer o singular torna singular a nós também.
Quando amamos algo ou alguém, singularizamos este alguém: criamos uma realidade que existe graças ao nosso desejo. Embora não seja meramente química, física, biológica, psicológica ou social, a realidade criada pelo amor vivifica tais outras realidades, as potencializa, integrando mundo físico e espiritual como  partes de uma mesma realidade que se conhece sentindo. É o amor que singulariza. Quando amamos algo, este algo passa a existir mais, uma vez que sua existência aumenta também a nossa. Nesse sentido, amor e desejo são a mesma coisa, embora  desejo e prazer não sejam o mesmo. O prazer quase sempre se relaciona à posse ou destruição do indivíduo que provoca o prazer ( o prazer da comida, da bebida e outros prazeres corpóreos gastam elementos que novamente precisam ser reparados ou substituídos quantitativamente, daí a possível vinculação do prazer com o vício, que é a tara pela quantidade), ao passo que o desejo expressa sempre um aumento de existência, e este aumento nunca é um fenômeno meramente quantitativo ou numérico. Amar a si mesmo, por exemplo , é singularizar-se, mais do que meramente se individualizar se opondo a outros indivíduos, ou acumulando coisas. Singularizar-se é produzir um estilo.
Os processos de individuação nos apresentam os indivíduos como realidades já prontas. A gíria e o jargão profissional têm algo em comum: são indivíduos linguísticos que, para pertencermos a um grupo, os tomamos e os reproduzimos, apesar da aparência de que estamos sendo originais, sobretudo no caso da gíria.O poeta, ao contrário, singulariza a palavra, fazendo-a, como diz Manoel de Barros, "abrir o roupão para ele". Singularizar é tornar-se ativo, produtor.
Deus é amor, afirma Espinosa. Deus ama a si mesmo como realidade singular, não como indivíduo. Deus é singular, uma vez que ele é ativo perante ele mesmo: ele se autoproduz produzindo a tudo. E cada coisa que ele produz é uma modificação dele: enquanto tal,cada coisa é singular. É por isso que o amor nos faz expressão do divino: pois onde todos somente  vêem indivíduos, aprendemos a ver a singularidade, a espontaneidade, a arte. Como singularidade, aprendemos a não nos opor a um meio externo que supomos nos limitar, dado que apreendemos o infinito que nos é imanente.
Quando amamos alguém, singularizamos esse alguém, singularizando a nós mesmos.Percebemos que somos frutos de um processo que não nos é anterior, tal como o processo de individuação é anterior ao indivíduo; diferentemente, experimentamos o amor como um processo que é inseparável de nós: quanto mais ele se potencializa, mais nos potencializamos, quanto mais o produzimos, mais ele nos produz.O amor nos torna "forma em rascunho".
Amar a Deus é expandir o amor ao universo inteiro, deixando o universo inteiro se expandir  em nosso íntimo como processo que nos singulariza e nos faz existir mais, posto que nos torna parte singular de sua Potência que a tudo produz, conserva e regenera.
Quando compreendemos/experimentamos a Natureza/Deus como causa de tudo, percebemos que o reportar algo a muitas causas é apenas o caminho para apreender a única Causa que produz a tudo. Assim, descobrimos o verdadeiro valor do "muito": muito não numericamente, como mera quantidade, mas muito como Potência que age mesmo no mais singular e raro acontecimento. O muito da Potência é o muito que multiplica cada coisa singular, tornando-a mais integrada ao Todo que a torna inteligível e compreensível.







sábado, 25 de fevereiro de 2017

a semente



Sonhar é acordar-se para dentro.

Mário Quintana





( em verso, o original)

Um sonho tive ontem:
do coração eu era operado.

O tão temido médico esperado,
ao entrar, tranquilizou-me:
pois o cirurgião era o poeta Fernando Pessoa.
Sabedor do meu caso, ele me disse:
“só a poesia pode operar um coração adoecido”.

Após abrir meu peito,
o poeta pôs em sua mão meu coração
e o avaliou com peso excessivo.

Nada restava a fazer,
senão cortar o que nele era peso.

Ao invés de músculo ou nervo,
o poeta foi extraindo do meu coração
o mal que o sobrecarregava:
do meu coração ele extraiu a descrença,
a desconfiança
e toda mágoa.

No  fim da operação,
o poeta tinha em sua mão
um diminuto coração que mal preenchia o meu peito.
Temendo não sobreviver com ele,
disse ao poeta que daquela operação
eu não sairia sobrevivente.

“Do seu velho coração, disse-me o poeta,
extraí o que doía  e deixei a parte imortal:
deixei o coração de criança como  semente."




tô me guardando para quando o carnaval (autêntico) chegar...

Só podemos destruir
sendo criadores.
Nietzsche

Em toda  passagem de ano comemoramos um ano novo. Um ano velho se vai, um ano novo vem. Mas o ano novo não é um começo radical a partir do  zero: ele é a continuidade de um mesmo tempo. É por isso que o ano novo é contado, recebe um número. O nosso, por exemplo, é 2016.  É um ano novo de um mesmo tempo que progride e é numerado, então, com um ano a mais. O ano novo é um novo ano de um mesmo tempo, e não um tempo novo.
Entre os gregos antigos, o tempo era vivido de outra forma, uma forma mais drástica, mais radical. O tempo não era concebido de maneira linear. O tempo linear é o da linha que progride do menos para o mais, numericamente. O tempo linear começou  com a condição de um dia ter termo  ou fim. No nosso calendário linear, por exemplo, estamos no ano 2016. Este ano foi precedido pelo 2015 e será sucedido pelo 2017.A lógica que preside essa contagem numérica do tempo é incompatível com a ideia de que essa contagem seja infinita, dado que o infinito, exatamente por sê-lo, não pode ser contado ou numerado. Assim, a razão de contarmos o tempo deve-se ao fato de que o tempo, um dia, terá fim. A causa que explica o seu fim está no seu próprio começo: o ano zero. O tempo começou e terminará em razão de um motivo não temporal, metafísico, transcendente. Cabe a pergunta, pergunta de criança: qual será o último ano novo antes do fim dos tempos? Que número ele terá? O progresso no tempo linear é, paradoxalmente, a aproximação de um fim.
Os gregos antigos concebiam o tempo como repetição cíclica. O tempo é uma repetição, e não uma progressão numérica. Dois eventos determinam o ciclo do tempo: o nascimento e a morte, a criação e a destruição. O tempo nasce, cresce e morre, como tudo o que é vivo. Porém, o tempo renasce, vencendo sua própria morte. Mas o tempo que nasce é um tempo novo, que nada tem a ver com o que morreu. O tempo novo também não é o desenvolvimento de um tempo antigo. Por isso não se pode dizer que é o ano novo de um mesmo tempo, pois é um tempo novo que nenhuma data ou número pode determinar. O tempo novo não é precedido de um passado, tampouco é ele o herdeiro de costumes antigos. O tempo novo não é precedido de um tempo antigo; muito menos será ele o tempo antigo de outro tempo novo. Ele é tempo novo, renascido outro. É no tempo novo, e não no tempo morrido, que o tempo mostra sua verdadeira face: pois todo tempo é novo, assim como é todo dia, todo instante, desde que os vinculemos ao tempo que nasce, e não ao habitual relógio ou ao convencional calendário.
Para os gregos antigos, não é o ano que é novo, não é o dia, não são as horas; é o tempo que é novo, e esse tempo novo não o podem medir os anos,os dias, as horas ou qualquer outra medida determinada. Quantos tempos novos já existiram? Impossível numerar, pois tudo o que é singular foge aos números e quantidades.Infinitas vezes já houve um tempo novo. Apesar disso, sempre haverá tempo novo. O tempo novo é uma repetição da novidade, pois é da essência da novidade repetir-se diferente. Não é o tempo antigo que causa o tempo novo: este nasce tendo por causa ele mesmo. É para  criar-se novo que ele se destrói como antigo.Repetindo-se, o tempo  sempre retorna, diferente. O tempo não é eterno: eterna é a repetição através da qual o tempo retorna, novo.Do tempo novo não pode haver lembrança, embora ele traga consigo a semente de uma nova memória, na qual se poderá escrever uma nova história.
Foi essa concepção de tempo que traduzia a experiência de Orfeu, o poeta que foi ao inferno e voltou, que foi à morte e retornou . Também é essa concepção do tempo que inspira o deus Dioniso, que é o deus dos renascimentos. E é este deus que, outrora, era cultuado no carnaval. Esta festa nasceu como celebração desse tempo novo. O carnaval era a festa onde a morte e a vida se encontravam, sem brigar ou entrarem em guerra. Esse encontro era celebrado com festa, com alegria. O tempo que morria era celebrado, não era chorado; e o que nascia também era comemorado. Morria a terra, renascia a terra; morriam os homens, renasciam os homens.E o que renascia não era o morto que ressurgia, mas  a vida mesma mais viva.
Posteriormente, essa festa foi apropriada pelo Estado grego e pelos mecenas das artes, sobretudo o teatro. Também os comerciantes de bebidas se aproveitaram dessa festa. O que era experiência e ruptura, tornou-se rito. Foi a partir de então que a destruição se perdeu da criação, de tal modo que o antigo se perpetuava fingindo-se novo. A festa não era mais a expressão do tempo novo, mas tão somente a suspensão temporária de um mesmo tempo. A experiência radical com a novidade se transformou em data no calendário das festas costumeiras e  programadas. E Orfeu se tornou apenas uma máscara que se põe durante quatro dias; e Dioniso, do vinho que era, passou a deus da cerveja...












sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

o remédio de espinosa

                                                                                                                                                                                                                  Toda ciência se torna poesia,depois de se ter tornado filosofia.
A poesia é a grande arte de construção da saúde transcendental.
O poeta é, portanto, o médico transcendental.
Novalis


Minha alma é uma orquestra oculta; não sei que instrumentos tange e range, cordas e harpas, tímbales e tambores, dentro de mim. Só me conheço como sinfonia.
Fernando Pessoa

Mesmo doente,
nunca fui doentio.
Nietzsche


         Encontra-se em Espinosa a definição mais original que há da filosofia. Espinosa foge daquela definição comum, quase clichê, da filosofia como “amizade ou amor à sabedoria”. A amizade e o amor, claro, são importantes, porém não são o ponto de onde deve partir aqueles que desejam filosofar, isto é, agirem sobre si mesmos. Há uma tarefa que antecede a  experiência de tais afetos. É uma tarefa difícil, muito difícil. Ela é difícil porque não se a faz apenas teorizando ou lendo livros de filosofia apenas. É preciso viver, ter vivido. Viver não a vida de meros livros ou estudos, mas a vida no seu sentido mais comum e próxima, a vida que  que todo mundo vive. Aquele que quer tornar-se filósofo tem que conhecer essa vida, seus labirintos, cantos de sereia, prazeres, dores, amizades, amores, angústias, sofrimentos, carnavais e funerais. O filósofo não nasce em uma montanha: se ele chega ao pico desta, foi porque desejou ir além do burburinho que vive abaixo da montanha. Tanto o pico da montanha quanto os seus baixios não estão fora do homem, estão dentro dele mesmo, e se revelam em suas palavras e ações. Há palavras e ações que elevam, há palavras e ações que rebaixam.
Pois bem, Espinosa conheceu esse aspecto ordinário da vida, aspecto este que muda muito pouco ao longo dos séculos, não obstante o avanço das tecnologias. Foi em meio a uma crise existencial que Espinosa encontrou um remédio. Ele o chamou de “emendatio”. A filosofia não começa no amor ou na amizade, ela se inicia em uma emendatio.
Essa palavra não foi muito bem traduzida nas versões correntes da obra na qual Espinosa aborda esse tema. Em latim, o título do livro é Tractatus de Intellectus Emendatione. O filósofo tinha por volta de 30 anos quando escreveu esse livro. Muito já se escreveu sobre essa idade, até mesmo filmes já foram feitos ( “Trinta anos esta noite”, de Louis Malle). É uma idade simbólica, fronteira entre a juventude e a vida madura. Nesse livro, Espinosa fala do que viveu. Porém, o livro não constitui “memória”, “confissões” ou algo do tipo. Espinosa não quer exatamente falar de sua vida pessoal. Sua questão é outra, e concerne a todo mundo.
Ele frequentemente usa a expressão “todo mundo sabe por experiência própria”. Todo mundo sabe por experiência própria o que é a dor, a alegria, o prazer, a morte, a amizade, o amor, o ciúme, a angústia, a perda, o ganho…Ou melhor, todo mundo acha que sabe o que são esses aspectos da vida, de acordo com a experiência própria. Ao contrário de Montaigne, por exemplo, que descreve com minúcias aspectos de sua vida privada, como se tais experiências fossem únicas, Espinosa sabe que todos já viveram o que ele viveu, cada um a sua maneira. Ele também deixa a entender que escreve para aqueles que sabem que  essas experiências são mais fadadas à frustração do que ao contentamento. E se alguém abre um livro como o dele, é porque sabe disso. E também quer um remédio, e não apenas erudição.
Curiosamente, o livro de Espinosa aborda temas que todos conhecem, mas ele escreve sob o crivo de uma reserva, de um cuidado, que expressa o respeito do filósofo pelas experiências alheias com tais vivências.  Por isso, sua reserva. O que interessa ao filósofo não é descrever a “doença”, interessa-lhe mostrar, sem sermões, como ele , a custa de quase perecer ele mesmo, conquistou o remédio . Do doente nasceu o médico, quando este compreendeu a medicina. A filosofia nada é se não for essa medicina.O autêntico médico  é aquele que tem amor pela saúde (salut), e não exatamente ódio à doença.
Algumas traduções vertem emendatio por “correção” : Tratado para a correção do intelecto. Porém, emendar não é exatamente corrigir. O professor corrige a resposta do aluno em razão de uma verdade que ele sabe. Emendar não é isso…Algumas traduções optam pelo termo “reforma”: “reforma do intelecto”. No entanto, “reforma” é um termo mais inadequado ainda! Reformar uma casa, reformar um sistema de ensino, reformar um sistema político…nada disso é , de fato, uma emendatio.
A melhor tradução para essa palavra latina é o nosso vocábulo “emenda”: “Tratado sobre a emenda do intelecto”. Porém, é preciso fazer uma observação. A palavra emenda é muito usual no mundo parlamentar. Fala-se na “emenda a uma lei”, por exemplo. Mas essa acepção jurídico-legislativa de emenda também não traduz o que o filósofo chama de emendatio.
Primeiramente, seria preciso torcer a língua, forçá-la a variar, praticar certa agramaticalidade, para melhor traduzir esse termo latino. Literalmente, emendatio é emendação. Emendatio não é um substantivo, é um verbo, uma ação, um processo. Mas o que é uma emendação? E por que tal processo vem antes do amor e da amizade quando se trata de praticar , como “saúde da mente", o conhecimento?
Talvez ninguém mais do que o poeta Manoel de Barros tenha compreendido  essa ideia. Ele empoemou tal ideia. Manoel o fez  no poema intitulado Lacraia. No poema, Manoel compara a lacraia a um trem. Os gomos são os vagões . A cabeça vai à frente, como no trem a locomotiva.Quando menino, o poeta decidiu cometer uma peraltagem: descarrilar a lacraia. Ele então a desmembrou, desfazendo-a em partes. Quando o menino-poeta se preparava para ir embora, aconteceu algo para o qual nada antes o preparara para ver. A cabeça da lacraia se voltou para olhar uma parte que lhe estava separada. E esta parte passou a se mover indo em direção à cabeça que a chamava, sem dizer nome ou palavra. As outras partes fizeram o mesmo, “para se emendarem”: a força que age nessas partes também é amor, afirma o poeta.
A lacraia viveu assim  uma emendatio, uma emendação. Tal processo é mais do que uma correção ou uma reforma. A emendação é uma recriação, um refazimento, uma regeneração. As partes desejam ser o que eram, para serem novamente uma unidade viva, singularmente. Em cada parte age um conatus, uma força de existir. Embora cada parte tenha e seja um conatus, o conatus de cada parte se esforça para ser de novo um todo. Um conatus que apenas quer ser uma parte não é de fato um conatus, mas uma morte, um cancer.
Por isso, cada conatus expresso nas partes diferentes é o mesmo conatus que pertencia à  lacraia  inteira. A emendatio é um processo de integração. Cada parte da lacraia deseja integrar-se à ideia que eram, ao ser que eram. Integrar-se nada tem a ver com uma adaptação a uma realidade pré-existente. O todo que a lacraia era não existe externamente às partes que viviam nela. Esse todo não é uma caixa vazia que as partes preencheriam. No entanto, o todo é mais do que a mera soma das partes. Não é somando uma a uma de suas partes que a lacraia renascerá. Cada parte é exterior à outra, mas não lhes é exterior o todo: este vive imanente à cada parte, é ele o desejo que deseja a si mesmo, a força que se quer. Somente voltando a ser um todo que a lacraia voltará também a ser uma parte, parte singular, da natureza.
O intelecto ou mente por vezes é uma lacraia desmembrada, cujas partes se perderam de tal modo do todo que este nem mesmo é sentido ou desejado como ideia   a ser buscada, feita. Na lacraia-mente assim desmembrada, espírito e corpo já não se percebem como partes de um mesmo todo. Para Espinosa, emendar o intelecto é integrá-lo em  um todo do qual o corpo é a parte que o completa, do mesmo modo que o corpo é parte de um todo cuja outra parte é o intelecto. Não será mais a  mente a querer dominar o corpo com morais hipócritas e estéreis , tampouco será o corpo a dominar a mente por intermédio de hedonismos narcísicos e escravizantes.
Somente com o corpo e a  mente existindo como partes diferentes de um mesmo  todo poderá o homem compreender-se e agir como parte de um todo,incluindo o todo da humanidade,  e não como um todo à parte. Cada ser finito é um todo para suas partes, sendo ele mesmo uma parte de um todo maior. E este todo maior também poderá ser parte de um todo ainda maior. O processo de emendação somente termina quando alcançamos  o todo que sempre é todo, que nunca é parte de outro todo ainda maior. Frente  a esse todo que nunca é parte de um todo maior, tudo se mostra como parte singular dele, pois somente ele é de fato e verdadeiramente um  todo. Esse conhecimento , porém, não é alcançado apenas no fim. Ao contrário, ele deve ser o primeiro conhecimento: é ele o remédio. A singularização nasce de nos experimentarmos parte de um todo que não pode ser parte de outro todo maior. Nada limita esse todo: tudo que é expressão dele se deslimita ou desabre , ao afirmá-lo. Conhecer esse todo também é autoconhecer-se: este todo não nos está apenas fora,  ele age imanentemente a nós mesmos, como potência afirmativa da Vida.  
       O autoconhecimento nunca é restrito a um ego à parte, pois um ego que se coloca à parte coloca também à parte os outros egos, embora não tenham o mesmo sentido esses dois "pôr à parte". No primeiro caso, quando se trata do próprio ego, quer-se ser exceção. No segundo caso, que envolve o outro ego, pratica-se uma exclusão.  Nasce assim o que Espinosa chama de "guerra civil" , declarada ou dissimulada, entre os egos, com  seus infernos, seus "comparamentos", suas misérias , ódios e tristezas. Dois egos que se tomam à parte nunca agirão como partes diferentes de um mesmo todo, seja esse todo o amor , a amizade ou outra qualquer realidade. 
       Por exemplo, a justiça é um todo do qual são partes o juiz e o réu. O juiz não é uma parte à parte, um todo à parte da justiça. Mesmo tendo cometido um ilícito, o réu também é parte do todo que é a justiça: esta não quer vingança, quer justiça, quer a ela mesma, fazendo-se mediante suas partes - o juiz julgando a partir dela, o réu a recebendo para integrar-se à sociedade. O juiz criminal se torna mero instrumento de vingança quando coloca o réu como um todo à parte: à parte dos homens, junto às feras. Não existe juiz sem réu, nem réu sem juiz. Tampouco existem juiz e réu sem o todo da justiça, muito menos existem homens sem o todo da humanidade, nem humanidade sem o todo da Vida. O todo assim  compreendido não é portador de contornos rígidos que o isolam e põe à parte. Por isso, o que sob certo aspecto é um todo, como a justiça, pode ser uma parte para um outro todo, um todo maior, que a integre como parte sua, como o todo da sociedade. É por isso que um sociólogo ,cujo campo de estudos é a sociedade, pode abordar sociologicamente a justiça ( ou o direito) enquanto parte da sociedade, embora ele não seja um jurista, que aborda a justiça ( ou o direito) enquanto todo. Mas não é verdadeiramente um jurista quem toma o direito como um todo à parte, ignorando o mesmo enquanto parte da sociedade.Quando as ciências enrijecem suas fronteiras, e isolam o que estudam de todo o resto, perdem-se de vista o horizonte, as conexões,os agenciamentos, as interdisciplinaridades.
        A nosso ver, porém, a autêntica interdisciplinaridade não se realiza apenas com duas disciplinas "dialogando", pois isso seria trazer para o campo do conhecimento o modelo liberal contratualista, de indivíduos apenas se "associando", sem todo. A autêntica interdisciplinaridade  acontece em razão de um todo , do qual as disciplinas agenciadas sejam uma parte.Ser uma parte singular de um todo assim considerado não é homogeneizar-se, mas afirmar sua diferença , compondo-se.Por esse e outros motivos, mata a filosofia quem a  reduz à lógica das disciplinas científicas, pois a essência da filosofia é a interdisciplinaridade, como prática ética e teórica, e também política, de emendar as disciplinas isoladas, antes de tudo emendando a si mesma,para que as disciplinas e as práticas  não se vejam como um todo à parte, querendo ser exceção , ao preço de  excluir as outras, em uma guerra insana por mera "produtividade acadêmica", com suas recompensas em bolsas, financiamentos , "lideranças" e que tais.
       Enfim,  o autêntico autoconhecimento apenas o alcança quem se apreende como parte de um todo: um todo do qual tudo é parte, uma parte diferente.Somente sabendo-nos parte desse todo podemos também nos sabermos o  todo de partes que são em nós, sejam essas partes ideias , afetos ou ações, por mais simples que sejam.








terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

a escova do poeta

                             






                                                                                                        Quem se aproxima da origem se renova.

***   ***  

O que não aprendeu ainda a renunciar ao desejo de informar,
ao desejo de narrar, não aprendeu a cantar.
Quem canta é músico, passarinho, pintor, vento, poeta, chuva.
Poeta não precisa de informar sobre o mundo.
Poeta precisa de inventar outro mundo.

***   ***      

Palavra séria, para mim,
é aquela   que convida as outras 
para brincar de poesia.

Manoel de Barros

Há um poema de Manoel de Barros no qual ele diz ter visto, quando criança, dois homens "escovando osso" ( o nome do poema é exatamente "Escova").Isso o afetou singularmente. Tempos depois, ele soube o nome do  que aqueles homens estavam fazendo: eles faziam "arqueologia", eles eram "arqueólogos". "No começo achei que aqueles homens, afirma o poeta, não batiam bem. Porque ficavam sentados na terra  o dia inteiro escovando osso.Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos . E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor".Desse aprendizado ele inventou outro, pois o poeta diz que aprendeu a fazer algo semelhante , só que com as palavras. Ele aprendeu a "escovar" as palavras.
Os arqueólogos escovam o osso , algo aparentemente inerte e morto, para nele fazer viver a "arqué". "Arque-ologia" procede de "arqué". "Arquivo" também procede. "Arqué" tem por sentido "princípio", "causa" ,"fonte", "origem" ou "começo".Só arquivamos( em armários, gavetas , museus ou em nossa própria memória) aquilo que julgamos ter alguma relação com nossa existência, seja como causa , fonte ou origem.Em nossa memória não está apenas o passado, está também o que dá sentido ao presente.Em A Arqueologia do Saber, Foucault mostra que o saber é prática de construção de "arquivos" que co-existem sem se sucederem em progressão.No exemplo de Manoel de Barros, os arqueólogos descobriam que havia, naquele osso, algo arquivado: arquivado não como um papel em uma gaveta, já que , nesse caso, o que está arquivado é o próprio osso como arquivo, como signo, como sentido. O tempo estava arquivado nele, e ele, o osso, estava arquivado no tempo. E este tempo não é o passado no qual aquele osso foi esqueleto, já que se trata também do tempo no qual ele é descoberto como arquivo.Um osso não é apenas um osso, quando nele descobrimos um arquivo.Outrora ele fazia parte de um esqueleto escondido sob pele e músculo.Hoje, como arquivo, percebe-se que ele faz parte do universo inteiro, e sobre este ensina.O osso vira um documento: docere, aquilo que ensina.
O poeta escova a palavra, e a faz nos ensinar coisas que a mera informação utilitária não ensina. O poeta escova a palavra para nela fazer nascer sua alma: o sentido. Escovada, tornada arquivo, ela não designa apenas o referente que o uso consagra, pois ela passa a expressar também a origem que a inventou, e essa origem não está fora, mas lhe é imanente como ato de invenção.Esta é a fonte do sentido: a invenção. Ao escovar a palavra, não importa qual, o poeta acha a poesia, tal como o arqueólogo acha no osso o mundo no qual ele era uma parte, e  hoje esse mundo é parte dele, como mundo a descobrir. A palavra se torna mais do que palavra quando o poeta a escova, para nela fazer viver uma memória.
Nietzsche dizia que sempre nos esquecemos que nunca vivemos o que agora vivemos. Ele evoca então  uma memória singularíssima: uma memória que deveria nos lembrar que nunca vivemos o que agora vivemos; uma memória não do passado ou do que se viveu, mas uma memória do novo, do que nunca se viveu. Pois é disso que a gente se esquece: do novo. Nesse sentido, a percepção utilitária, aquela que busca sempre o "já visto" em todo ver, tal percepção também precisa ser escovada, para que assim de fato possamos deixar nascer em nós a memória daquilo que a todo tempo nasce,  e que somente pode ser visto por  uma "visão fontana" , uma visão que também é fonte do que vê.Quando olha para uma árvore, nela somente vendo o útil, o lenhador vê o possível móvel ou as folhas de papel que guiam sua percepção interessada, que se torna cega de uma cegueira ignorada. Ele não vê a árvore, muito menos a poesia que a faz e fez. Ele não vê a "arqué", ele não vê que ali há uma fonte.Em um museu, um objeto exposto deveria expressar essa poesia que faz o  objeto ser mais do que um objeto, tal como o escovar a palavra a faz ser mais do que mera informação utilitária que amanhã já será sucata, feito as informações  do jornal de ontem. O que é verdadeiramente novo nunca vira sucata, o verdadeiro novo nunca vira ontem.O novo é sempre fonte:arqué.A fonte é a "origem que renova".A fonte não é como um ponto de onde um fluxo jorra, pois este fluxo que a atravessa vem de um infinito com o qual ela permanece ligada. Pois é isto ser uma fonte: nos ligar a um infinito que nenhuma metragem utilitária pode diminuir. A fonte é o que nos liga e amplia.
"Poesia": poiésis, produção. Assim, o escovar é prática de cuidado também. Mais importante do que o "conhece-te a ti mesmo" é o "cuida de ti mesmo". Em latim, "caute" é a palavra que Espinosa imprimiu em seu anel. De caute provém cuidado também, assim como "curador": aquele que cuida."Caute" também pode ser "cautela" enquanto conduta ética. Desse modo, a poesia não é um conhecer meramente  intelectual, ela é um cuidado com o sentido, um cuidar do sentido.E é por isso que a poesia é também uma ética e uma clínica, como deveria sê-lo todo conhecimento, que nada é se não for também autoconhecimento. Assim , ao escovar um simples osso, é a nós mesmos que procuramos conhecer, não como um ser à parte , mas como parte de uma Natureza que é Poiésis.

                                                            (contracapa do livro)

sábado, 18 de fevereiro de 2017

o escudo que protege dos dois lados

O amor também tem sua arma.
Mas engana-se quem pensa que a arma do amor é a flecha que desfere o Eros-Cupido.
Essa flecha nunca mira calcanhares, como o que tinha Aquiles, para assim se aproveitar do que há de fraco , mesmo nos fortes. 
Tampouco Eros-Cupido atira flechas para matar , como as muitas flechas que atiraram os carrascos de São Sebastião, padroeiro do Rio. Hoje essas flechas são balas que continuam a matar seus filhos.
Eros-Cupido lança apenas uma flecha. Uma flecha apenas basta.
Porém , essa flecha é apenas um cinzel ,  uma ferramenta para produzir  metamorfose, como as mãos do escultor ao mármore.
A flecha-cinzel tem como alvo o coração, e apenas a este. 
A flecha parece que fere, como a agulha da vacina, mas é para curar e fortalecer, imunizando. 
É o coração a arma do amor, não é a flecha, assim como é o mármore que devém arte, não o cinzel que o  esculpiu.
O coração assim atingido torna-se escudo. A arma do amor é um escudo, como símbolo do cuidado.

Mas ao contrário dos escudos ordinários, que protegem apenas o seu portador, e mesmo o escudo da Inteligência-Atena é assim, o escudo do amor protege dos dois lados: protege quem com ele se arma e também quem quer atacá-lo.












quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

manoel de barros: o poeta do deslimite




(trecho do livro)

Mesmo percorrendo todos os caminhos,
jamais encontrarás os limites da alma.
Heráclito

Encontramos esboçado em Gilles Deleuze  um dos  problemas que tencionamos desenvolver, pois nos parece que ele toca de perto aquilo que em Manoel de Barros constitui a experiência do deslimite. Afirma  Deleuze que
                                                                                                                                                               
Escrever não é certamente impor uma forma (de expressão) a uma matéria vivida. A literatura está antes do lado do informe ou do inacabamento. (...) Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e  o vivido ( Crítica e clínica).
                                     
                                            
 A Vida é renascer constantemente, a todo tempo e instante. Por conseguinte, a Vida é metamorfose, arte. A Vida nunca nasce, quem nasce são os indivíduos. A Vida sempre renasce nos indivíduos que nascem. A Vida, portanto, é puro renascer: por nunca nascer, a Vida também jamais morre (quem morre são os indivíduos). A Vida não é uma, mas muitas: são todas as que tivermos a potência de inventar e criar, conjugando nosso viver com a Vida  que em si mesma é  criação, Arte.

A Vida é um processo que atravessa nosso vivido e rompe os limites utilitários deste; do mesmo modo que o Sentido , quando trabalhado pelo poeta, emerge na linguagem extravasando as significações dominantes que prescrevem à palavra um limite.  O deslimite é o processo que faz do inacabamento o estado sempre renovado que não deixa com que as coisas acabem, sendo então reinventadas pelo processo criativo ―  tanto na poesia como na vida.
  


                                                              


terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

a exclamação e a interrogação

“Achava que a partir de ser inseto
o homem poderia  entender melhor  a metafísica.”
“O meu nada não é o Néant de Sartre,
meu nada é o dos nadifúndios.”
Manoel de Barros

A metafísica é a disciplina mais nobre da filosofia. Ela é a mais digna. Se a filosofia fosse um farol a iluminar a noite,  a metafísica seria o facho de luz que se irradia em sua amplitude: do ponto do qual a luz parte até onde ela alcança, e também o meio, o caminho assim iluminado, caminho este que não existia antes de o facho o mostrar e fazer: não como estrada calçada de pedras, mas caminho feito apenas de sentido. Se a filosofia fosse uma flor, a metafísica seria o seu aroma que se desprende na abertura do desabrochar. Se fosse uma criança a filosofia , a metafísica seria o seu brincar, pois mesmo no brincar há um aprender: um brincar de aprender, um aprender de brincar. Se a filosofia fosse um pássaro, a metafísica seria o seu voo. Alguns filósofos voam como corujas, sempre à noite; outros voam em bando, como os pardais. E há ainda os que voam como o albatroz: sobre o oceano infinito, onde o pousar é idêntico ao morrer. Se a filosofia fosse um telescópio, a metafísica seria a lente e a paisagem nunca vista que a lente alcança e deixa ver.
A palavra metafísica é composta de duas outras palavras que se agenciaram: meta e physis. Erradamente se traduz “meta” por “além”. Isso pode levar a imaginar que a busca pela metafísica seria como uma viagem de desterro, um ir para longe, para o alto e distante. Às vezes perguntamos a  alguém: “qual é sua meta?” . Isso pode significar: “o que você quer alcançar? O que você deseja?” .Se alguém perguntasse à semente qual é sua meta, ela responderia devindo árvore, uma árvore que dê frutos e sementes. Se alguém indagasse às letras qual é sua meta, talvez elas respondessem: minha meta é ser palavra poética no papel ou na boca de alguém que canta. É pouco provável que letras tivessem como meta tornarem-se palavras mentirosas, que negassem a si mesmas, privadas de dignidade.
Assim, meta não é o que está além no sentido de algo a ser alcançado. “Meta” também é um movimento de alcançar o que precisa ser criado. Meta-físico não é o que está além do físico , como o céu está além do chão. O meta é o que dá sentido ao físico, o organiza, o faz ter uma forma, um aspecto, um querer. Uma realidade metafísica não é uma realidade distante e além, ela é uma realidade diferente da realidade física, e não está além ou aquém desta, mas junto, embora diferente.
Toda realidade metafísica é incorpórea. Porém, nem tudo o que é imaterial é metafísico. Por exemplo, posso imaginar que estou a correr em uma praia, embora eu esteja na verdade aqui sentado no sofá de casa. Essa imagem ou fantasia não existe por si mesma, ela existe em minha mente apenas. Ela não tem autonomia. Essa imaginação pode ser apenas o efeito de meu enfado de estar em casa. Tal fantasiar existe apenas enquanto realidade psicológica. As realidades psicológicas existem em razão das vivências de um ego. É sempre o ego , ou algo que sobre ele age, que explica o surgir de uma imagem ou imaginação. O mesmo aconteceria se eu , ao invés de imaginar , me lembrasse da ocasião em que estive em uma praia e corri sobre sua areia. Coisa diferente, no entanto, é se indagar acerca do que é o eu, ou do que é a imaginação ou do que é a mente. Para tais coisas, seria preciso formar ideias. E ainda mais: indagar acerca do que é uma ideia! A metafísica não se encerra nos produtos da mente, ela indaga acerca do que é a mente e também sobre o que existe fora dela.
A metafísica conheceu ou conhece duas maneiras de se expressar. A primeira delas se confunde com sua origem grega, ao passo que a outra nasce e traduz a posição moderna, mais próxima de nós no tempo. Entre os gregos, a metafísica nascia de uma experiência. Não a experiência com algo já visto, mas experiência com algo que põe no limite todo ver. Não era uma experiência meramente teórica ou conceitual. O motor dessa experiência era um afeto: a admiração ou o espanto. Não o espanto ou admiração diante de um fenômeno natural ou fato grandioso , tampouco espanto ou admiração diante de um prédio enorme ou um artefato técnico feito pelo homem. O espanto era em relação à existência. Não exatamente com a  própria existência daquele que se admira  ou com a existência  de algo externo que se vê ou percebe. O espanto e admiração eram em relação à existência inteira, toda, imensurável, infinita, absoluta. Era uma admiração por aquilo que não se podia abarcar, com o olho ou com o pensamento, mas que  estimulava o olho e o pensamento, mais do que as cores , para aquele, e mais do que teorias, para este. Esse espanto ou admiração eram afetos afirmativos, expansivos, confiantes, que faziam a vida própria transbordar , vencer limites e ir além (“meta”).
Seguindo essa linha, Espinosa afirma que todos os homens são capazes desses afetos filosóficos. Nos homens em geral, porém, tais afetos dependem das circunstâncias e acontecem esporadicamente, pois logo os homens retornam ao mundo de seus afazeres utilitários, ao passo que no filósofo tais afetos não dependem das circunstâncias, e são buscados pelo filósofo mais do que qualquer coisa do mundo utilitário. A filosofia é o esforço para tornar tais afetos mais constantes no sentir da alma. Sobre o infinito não podemos agir, é ele que age sobre nós, fazendo-nos compreender ser parte singular dele.
Essa admiração pelo infinito  vinha sem aviso, sem preparação ou estudos em livros. Ela nascia de um certo desapego ao habitual e familiar, para que o grego pudesse se  familiarizar com o mais estranho e inaudito. Era uma espécie de acordar de um sono, sono este ao qual a doxa  chama de realidade. Esse despertar não se fazia apenas com o espírito, pois dele também participava o corpo, através de um olhar que se metamorfoseava em uma visão fontana, diria o poeta. Era o inaugurar do ver no ato mesmo de ver, e isso depois de tanto olhar sem ver. Nesse olhar o conhecimento e a poesia ainda estavam unidos no mesmo jorro indistinto da vida ,  e esta convidava o pensamento  a ser o seu destino, livremente.
Enquanto a metafísica grega se apoiava no ponto de exclamação, será o ponto de interrogação a motivação da metafísica moderna. A metafísica moderna pode ser expressa em uma pergunta: “por que existe o ser e não, antes, o nada?”. A metafísica moderna introduz algo impensável para o grego: o nada. Quando Parmênides, por exemplo, fala em não-ser, este não é o "nada", e sim ignorância do Ser.Se fôssemos rastrear a ideia do nada  e ver onde ela surge, não encontraríamos exatamente um nascimento (como pode o nada nascer!?), e sim um processo de ocaso e morte: morte e ocaso do espírito grego. Essa palavra surge como a última palavra de um espírito moribundo, na boca de um dos derradeiros filósofos pagãos, no qual já não mais vivia , de há muito, o vigor pré-socrático: o neoplatônico Damáscio. De forma demasiadamente obscura, é Damáscio que dá nome a esse inominável.O nada somente é pensado quando já não está mais vivo o espírito grego. Por isso, é na boca de um de seus últimos filósofos que tal ideia é dita, para depois vir o silêncio. A metafísica moderna, por sua vez,  pensa o ser  confrontando-o com o nada. Para fazer isso, a metafísica moderna põe um limite ao ser, limite este que não vem do ser, mas do impensável nada.
Enquanto no mundo grego a metafísica constituiu o acabamento ou fundamentação das ciências, no mundo moderno haverá radical cisão entre a ciência e a metafísica. A ciência moderna se debruça sobre fatos ou fenômenos: ela não indaga sobre o ser, ela procede mediante recortes que lhe darão seus respectivos objetos. Assim, a física não estuda o ser, mas os objetos físicos. A química não estuda o ser, e sim os objetos químicos. Para um cientista, pensar o nada é loucura...além de perda de tempo. E mais perda de tempo ainda é pensar o Ser...
O mundo grego desconheceu o que é isso: o nada. Enquanto as crianças de Heráclito brincavam, elas apenas pensavam e viviam o brincar, e por isso brincavam, inocentemente, sem pensar no que é o não brincar. A metafísica moderna pensa o brincar limitado pelo não brincar: por isso, quem apenas brinca, sem pensar no não brincar enquanto brinca, não está de fato brincando. Mas quem brinca pensando no não brincar enquanto brinca, logo perde o sentido do brincar, angustia-se, faz do brincar/viver algo impossível . Como diz Sartre, o nada o infestará...
Segundo Heidegger, a ciência é um esquecimento do ser, ela se inscreve  ainda dentro da história da metafísica, mas como seu epílogo, como o lugar de um esquecimento daquilo que tornou o humano humano: a indagação ,sem fins utilitários, acerca do sentido da existência. Para Heidegger, está vedado para nós para todo sempre aquilo que os gregos experimentaram e chamaram de existência. Não sabemos mais o que é isso, ficamos apenas com a letra e nos fugiu o espírito.
Segundo ainda Heidegger, é equivocado supor que aquela experiência grega sobrevive , hoje, na experiência religiosa. Esse equívoco quem o comete é a visão cientificista e materialista do mundo. Para tal visão, a experiência metafísica se confundiria com a experiência religiosa ou espiritualista. Sem embargo, a ciência considera loucura as  realidades nas quais a religião e a fé acreditam. E muitos religiosos, sobretudo os místicos, aceitam essa designação de bom grado e definem a fé religiosa como uma forma de loucura, quando examinada à luz fria da razão cientificista.
Para Heidegger, contudo, mais louca ainda é a filosofia, pois a loucura da religião a ciência ainda aceita e designa. Porém, a loucura da filosofia a ciência não compreende e jamais compreenderá, pois a loucura da filosofia, segundo Heidegger, é querer fazer o conhecimento se lembrar que aquilo que ele conhece é a expressão do incognoscível. E que este incognoscível não é o mesmo objeto da teologia, já que o objeto da teologia é Deus, e este tem um nome, uma essência, ao passo que, hoje,  “Ser” é o nome que designa  o lugar de um vazio, algo que o homem ocidental se esqueceu, e que talvez apenas os poetas se lembrem, ao brincarem com o Sentido.
Na visão de Heidegger, o Ser é e sempre será incognoscível, embora venha dele todo objeto de conhecimento que a ciência conhece e estuda, procede do Ser incognoscível toda histórica cognoscibilidade.
“Por que existe o Ser e não apenas o nada?” Se pudéssemos responder a isso, teríamos que “conhecer” não apenas o Ser, mas também o nada, e as razões que os fazem   diferentes, e ainda porque o nada é nada...Porém, algo em nós sabe dessa diferença; sabe-a, contudo  sem a conhecer. Sem essa diferença, nem se poderia falar ou ser. Essa é a loucura da existência quando se quer pensá-la: dela não há e nunca haverá uma resposta, tampouco já houve. Ela é tão somente uma questão, um problema, que nunca se esgotará nas respostas filosóficas. A filosofia ouve o “chamado” da questão e se deixa afetar por ele,  ao passo  que a ciência nem tem como responder tal questão, pois a ciência  não tem olhos e nem ouvidos para tal indagação. 
       O "outro" de um ente é outro ente, não é o Ser. Por outro lado, o "outro" do Ser é o nada.A ciência se ocupa com os entes. Árvore, homem, molécula, sol...tudo isso é ente. A palavra ente deriva do latim ens , cujo significado é "sendo". Os entes são, sendo. O Ser é. Entre todos os entes, apenas um se sabe sendo, pois sabe que pode não ser, pois nem sempre foi, e nem sempre será. Esse ente é o homem. O homem é o ente cujo ser está sempre em questão, sempre a determinar . É através do homem que o Ser se coloca como questão. Não o homem enquanto este apenas conhece e faz ciência, ou mesmo reza, mas o homem na medida em que existe, pois para o homem fazer ciência é preciso que ele, antes , exista. Tudo isso, repetimos, é aduzido por Heidegger , é ele quem formula o problema. Assim, o homem é o único ente que se sabe sendo, ele é o único ente que se sabe temporalidade, pois ele se sabe finito. Saber-se finito não se sabe apenas vivendo, saber-se finito se sabe sabendo-se ser-para-a-morte. Por isso, é no homem , e somente para este e neste,que o outro do Ser, o nada, se torna uma questão posta ao mesmo tempo que a questão do Ser. E é o homem também que nega o Ser, ao reduzi-lo ao mundo dos entes, ao mundo das coisas. É isso que faz a ciência, bem como o senso comum.Contudo, é a si mesmo que o homem  também acaba   coisificando, quando coisifica o Ser. 
Na metafísica moderna, portanto, o afeto não é primeiro, ele se segue de um pensamento ou "cogito". De um pensamento que interroga e se interroga, para assim se deparar não com muros ou cercas, mas com o nada. Por isso, o afeto típico da metafísica moderna é a angústia.












sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

sinal verde 2






Vinte e um de setembro, seis e meia da noite. Centro da cidade.A multidão apressada retorna para casa. O trânsito se arrasta, pesado e  impaciente. Como todo mundo, estou retornando para minha casa, a pé, no fluxo anônimo da multidão. Não penso em nada determinado, estou entre o futuro e o passado,  com os olhos a ir pelo chão.Paro à beira da avenida agitada, preciso atravessá-la. Olho para cima e busco o sinal  . Ele está fechado  para mim , em vermelho ele me diz "não". Baixo os olhos, fito o outro lado da rua:  o ir e vir dos carros me lembra o rio de Heráclito... Volto a subir os olhos, e estranhamente  sinto que não apenas eles eu alço, outra coisa em mim sobe com eles.  O sinal continua vermelho, porém não me fixo nele. Meus olhos saltam  e reparam no que está atrás daquela proibição que me quer parado, obediente, resignado.  Vejo então o fundo infinitamente estrelado de uma noite de setembro que se abrindo nos avisa que a primavera em breve vai nascer  . Esqueço o trânsito, o guarda e aquela rua asfaltada,  olho para o céu  e vejo em   suas estrelas  sinais enfim se abrindo,  posso então ascender.



quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

o nada e seu topete



O capitalismo é niilista em sua essência. Essa palavra vem do latim “nihil”, que significa “nada”. Ser niilista não é exatamente ser cético. O cético descrê  das coisas que a maioria crê. O cético vende caro sua capacidade de crer. Ou melhor, não a vende. O niilista não apenas não crê em nada, como tenta dissimular essa descrença com aparentes crenças que apenas simula: ele tem prazer em dissimular, em ser acreditado, para provar que o nada pode simular ser tudo. O capitalismo finge que é democrático, dissimula ser humanista, aparenta se preocupar com o bem-estar do povo...Porém, ele é niilista. E também o são aqueles que rezam seu credo.
Em geral, um niilista não é exatamente alguém deprimido, "dark" ou melancólico. Ao contrário, ele pode ser muito bem “animado”, extrovertido e risonho, ao menos na "superfície". Schopenhauer escreveu célebres páginas sobre o nada. Ele pensou o nada, filosofou sobre ele, quis pensá-lo. Hoje, porém, o nada do  niilismo está tão entranhado nos modos de vida que nos cercam que ele não é visto ou percebido, muito menos pensado. Como uma doença , ele se mostra apenas por intermédio de seus sintomas: vulgaridade, intolerância, violência, superficialidade, imediatismo, materialismo, cinismo.
       Um modo de vida niilista teme a solidão mais do que a tudo, por não suportar a companhia de si mesmo. Para fugir dessa companhia , vive-se full time on line. Um modo de vida niilista também foge do pensamento, que acaba confundido com mera introversão subjetivista ou "viagem mental recreativa". Um modo de vida niilista com "maior titulação"  confunde pensamento com mera erudição ou “produtividade acadêmica”; e há ainda aqueles que, mais pragmáticos, reduzem o pensamento ao mero "estudar" para um concurso: eles suportam dez, doze horas por dia lendo  leis e fórmulas que decoram, porém enfadam-se  com dez minutos de poesia ou filosofia.
Uma música niilista não é uma música que faz apologia do nada ( “Nirvana”). Uma música niilista é uma música que, enquanto música, é nada, mesmo que seja ouvida a volume altíssimo ou seus cantores façam sucesso e apareçam nos programas de televisão. Uma prática religiosa niilista não é aquela que faz do Nada um novo Deus. Ao contrário, uma religiosidade niilista fala muito de Deus, pede coisas em seu nome, constrói templos de ouro , porém a ausência de Deus é flagrada ali mesmo onde é dito seu nome, às vezes aos berros, como se isso nos fosse fazer acreditar, à força, que naquele berro há Deus.
      O capitalismo é, ele mesmo, um nada. Sabe-se que a quantidade de capital que circula no mundo corresponde a mais de cinco vezes o valor dos bens reais que existem no planeta, inclusive terras. E mais de noventa por cento desse capital está na mão de apenas um por cento da população.  Ou seja, se esse um por cento resolvesse, ao mesmo tempo, comprar bens, incluindo terras, eles comprariam o planeta terra inteiro e ainda ficariam faltando mais quatro planetas terras. Como não existem outras quatro terras, mas apenas uma única e singular terra, as outras quatro terras são , na verdade, a nossa terra mesma sendo morta ou destruída quatro vezes, aos poucos.O capital tem o potencial de destruir a terra quatro vezes, já as armas atômicas, armas do niilismo, têm o potencial de destruir a terra dezesseis vezes! Há um conto de Clarice Lispector no qual ela relata uma notícia que  lera nas páginas policiais de um jornal: um garoto que furtava comida em um supermercado foi morto com cinco tiros ao tentar fugir. O primeiro tiro o atingiu pelas costas, e ele caiu no chão já morto. O segundo , o terceiro e o quarto tiros foram dados por raiva mesmo, enquanto o quinto tiro acertou nela e em todos que ainda têm humanidade. As bombas atômicas destruiriam a terra uma vez por razões bélicas  e as outras quinze por puro niilismo em relação à vida e à existência. As bombas destruiriam imediatamente, ao passo que o capitalismo mata lentamente: "American first"...
   O capital  não tem alma, corpo, vida, desejo, sonhos. Mas ele precisa se incrustar nos desejos, nas vidas, para assim infestar tudo o que ele parasita. O capitalismo não é o comércio de bens e coisas. Ele é um abstrato, um coisa nenhuma, em cujo rastro de nascimento estão as guerras (sobretudo as mais covardes), a pirataria, o roubo, a escravidão, a pilhagem... O capital não é o metal da moeda, tampouco o papel de que é feito a nota. O capital é a nota de papel menos o papel, ele é a moeda de metal menos o metal. Ele é nada.
Curiosamente, capital deriva do latim “caput”, “cabeça”. O capital não é o braço que trabalha ou a mão que escreve ou pinta. Ele é a cabeça que calcula, que artimanha, que dissimula. Não é a vida integral do corpo, mas apenas a vida abstrata de uma cabeça que não sonha ou poetiza, apenas conta, contabiliza, maximiza. É por isso que o capital fala tão bem a linguagem dos números e quantidades, e avilta tudo o que toca, sobretudo as coisas relativas ao espírito e às artes.
  O capital não tem nome. O dólar, o euro, o real....não são “o” capital. Essas moedas têm nome em razão de seus respectivos enraizamentos na história dos povos onde nasceram. É um povo que dá nome à sua moeda, é o povo o seu genitor. No entanto, quem deu nome ao capital? Quem é seu pai? É com notas ou moedas que o povo compra o leite e o pão. No mundo do capital, porém, tais coisas viram “commodities”, coisa nenhuma, pura nada da especulação numérica, mas que pode arrasar economias inteiras, levando seus povos à fome.
    "Comunismo" traz em seu nome a realidade da qual ele extrai seu sentido: "comunidade", "comuna". O mesmo ocorre com "socialismo", que enfatiza , ao menos em seu nome, o "social". E o "anarquismo" designa igualmente algo real do qual ele quer ser a diferença, uma diferença também real: "an-arqué", "não comando" ( em sua essência, o anarquismo não se opõe exatamente ao comando em si, mas contra o comando meramente externo, que venha de fora e nos governe, seja o comando do Estado , ou o comando da doxa, ou das "cartilhas" , enfim, de tudo o que se impõe como "acostumado" e "gramática": nesse sentido, o anarquismo não é bem "não comando", mas "comando diferente", no sentido de ser um comando que não reprime ou oprime,  singulariza). "Democracia", por sua vez, traz o termo "povo" (demo) como sua razão de ser. Porém, quanto mais não democrática é uma ideologia política ( ou econômica), mais aquilo que ela designa tende ao abstrato, como a  tal cabeça ("caput")  esquizofrenicamente separada do restante do corpo, sobretudo do coração.Além do capitalismo, podemos citar ainda o "nazismo", cujo nome não designa nada, pois é um mero acrônimo das iniciais do partido de Hitler. O mesmo se aplica ao termo "fascismo", oriundo do italiano "fascio", que significa "feixe". 
Por não ter nome, o capital  sempre ambiciona mudar de designação  as coisas que ele explora, para assim camuflar essa exploração. O “trabalhador”, por exemplo, já não é mais assim chamado, agora ele é o “colaborador”. Ele colabora com quem? Com o capital, que não colabora a não ser consigo mesmo. Co-laborar: laborar ou trabalhar junto. No entanto, o capital não labora! Engana-se ´profundamente quem se intitula “dono do capital”, pois o capital não tem dono, ele é apátrida, inumano, avital. Como alguém pode querer ser dono do nada? A não ser que dê ouvidos a Mefistófeles, esse paraninfo de todo nada.
O capital sabe tanto que é um  nada que agora ele se arvora ter alma, e quer que a gente acredite nisso! E há os que acreditam...Fala-se agora na “Alma da Empresa”. Os neoplatônicos, tenazes contempladores da “Alma do mundo”, morreriam de rir se lhes dissessem que um dia os homens dariam alma a tais coisas....Também morreriam de rir os xamãs, para os quais apenas as coisas sagradas podem ter alma. Ou seriam agora as empresas o novo espaço sagrado do Sacrossanto Mercado? Contudo, se uma empresa tivesse personalidade e alma, seu comportamento se aproximaria mais de uma alma doente do que de uma alma sã. Pois as empresas são paranoicas, não confiáveis, predadoras ( veja-se a esse respeito o documentário Corporation ). 
Na filosofia, Nietzsche e Heidegger foram aqueles que melhor diagnosticaram esse mundo doente. Talvez Marx tenha subestimado o monstro ao não perceber que não se luta contra ele ao preço de abolir a filosofia, ou seja, o pensamento. Marx achava que a filosofia era inútil para lutar contra o capital, apenas as armas o podiam. Contudo, um dos negócios mais lucrativos desse monstro é canalizar os ódios , deixar as pessoas acéfalas e muni-las com armas cada vez mais mortíferas.
Há uma questão metafísico-existencial no cerne do capitalismo, e não apenas uma questão sociológica ou econômica, embora questões dessa natureza também estejam envolvidas e tenham sua relevância.  Para Heidegger, o nada que o capital é não é o nada metafísico, como alteridade do ser. O nada do capital é o nada que ganhou um ser: o ser nada. E esse ser-nada se fortaleceu tanto que os homens “esqueceram” o que é ser e  existir. É o nada-capital que diz como se deve ser e viver: através de suas propagandas, doutrina-se que ser e existir é ter, consumir. Mas o que hoje é desejado como o “último tipo”, amanhã já será nada, sendo preciso então consumir um novo modelo do nada que ontem era tudo.
Diferentemente, o nada do poeta é o dos “nadifúndios”.  O nadifúndio é a terra e o chão das coisas inúteis, que “não se podem comprar ou vender no mercado”. O nada do capital é o do latifúndio das coisas “úteis”, porém descartáveis, que amanhã já serão sucata.

Os homens que servem ao capital  são dotados de uma estranha feiura, uma feiura existencial , a qual eles tentam esconder, dos outros e de si mesmos,  com uma obsessiva  “estetização” das  partes visíveis de seu corpo. Neles, porém, o belo é sempre de mau gosto... Um desses loucos muito bem pagos  enfeita seu “caput” com um topete narcisicamente  esculpido ( que dissimula um nada de cabelo abaixo, bem como um nada de ideias mais abaixo ainda). Porém, basta ele abrir a boca para nos lembrarmos da advertência de Nietzsche, mais atual do que nunca: “Vai  encontrar-se com aqueles homens? Não se esqueça de tapar as narinas do seu espírito...”.

                                                   ( "American first"...)